A Lenda do Boitatá

        Nem sempre é fácil fazer com que os alunos estejam dispostos a prestar atenção no que o professor quer e precisa ensinar. Na minha última semana de regência precisei ensinar Transferência de Calor. Casualmente nesta semana, havia uma grande movimentação em relação a festa do Dia das Bruxas. Planejei então minha aula pensando em aproveitar tal fato. Os alunos seriam levados para frente da escola e lá faríamos uma espécie de despedida adiantada, onde seria lido um texto para fixar os pontos mais importantes. Como o professor Paulo havia me dito anteriormente que alguns alunos eram de outro estado, além da fixação da matéria, a cultura e as lendas de nosso estado, seriam apresentadas nesse texto, de uma maneira instrutiva e agradável. Porém, devido ao falecimento de uma das alunas da turma 211, não pude efetuar minha aula da maneira planejada. O que fiz foi um grande cartaz com a história e expus aos alunos no dia seguinte. Como a prova ocupou a maior parte da aula, acredito que pela ansiedade dos alunos, estes não prestaram a atenção necessária, o que foi uma pena. O texto foi extraído do livro Lendas do Sul, contadas pelo Palhaço Arrelia. O livro faz parte de uma coleção do mesmo autor chamado Lendas do Brasil.

        Aconteceu há muitos e muitos anos. Foi assim: fazia bastante tempo que havia anoitecido e não queria clarear mais. O povo andava preocupado. O que teria acontecido? Mas a noite continuou por muito tempo e foi tão longa, que todos acreditavam que o dia não iria mais voltar. E como a noite estava durando muito, tudo ficou desordenado. As colheitas não podiam mais ser feitas no escuro e a radiação solar não chegava à terra. Assim as plantas começaram a morrer. Sem alimentos, as pessoas perdiam calorias, e não mais as repunham. Todos estavam perdidos e cansados daquela noite estranha, onde não brilhava a Lua e nem uma estrela sequer. Onde não se ouvia um rumor e nem se sentia o cheiro dos pastos e o perfume das flores, pois sem correntes de convecção não havia mais polinização.

        Tão grande era a escuridão que as pessoas tinham medo de afastar-se e não mais encontrar o caminho de volta. Ficavam reunidos em volta de pequenas fogueiras que não transferiam calor suficiente para todos. Sem suas panelas, as pessoas não conseguiam através da transferência de calor por condução aquecer seus alimentos. Ninguém se mexia e todos ficaram juntos. Que noite terrível!

        Não muito longe, numa gruta escura, vivia a Boiguaçu, a Cobra Grande ou Boitatá, quase sempre a dormir. De tanto viver no escuro, seus olhos tinham crescido muito e ficado que nem como dois faróis. Porém, junto com a noite estranha, veio também uma chuva muito forte, pois dias antes havia tempos muito quentes e a evaporação, que é um processo de vaporização muito lento, fez com que o vapor de água se condensasse em grandes nuvens. Agora, além da escuridão, tudo começou a ser inundado e os bichos tiveram de correr em bandos para os lugares mais altos. Os animais e os homens perdidos acabaram ficando amigos. Após a chuva, um frio muito intenso se abateu sobre todos. Os casacos de lã e as penas dos pássaros não mais serviam de proteção e não conseguiam fazer com que o calor fosse conservado em seus corpos. A camada de ar entre as fibras dos casacos não serviam mais como isolante. A chuva que havia caído fez inundar a toca da Boiguaçu e esta também juntou-se aos animais e aos homens no alto da montanha onde, por ser muito alta, a água entra em ebulição a uma temperatura inferior a 100°C.

        Mas ela não queria conversa. Lá chegando e com muita fome, encontrou um banquete. Não se fez de rogada e foi comendo o que mais lhe apetitava: os olhos dos homens e animais que ali estavam. A lenda conta que de tantos olhos devorados, a Boitatá, começou a ficar luminosa pois tinha uma pele muito fina. Os animais enfraquecidos pela falta de energia, não tinham como se defender. E tudo começou a ficar silencioso. Nem as brisas, formadas pelas correntes de convecção, sopravam. Só silêncio. Mas Boitatá começou também a enfraquecer, pois sem a energia solar e comendo apenas os olhos, não conseguia energia suficiente para sobreviver. Acabou morrendo de fraqueza.

        O engraçado é que logo que ela morreu, o dia surgiu outra vez. Foi uma alegria enorme! As pessoas voltaram a sorrir e as aves a cantar. Tudo voltou a ser voltou a ser como era.

        Dizem que, como castigo, o espírito da Cobra Grande deveria vigiar as matas e impedir a queima e destruição das árvores. Basta você acender um isqueiro que ela aparece feroz, em um tom esverdeado, pronta para devorar seus olhos. Mas se alguma vez você for perseguido pela Boiguaçu, feche seus olhos e fique parado. Ela cansará e irá embora.

        Porém, tudo não passa de uma lenda que traduz um pouco da cultura gaúcha, pois todos sabem que este fenômeno acontece não muito raramente no interior. Não é difícil ver-se uma " luminosidade esverdeada", o fogo-fátuo, nos cemitérios e nos pântanos. Trata-se de emanações causados pela inflamação da fosforita, combinada com o hidrogênio proveniente da decomposição de substâncias orgânicas. Foi este fenômeno que deu origem à Lenda do Boitatá. Será?

Maria Luciana de Oliveira


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