Caderno Cultura

Sábado, 12 de março de 2005, p.2

CIÊNCIA

CARLOS ALBERTO DOS SANTOS
Professor do Instituto de Física da UFRGS, editor do site www.if.ufrgs.br/einstein

Em junho de 1997, realizou-se na Universidade de Bristol, Inglaterra, uma conferência (www.phy.bris.ac.uk/pic97/) para comemorar o 50º aniversário da descoberta do méson- pi. Em outra parte do material (www.phy.bris.ac.uk/pic97/pion.html), informa-se que raios cósmicos foram investigados durante os anos 1940, por Cecil Frank Powell e sua equipe na Universidade de Bristol, usando emulsões fotográficas expostas em altas altitudes. Em 1947, eles anunciaram a descoberta do méson-pi, uma partícula elementar prevista por Hideki Yukawa. Em 1950, Powell ganhou o Prêmio Nobel de Física, em reconhecimento à descoberta.

O texto acima enquadra-se naquela categoria em que atores importantes de um processo histórico são deixados de lado nos registros para a posteridade, sem merecer o devido reconhecimento. Há um consenso quanto à inexistência da versão absoluta de um fato; a história é feita de versões relativizadas, nem sempre com interesses escusos, mas freqüentemente por descuido. No caso em pauta, pelo menos três versões devem ser cotejadas: a do próprio Powell (1903 - 1969), a de Giuseppe Paolo Stanislao Occhialini (1907 - 1993), físico italiano que trabalhou na USP antes de se juntar ao grupo inglês, e a de Cesare Mansueto Giulio Lattes, que morreu na última terça, em Campinas, São Paulo, aos 80 anos.

Morto na última terça-feira, aos 80 anos, vítima de uma parada cardíaca, o físico brasileiro foi um dos maiores pesquisadores do país. Nos anos 40, identificou e comprovou a existência de uma partícula singular do átomo, mas teve apenas um colega - inglês - reconhecido como descobridor

Cesar Lattes e
o Nobel tungado

A versão de Powell, discutida por Antônio A.P. Videira e Cássio L. Vieira no livro Cesar Lattes, a Descoberta do Méson Pi e Outras Histórias (CBPF/MCT, 1999), nada esclarece sobre as participações de seus colaboradores; sequer menciona o nome de Lattes quando se refere à descoberta do méson pi. No entanto, 20 anos antes, no auge da efervescência da descoberta, e enquanto visitava Niels Bohr em Copenhague, ele escreveu para Lattes: "Apresentei duas palestras aqui sobre nossos resultados, e todos concordam que eles constituem o mais importante avanço da física dos últimos anos. (...) você tem contribuído substancialmente para o desenvolvimento do nosso método".

As versões de Occhialini e Lattes são bastante semelhantes. Em 1946, Lattes foi recebido no grupo de Powell, por sugestão de Occhialini. Lattes tinha experiência na detecção de raios cósmicos, adquirida com seu professor da USP Gleb Wataghin. Por sugestão de Occhialini, o pessoal da Ilford conseguiu melhorar as chapas fotográficas aumentando a densidade de grãos (sensibilidade) e adicionando bórax (para aumentar a vida útil das chapas expostas). No verão daquele ano, Occhialini foi passar as férias nos Pirineus e levou chapas com e sem adição de bórax para exposição no Observatório do Pico do Midi (2,8 mil metros de altitude). Os resultados com as chapas de bórax foram extraordinariamente superiores. Em um texto escrito para comemorar o 60º aniversário de Lattes, Occhialini escreve: "Quando viu as primeiras chapas de raios cósmicos, Lattes pegou fogo. (...) Reconheceu imediatamente a primeira desintegração do méson que eu lhe mostrei. A partir desse momento, me solicitou, quase exigiu, tomar parte nessa nova aventura. Sua contribuição foi muito importante. Ele trouxe (...) intuição física, clareza de pensamento e um longo e apaixonado estudo dos cósmicos. (...) Se ele só tivesse trabalhado aqueles dois anos em Bristol, já mereceria um lugar na história".

Durante muito tempo, a modéstia de Lattes impediu que ele requisitasse o direito ao prêmio, mas em uma entrevista para o Jornal da Unicamp, em 2001, ele soltou o verbo: "Sabe por que eu não ganhei o prêmio Nobel? Em Chacaltaya, quando descobrimos o méson-pi, se publicou: Lattes, Occhialini e Powell. E o Powell, malandro, pegou o prêmio Nobel pra ele. Occhialini e eu entramos pelo cano. Ele era mais conhecido, tinha o trabalho da produção de pósitrons em 1933. Depois fui para a Universidade da Califórnia, onde foi inaugurado o sincrociclotron em 1946. Já era 1948 e estava produzindo mésons desde que entrou em funcionamento em 1946, tinha energia mais que suficiente. Então, detectamos, Eugene Garden e eu, o méson artificial, alimentando a presunção de retirar do empirismo todas as pesquisas que se relacionassem com a libertação da energia nuclear. Sabe por que não nos deram o Nobel? Garden estava com beriliose, por ter trabalhado na bomba atômica durante a Guerra, e o berílio tira a elasticidade dos pulmões. Morreu pouco depois e não se dá o prêmio Nobel para morto. Me tungaram duas vezes".

Em compensação, a repercussão do seu trabalho no desenvolvimento científico de toda a América Latina (sobretudo no Brasil) foi de tal ordem que a Organização dos Estados Americanos conferiu-lhe o Prêmio Bernardo Houssay de 1979.

Lattes e Yukawa

O que é e como
foi descoberto o méson-pi?

Em 1935, Hideki Yukawa propôs uma teoria para explicar as forças nucleares. Ele sugeriu a existência de uma partícula ainda desconhecida, com uma massa cerca de 200 vezes maior do que a do elétron, que poderia ser emitida e absorvida por prótons e nêutrons. Por ter uma massa intermediária entre a do elétron e a do próton, recebeu o nome de "méson". Essas partículas só poderiam existir durante um tempo muito curto e se desintegrariam fora do núcleo atômico, depois de apenas um bilionésimo de segundo. Ao analisar chapas fotográficas expostas aos raios cósmicos em alta altitude, Lattes, Occhialini e Powell observaram traços de partículas que iam diminuindo de velocidade e parando; do final desses traços brotava um novo rastro. A primeira partícula, cerca de 30 a 40% mais pesada do que a segunda, recebeu o nome de méson-pi, enquanto a segunda foi chamada de méson-mi. Atualmente elas são chamadas, respectivamente, de píon e múon.

Na figura, o píon transforma-se em múon no ponto A. No ponto B o múon desintegra-se emitindo um elétron que, não é visível nesse tipo de emulsão.


Post-Scriptum do autor: As figuras usadas aqui não constam da versão publicada em Zero Hora.