Escreva-me, comentários e sugestões são bem-vindos


Resenha do livro Buracos Negros, Universos-Bebês e outros ensaios, de Stephen Hawking, tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Editora Rocco.
Publicado no jornal Zero Hora, Caderno Cultura, 29/07/95

Stephen Hawking, um dos mais carismáticos entre os físicos contemporâneos, brilhante cientista da Universidade de Cambridge, faz parte desse reduzido grupo de cientistas que, preocupados em transmitir seus conhecimentos ao público leigo, contribuem qualificadamente para a literatura de divulgação científica. Nos treze ensaios do seu mais recente livro, Buracos negros, universos-bebês e outros ensaios, Hawking retoma alguns dos temas abordados no seu primeiro best-seller, Uma breve história do tempo, e enfoca com singeleza questões pertinentes à sua vida pessoal.

Os três primeiros capítulos do livro são breves ensaios autobiográficos sobre sua infância, seu período de estudos nas Universidades de Oxford e de Cambridge e sobre sua experiência com a ELA, esclerose lateral amiotrófica, a doença que vem minando sua vida há mais de trinta anos. Dados pessoais também estão presentes no último capítulo, onde se reproduz uma entrevista dada ao programa Desert Island Discs da BBC, no Natal de 1992.

Além do festejo pelo lançamento de mais um título, sempre convém questionar: para que serve a divulgação científica? Abordando essa questão em um dos ensaios do livro, Hawking defende o princípio de que numa sociedade democrática "o público precisa ter uma compreensão básica da ciência, de modo a poder tomar decisões com conhecimento de causa em vez de deixá-las nas mãos dos especialistas", e dá como exemplo o caso das armas nucleares; para Hawking, esta é a mais importante questão sobre a qual o público terá de tomar decisões num futuro próximo. Ao lado desse aspecto utilitário, a ciência, particularmente a astronomia, desperta grande interesse no público, como o atestam a grande popularidade da literatura de ficção científica e as grandes audiências alcançadas por séries de televisão, como Cosmos. Esse é um interesse de natureza cultural merecedor de atenção, e em função do qual devemos ter uma atitude crítica frente à publicação de cada novo título.

A popularização da ciência, pelas suas próprias características e pelo seu público-alvo, é algo capaz de nos reservar inúmeras armadilhas. Diferentemente de um texto técnico-científico, sobre o qual o público-alvo tem (pelo menos deveria ter) profundo conhecimento, sendo capaz de entender linhas e entrelinhas, o texto de divulgação científica destina-se a quem seja capaz de compreender não muito mais do que conclusões e generalizações de complexas e extensas pesquisas científicas. Assim, o leitor tem pelo menos dois tipos de postura frente a essas duas modalidades de literatura. No caso da produção técnico-científica, a análise do conteúdo é o bastante para uma avaliação do mérito. Já no caso da divulgação científica, a qualificação da fonte de informação é, em primeira instância, o elemento fundamental, uma vez que o leigo pode tornar-se vítima fácil de artimanhas verbais; erros grosseiros transformam-se em verdades quando verbalmente bem articulados.

Ser respeitado pelos seus pares é o primeiro requisito para um cientista tornar-se fonte fidedigna para a divulgação científica; depois vem sua capacidade para elaboração de um texto acessível e agradavelmente fluente. Hawking satisfaz os dois requisitos. Ocupante da cátedra que foi de Isaac Newton, como Lucasian Professor of Mathematics na Universidade de Cambridge, ele é responsável por consideráveis avanços na cosmologia moderna, destacando-se seus resultados sobre os buracos negros e os universos-bebês. Portanto, nos seus livros de divulgação científica, Hawking fala daquilo que sem dúvida nenhuma entende como poucos. Mais do que isso, tem um texto agradabilíssimo. Os complicados resultados das suas pesquisas são apropriadamente reduzidos a aforismos deliciosamente bem-humorados, como na discussão do princípio antrópico, que ele assim enuncia: "As coisas são como são porque nós existimos". A descoberta de que a radiação cósmica de fundo tinha o espectro característico da radiação emitida por um corpo a uma temperatura de apenas 2,7 graus acima do zero absoluto, o levou a escrever: "o universo é um lugar frio e escuro". Discutindo o fato de que o buraco negro preserva apenas a massa, o momentum angular e a carga elétrica do que objeto que o originou, ele conclui: "um buraco negro não tem cabelos". Quando descobriu que um buraco negro podia emitir algum tipo de radiação, resumiu tudo dizendo: "os buracos negros não são tão negros".

Abordando o significado de uma teoria grã-unificada, uma "teoria de tudo", Hawking faz, no ensaio Meu ponto de vista, um breve e amargo paralelo entre o trabalho do físico e o do filósofo da ciência, um tema que freqüentemente causa polêmica. Para ele, muitos dos filósofos da ciência são "físicos frustrados que, achando difícil demais inventar novas teorias", resolveram dedicar-se à interpretação de estudos passados, não sendo capazes de entender a fronteira atual da física. O libelo tem motivação explícita: o fato de alguns filósofos qualificarem a abordagem de Hawking de ingênua e simplória, e de o chamarem de nominalista, instrumentalista, positivista, realista e outros istas.

Há uma clara diferença entre fazer ciência e interpretar, a posteriori, os resultados obtidos. "As pessoas que realmente promovem os avanços da física teórica não pensam segundo as categorias que os filósofos e historiadores da ciência inventam posteriormente para elas", afirma Hawking. Quem faz ciência tem a nítida sensação de que os filósofos estão para eles assim como os críticos de arte estão para os artistas. Quando escreveu seus primeiros trabalhos sobre a teoria da relatividade, Einstein certamente não estava preocupado em saber se era realista ou instrumentalista; estava interessado simplesmente no fato de que as teorias existentes não se encaixavam. Hawking é mais ácido ainda quando afirma: "Há 25 anos sabemos que a teoria da relatividade geral de Einstein prevê que o tempo deve ter tido início numa singularidade [big-bang], há 15 bilhões de anos. Mas os filósofos ainda não conseguiram apreender essa idéia. Até hoje estão às voltas com os fundamentos da mecânica quântica, estabelecidos há 60 anos. Não se dão conta de que a fronteira da física se deslocou".

A idéia de uma teoria unificada completa, ou teoria grã-unificada, como Hawking a denomina, é o ponto de convergência de todos os ensaios do livro. Tal teoria seria obtida quando conceitos da mecânica quântica fossem convenientemente aplicados a problemas cosmológicos, ou, como desejava Einstein, quando a teoria da relatividade geral e a teoria quântica fossem fundidas na teoria do campo unificado, uma tarefa que ele não conseguiu realizar. No início deste século, Einstein criou praticamente sozinho a teoria da relatividade e desempenhou um papel importante no desenvolvimento da mecânica quântica, mas afastou-se desta quando, na década de 1920, aspectos probabilísticos foram exaustivamente utilizados. Há uma frase famosa que lhe é atribuída, e que reflete seu sentimento frente a essa questão: "Deus não joga dados". No ensaio O sonho de Einstein, Hawking expõe as idéias básicas dessas duas teorias e mostra por que a mecânica quântica deixava Einstein tão insatisfeito.

O ensaio seguinte, A origem do universo, é soberbo, uma obra-prima de síntese e clareza para quem tem um mínimo de conhecimento de física, ou uma boa formação em outras áreas do conhecimento. É verdade que Hawking não é capaz de tudo tornar inteligível para o leigo, menos pela sua capacidade intelectual do que pela característica do tema que aborda. Por exemplo, inevitavelmente ele introduz o conceito de tempo imaginário, algo incompreensível para quem nunca estudou números complexos. A propósito, no ensaio Meu ponto de vista, Hawking menciona um ataque que sofreu de um filósofo da ciência por falar em tempo imaginário, mas ele acha que "esse filósofo estava confundindo números reais e imaginários, que são termos técnicos da matemática, com os termos real e imaginário tal como usados na linguagem comum".

Apesar do poder de síntese e da clareza do autor, o tema é intrinsecamente difícil. Acrescente-se a essa dificuldade uma que é própria das obras técnico-científicas traduzidas no Brasil. Em geral os tradutores desconhecem o tema e o jargão próprio utilizado no país, o que os leva a cometer erros grosseiros ou, no mínimo, à utilização de termos impróprios. Este é um fato que sistemática e incompreensivelmente se observa no país. A comunidade científica ficou horrorizada com a tradução de Uma breve história do tempo, e vai continuar se horrorizando, talvez em menor intensidade, com a tradução dessa nova obra de Hawking. Para preservar a excelente qualidade do original, dedicaremos um espaço para discutir alguns dos erros e impropriedades observados na tradução.

Errata não autorizada

Alguns dos erros mencionados aqui aparecem mais de uma vez, mas indicamos apenas uma das páginas em que ele ocorre.

Há um erro grave na página 83, quando se diz que: "... a estrela gerará calor em seu centro mediante a conversão de oxigênio em hélio". Na verdade, o que existe é a conversão de hidrogênio em hélio, como se vê no original, "...the star will generate heat at its center by converting hydrogen into helium".

A primeira teoria da relatividade de Einstein, que em inglês recebeu a denominação de special theory of relativity, é denominada pela maioria dos físicos brasileiros e portugueses como teoria da relatividade restrita. Denominação semelhante também é usada pelos físicos franceses. No presente livro a expressão foi traduzida como teoria da relatividade especial, uma alternativa geralmente utilizada quando a tradução é feita por leigos.

Uma impropriedade foi usada quando se traduziu quantum field theories como teorias de campo quânticas [p. 83], quando dever-se-ia ter usado teorias quânticas de campo. A expressão quantum mechanics, com as palavras separadas, significa mecânica quântica, conforme se usou na tradução, mas quando essas palavras são unidas por um hífen, quantum-mechanical, elas não podem ser traduzidas como mecânico-quântico [p. 87]. A literatura portuguesa consagrou a expressão quantum-mecânico.

Outro termo anglo-saxônico que causa muita confusão nas traduções é gravity. Algumas vezes esse termo é usado no sentido de gravidade, e outras vezes como gravitação. Mesmo em inglês, há as duas alternativas, gravity e gravitation. Há quem use o termo theory of gravitation, e quem use theory of gravity no sentido de teoria da gravitação. É necessário que o tradutor entenda o contexto para usar a denominação correta. Por exemplo, a constante G que Hawking denomina Newton’s constant of gravity, é denominada nos livros-textos brasileiros simplesmente como constante da gravitação universal, ou constante gravitacional, ou mesmo constante da gravitação de Newton, mas jamais como constante da gravidade de Newton, conforme foi usado na tradução [p. 84]. Ao longo do livro existem vários trechos onde se verifica o uso inadequado dos termos gravidade e gravitação.

Na p. 76 lê-se: "pano de fundo de microondas", resultado da tradução de "background of microwave radiation". Ora, a expressão original é conhecida pelos especialistas simplesmente como radiação de fundo, ou radiação cósmica de fundo. A expressão usada na tradução não faz o menor sentido.

Na p. 88, lê-se: "mensageiros da energia gravitacional", resultado da tradução de "carriers of gravitacional energy". No Brasil usa-se a expressão portadores da energia gravitacional.

Na p. 98, lê-se: "tamanho da carga elétrica", como tradução para "size of the electric charge". O termo size é aqui usado como a medida ou quantidade de alguma coisa, não como tamanho. Portanto, ficaria mais adequado usar, por exemplo, "magnitude da carga elétrica".

Na p. 119, lê-se: "É possível que o universo primitivo tenha passado pelo que chamamos de uma fase de transição". No original lê-se: "It is possible that the early universe underwent what is called a phase transition". Há um sério equívoco na tradução de phase transition, que não significa fase de transição, mas transição de fase, que é um fenômeno relacionado com a mudança de estado da matéria. Por exemplo, no caso da água há uma transição da fase líquida para a gasosa quando ela ferve, e da fase líquida para a sólida quando ela congela.


Voltar à página-portal de C.A. dos Santos
Veja outras resenhas