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Publicado em Zero Hora, Seção Mundo, 20/8/95
 
Em todo o mundo, a mídia vem dando ampla cobertura aos 50 anos do teste nuclear de Alamogordo e das bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki. No bojo dessa recapitulação histórica, vem à tona a questão da participação de físicos famosos na fabricação desses artefatos. Nesse particular, a informação veículada traz, não raro, sérios equívocos históricos, não apenas em relação ao projeto Manhattan, mas principalmente em relação às descobertas científicas correlatas. Por exemplo, não há matéria jornalística que não associe o nome de Einstein à bomba atômica (a rigor, bomba nuclear), deixando para o leigo a forte impressão de que ele teve participação direta na sua fabricação, nem que tenha sido através de alguns cálculos.

Não é fácil estabelecer todas as possíveis ligações, diretas e indiretas, entre a comunidade científica e o desenvolvimento da primeira bomba atômica. Será que poderíamos incluir os filósofos da antiguidade, que falavam do átomo, algo que eles não sabiam bem o que poderia ser? Será que poderíamos incluir os cientistas do início do século 19, que estabeleceram as leis do eletromagnetismo, fundamentais para o estudo das interações nucleares? O que dizer de Roentgen, que há um século descobriu os raios-X, que resultou, entre outras coisas, na descoberta da radioatividade? É óbvio que uma avaliação profunda e criteriosa teria que levar em conta todos esses aspectos. Todavia, o espaço disponível na mídia não comporta tal aprofundamento, tornando inevitável uma criteriosa seleção de fatos e personalidades históricas. Como ilustração, vejamos o que disse o professor Voltaire Schilling (ZH, 06/08/95, p. 28): "Desde que, em 1931, a dupla Cockroft e Walton conseguiu desintegrar o átomo, façanha considerada impossível, as coisas se precipitaram. De Enrico Fermi, passando por Einstein e Joliot-Curie, confirmava-se ser possível provocar uma reação em cadeia, que terminaria numa fantástica explosão atômica".

Não há, rigorosamente, qualquer erro nas informações do professor Schilling, apenas impropriedades históricas, na medida em que sobrevaloriza alguns fatos e personalidades, obscurecendo outros. O trabalho de Cockroft e Walton (na verdade, publicado em 1932) teve enorme repercussão, não exatamente pela desintegração, mas porque era a primeira vez que se produzia uma reação nuclear com partículas artificialmente aceleradas, algo que impulsionou extraordinariamente a pesquisa em física nuclear. Esse trabalho, realizado por dois jovens físicos, tinha um grande mentor: Sir Ernest Rutherford. Portanto, nem a experiência, nem as personalidades mencionadas desempenharam, no contexto do projeto Manhattan, o papel iconográfico atribuído pelo professor Schilling. Se tivéssemos que selecionar a experiência mais representativa para a fabricação da bomba atômica, certamente escolheríamos a fissão nuclear, descoberta em 1939 pelos alemães Otto Hahn e Fritz Strassmann. Foi na seqüência dessa descoberta que se evidenciou a possibilidade de uma bomba nuclear. Particularmente importante, foi a descoberta do plutônio, que resultava do bombardeio do urânio 238 por um feixe de nêutrons.

É óbvio que o casal Joliot-Curie (Irène e Frédéric), tem seu lugar na história pela descoberta da radioatividade artificial em 1932, mas, no contexto da bomba atômica, Chadwick, que no mesmo ano descobriu o nêutron, talvez tenha maior importância.

Quanto a Fermi e Einstein, da forma como foram mencionados no artigo do professor Schilling, fica para o leitor a sugestão de que tiveram participação equivalente nessa história. Nada mais equivocado! Prêmio Nobel de Física em 1921, Einstein jamais trabalhou em física nuclear. Fugindo da Alemanha nazista, chega aos EUA em 17 de outubro de 1933, época em que se interessa por três temas: teoria da relatividade geral, teoria do campo unificado e fundamentos da mecânica quântica. Era, por assim dizer, "quase-ignorante" em física nuclear. Em 14 de março de 1939, ao completar sessenta anos, Einstein deu uma entrevista ao New York Times, na qual declarava não acreditar que a energia liberada no processo de divisão do átomo pudesse ser usada para fins práticos. Em julho, depois de ouvir os comentários de Szilard e Wigner, e convencido de que os alemães poderiam fabricar uma bomba nuclear, ele exclamou: "jamais pensei nisso". Em 2 de agosto, Einstein escreveu a famosa carta para o Presidente Roosevelt, alertando-o para a possibilidade da bomba nuclear alemã. Aparentemente, esta carta não causou grande impressão no governo norte-americano; os recursos destinados para as pesquisas sobre fissão nuclear eram insignificantes. Por sugestão de alguns cientistas, Einstein escreveu outra carta para Roosevelt, em 7 de março de 1940. Mais uma vez, o Presidente não foi significativamente influenciado, pois só decidiu iniciar o projeto Manhattan em outubro de 1941. Do que se sabe, a participação de Albert Einstein nesse projeto resume-se aos fatos aqui mencionados.

Ao contrário de Einstein, Enrico Fermi, físico italiano, Prêmio Nobel de Física de 1938, teve intensa participação, não apenas nas pesquisas que antecederam a fabricação da bomba, como no desenvolvimento do projeto Manhattan, coordenando a equipe responsável pelo estudos referentes às reações em cadeia necessárias para a produção do plutônio. Outro renomado cientista, com destacada participação no desenvolvimento da bomba atômica foi o dinamarquês Niels Bohr, Prêmio Nobel de Física de 1922, responsável pela descoberta de que o urânio 235 é o único isótopo fissionável com nêutrons lentos.

Entre 1895 e 1925, a humanidade testemunhou um avanço científico jamais registrado. Da descoberta dos raios-X à teoria quântica, o homem fez em trinta anos o que não havia feito em dezenove séculos. Embora predominantemente desenvolvida na Europa Central (sobretudo na Alemanha), vê-se nesse período o início da sistemática colaboração científica internacional. O rompimento dessas relações, com a eclosão da segunda guerra mundial, colocando em lados opostos cientistas que antes colaboravam, deve ter originado incomensuráveis dramas pessoais, um tema suficientemente amplo para o espaço que aqui se dispõe. De qualquer forma, mesmo que brevemente, vale mencionar o caso de Werner Heisenberg, o brilhante físico alemão, Prêmio Nobel de 1932. Segundo depoimentos de contemporâneos, ele tinha uma posição francamente contrária ao nazismo, mas não conseguiu ficar neutro durante a guerra, engajando-se no comando de armas de Berlin. Depois da ocupação da Dinamarca, os nazistas criaram um Instituto de Cultura Germânica em Copenhague. Em outubro de 1941 esse instituto organizou um congresso de astrofísica, durante o qual Heisenberg deu conferências públicas. Convites foram enviados a Bohr e aos outros físicos da Universidade de Copenhague, que não compareceram à conferência do amigo. No pós-guerra eles voltaram a encontrar-se, mas jamais voltaram à antiga amizade.
 


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