Átomo quântico

Modelo de Bohr do átomo de hidrogênio

Instabilidade do átomo clássico

Como já discutimos, os seus experimentos levaram Rutherford a concluir que o átomo é composto de um núcleo massivo e pequeno, de carga +Ze, em torno do qual "gravitam" - sob a ação da força elétrica - Z elétrons de carga -e cada. O próximo passo era estabelecer as configurações e movimentos dos elétrons em tais sistemas.

É natural abordar esta tarefa considerando o caso de um elétron apenas, que corresponde ao átomo de hidrogênio (Z=1). Neste caso, haveria apenas a interação entre a elétron e o núcleo, e o problema seria essencialmente análogo ao problema do movimento de um único planeta em torno do Sol. Num estado ligado do átomo, o elétron efetuaria um movimento periódico de trajetória elíptica. Porém esta caracterização era, na melhor das hipóteses, uma aproximação pois uma carga em movimento acelerado emite radiação eletromagnética. No sistema gravitacional análogo, este fenômeno - a emissão de ondas gravitacionais - é desprezível por ser a interação gravitacional muitíssimo fraca. No caso do átomo, a perda de energia acarretada seria considerável e levaria a um rápido "colapso" do sistema para o seu estado de mínima energia, qual seja, o elétron coincidindo com o núcleo. Assim, a física clássica não parecia capaz de explicar como o átomo podia assumir uma configuração estável de tamanho da ordem de 10-10 m. Outro problema relacionado com este era que não parecia possível explicar porque os espectros atômicos e em especial, como vimos, o do hidrogênio, são formados de linhas discretas. Na teoria clássica da radiação, a freqüência da radiação emitida é igual à freqüência do movimento da carga emissora, que pode a priori assimir qualquer valor.

Estas considerações apontam para a necessidade de se explicar as escalas de comprimento presentes na fenomenologia, quais sejam o tamanho atômico e o inverso da constante de Rydberg, que caracteriza o espectro de radiação. Neste respecto, vale notar que a física clássica - entendida como abrangendo a relatividade restrita - associa apenas uma escala de comprimento a um elétron submetido à força Coulombiana produzida por um próton, qual seja, a distância rC para a qual a energia potencial iguala em valor absoluto a energia de repouso do elétron. Sendo a energia potencial dada por
(8-1)
a referida escala é especificada pela condição
(8-2)
da qual tiramos
(8-3)
A expressão raio clássico do elétron1 é comumente empregada para designar esta quantidade. Vê-se que ela é várias ordens de grandeza menor que o raio típico do átomo, confirmando a impossibilidade de explicar este por considerações apenas clássicas.

Já sabemos que a teoria quântica associa a cada partícula massiva uma escala de comprimento, qual seja, o seu comprimento de onda de Compton. Por conveniência, utilizaremos a versão "racionalizada" desta quantidade, que difere por um fator 2p da definição anteriormente introduzida e vale para o elétron
(8-4)
Assim, na mecânica quântica, dispomos de duas escalas de comprimento associadas ao elétron. A razão entre elas é independente da massa e vale
(8-5)
Esta é a famosa constante de estrutura fina2, que constitui-se numa medida adimensional - portanto independente do sistema de unidades utilizado - da intensidade da interação eletromagnética, ou ainda numa medida adimensional (do quadrado) da carga elementar. O valor relativamente pequeno desta constante permite afirmar que a interação eletromagnética é relativamente fraca3.

O surgimento na teoria quântica da constante adimensional pequena a abre novas perspectivas quanto à possibilidade de explicar o tamanho atômico e a escala do espectro de radiação. Dividindo-se qualquer uma das constantes dimensionais (8-3) ou (8-4) por potências adequadas de a, pode-se gerar escalas de comprimento nas faixas adequadas de Angströms e centenas de nanômetros. Num trabalho pioneiro, Niels Bohr4 apresentou um modelo que permite deduzir estas potências e demais fatores numéricos.

1] Mostra-se na teoria eletromagnética que deveria ser este o raio de uma distribuição esférica de carga para que a sua "auto-energia" - a resultante das energias potenciais de interação eletrostática entre elementos da distribuição - seja igual à energia de repouso do elétron.
2] Os níveis de energia do átomo - que vamos discutir logo em seguida - são na verdade separados em subníveis extremamente próximos. Este é o fenômeno de estrutura fina, e é no contexto da sua análise teórica que a constante a foi introduzida. Porém, deve-se reconhecer que o nome que lhe ficou atribuído por esta razão não faz jus à sua fundamental importância.
3] Este fato justifica o uso do procedimento de cálculo conhecido como teoria de perturbação na análise dos processos fundamentais regidos pelas interações eletromagnéticas. Por exemplo, por este método pode-se avaliar a intensidade relativa dos dois picos observados no efeito Compton.
4] Niels Henrik David Bohr, físico dinamarquês, 1885-1962.

Modelo de Bohr para órbitas circulares

Suposições

Pode-se caracterizar o modelo de Bohr como uma tentativa de conciliar o modelo clássico de Rutherford com as idéias quânticas de Planck e Einstein a respeito da emissão de radiação eletromagnética.

O modelo descreve um átomo no qual há apenas um elétron. Além do átomo de hidrogênio, cabem nesta categoria também átomos de elementos mais pesados mas que perderam por ionização todos os seus elétrons exceto um, por exemplo: hélio ionizado, lítio duplamemte ionizado, etc. Também inclui evidentemente os isótopos do hidrogênio, o deutério, cujo núcleo contém um próton e um neûtron, e o trítio, cujo núcleo contém um prótron e dois neûtrons. Por fim, o modelo pode também ser utilizado para descrever átomos exóticos, nos quais o elétron ou o núcleo é substituido por outra partícula. Por exemplo, substituindo-se o elétron por um múon1, obtem-se o hidrogênio muônico; substituindo-se o núcleo por um pósitron2, obtem-se o positrônio. A condição essencial para que o modelo possa ser utilizado é que o sistema seja composto de apenas duas partículas, de cargas opostas.

Apresentaremos o modelo na sua versão mais simples, na qual parte-se das seguintes suposições

  1. O elétron possui carga -e e o núcleo carga +Ze.
  2. A força responsável pela coesão do átomo é a interação Coulombiana entre o elétron e o núcleo.
  3. O núcleo pode ser considerado como um ponto fixo.
  4. As órbitas são circulares.
  5. A emissão e a absorção de radiação ocorrem em conformidade com a hipótese de Einstein, ou seja, pela emissão ou absorção de um fóton. Partindo desta hipótese, a teoria deve levar a resultados em conformidade com
    1. a fórmula fenomenológica de Rydberg-Ritz;
    2. as idéias clássicas, no limite adequado.
A suposição 3. é válida na medida em que o núcleo é muito mais pesado que o elétron. Para obter resultados muito precisos, assim como para tratar casos nos quais isto não vale (por exemplo, o positrônio), pode-se remover sem grande dificuldade esta aproximação, como discutiremos no fim deste capítulo.

A restrição às órbitas circulares permite um tratamento simples e revela-se adequada para deduzir as características essenciais do átomo. A extensão a órbitas elípticas introduz refinamentos interessantes, que foram estudados principalmente por Sommerfeld3, mas não serão considerados aqui.

A última suposição constitui a "parte quântica" do modelo, já que introduz a contante de Planck. Na presente abordagem, utilizaremos como guia na incorporação dos aspectos quânticos os dois elementos indicados, quais sejam, a fenomenologia do espectro de radiação, e a necessária compatibilidade da visão quântica com a visão clássica no domínio de validade desta. Há várias alternativas adotadas nos livros textos, mas a nossa escolha, além de manter-se próxima ao trabalho original do próprio Bohr, tem a vantagem de focalizar aspectos que permanecem válidos na mecânica quântica completa desenvolvida subsequentemente.

1] O múon é uma partícula semelhante ao elétron, mas cerca de 200 vezes mais pesada que este.
2] O pósitron é a antipartícula do elétron. Portanto, possui mesma massa, mas carga oposta (positiva).
3] Arnold Johannes Wilhelm Sommerfeld, físico alemão, 1868-1951.

Mecânica clássica

A energia potencial de interação Coulombiana entre o elétron e o núcleo é dada por
(8-6)
A força correspondente, radial e atrativa, possui módulo igual a
(8-7)
No caso de uma órbita circular, esta força produz apenas a aceleração centrípeta e a segunda lei de Newton toma a forma
(8-8)
Desta equação, podemos deduzir a expressão da energia cinética em função do raio da órbita:
(8-9)
Combinando este resultado com (8-6) obtemos a expressão da energia total em função do raio:
(8-10)
Na verdade, todas as grandezas caracterizando a cinemática podem ser escritas em termos do valor absoluto da energia total. A resolução da equação anterior fornece o raio da órbita:
(8-11)
Deste resultado, junto com (8-9), deduzimos a velocidade linear do elétron
(8-12)
Segue então também a expressão da sua velocidade angular
(8-13)
e do seu momentum angular
(8-14)


Órbita circular no átomo de um único elétron.

Emissão de radiação

Como vimos, o espectro de emissão (ou de absorção) do átomo de hidrogênio é constituído de séries de linhas cujos comprimentos de onda associados são dados adequadamente pela fórmula fenomenológica de Rydberg-Ritz, qual seja
(8-15)
com m = 1, 2, ..., n = m+1, m+2, ... e R uma constante.

Do outro lado, Einstein, inspirado pelo trabalho de Planck, postulou que a emissão de radiação eletromagnética se dá pela produção de um fóton de energia hn, acompanhada da diminuição correspondente da energia do sistema emissor. Se, seguindo Bohr, adotarmos esta hipótese, seremos inevitavelmente levados, para explicar o caráter discreto do espectro de linhas, a postular a quantização da energia do átomo. A linha de comprimento de onda lmn é então interpretada como devida à transição do átomo do estado de energia En para o estado de energia Em acompanhada da emissão de um fóton de freqüência angular wmn dada por
(8-16)
Comparando as relações (8-15) e (8-16), verificamos imediatamente que elas serão compatíveis se tivermos1
(8-17)
Assim chegamos à lei de quantização da energia dos estados (ligados) do átomo de um elétron. O número inteiro n é o primeiro exemplo de número quântico que encontramos, no caso mais especificamente denominado número quântico principal.

Até este ponto, a constante R é puramente fenomenológica, não possuindo nenhuma relação com as constantes fundamentais. Bohr estabeleceu tal relação atravês de vários argumentos, entre os quais destacaremos o princípio de correspondência. A nível qualititivo, este princípio simplesmente afirma que se a mecânica quântica é a teoria subjacente a todos os fenômenos físicos, ela deve reduzir-se em boa aproximação à fisica clássica nas situações nas quais é sabido que esta fornece uma descrição adequada. Mais especificamente, Bohr postulou que isto seria o caso no limite de grandes números quânticos. Para justificar esta conjectura no caso particular do átomo de um elétron, basta verificar que, seguindo a relação (8-17), os níveis de energia ficam muito próximos um do outro quando n fica grande. Pode-se notar também que de (8-11) e (8-17) segue que o raio do átomo aumenta com n. Assim, para n suficientemente grande, o sistema é de tamanho "macroscópico" e possui energia praticamente contínua. Neste limite, espera-se que ele possa ser descrito adequadamente pela física clássica.

Para explorarmos quantitativamente o princípio de correspondência, consideramos a relação entre as visões clássica e quântica da emissão de radiação pelo átomo. Na visão quântica, o átomo emite radiação ao "cair" de um nível de energia En para um nível de energia En-1, emitindo um fóton de freqüência angular
(8-18)
Realizando algumas manipulações matemáticas elementares, obtemos
(8-19)
onde na última expressão fiquemos apenas com os termos dominantes no limite de grande n. Do outro lado, se usarmos a lei de quantização (8-17) na expressão (8-13), obtemos para a freqüência angular de movimento do elétron no átomo a expressão
(8-20)
Ora, a teoria clássica estipula que a freqüência da radiação emitida deve ser igual à freqüência de movimento da carga emissora. Assim, recairemos na descrição clássica ser tivermos
(8-21)
Para que seja possível satisfazer o princípio de correspondência, é então necessário que ambas freqüências possuam a mesma variação com n, o que de fato é confirmado por (8-19) e (8-20). Ainda é preciso que os coeficientes presentes nestas expressões sejam iguais, o que nos leva à expressão da constante de Rydberg:
(8-22)
ou, utilizando as definições (8-4) e (8-5),
(8-23)
Assim, o modelo de Bohr fornece uma expressão da constante de Rydberg em termos das constantes fundamentais. O hidrogênio corresponde a Z=1 e neste caso obtemos
(8-24)
em excelente acordo com o valor fenomenológico (3-2).

Vale notar que, além de fornecer uma explicação do valor da constante para o hidrogênio, o modelo de Bohr também estipula que ela deve ser proporcional ao quadrado da carga do núcleo. Assim, o modelo prevê que o espectro do átomo do hélio ionizado uma vez deve ser semelhante ao do hidrogênio, afora uma mudança de escala que corresponde à multiplicação da constante de Rydberg por quatro. Na época em que Bohr realizou o seu trabalho, linhas observadas no espectro de certas estrelas eram atribuídas ao hidrogênio e interpretadas como associadas a valores semi-inteiros dos números m e n da fórmula fenomenológica. Bohr interpretou-as como indicando a presença de hélio, o que foi subsequentemente confirmado. Segundo Einstein, uma das mais convincentes evidências para a validade das idéias de Bohr.

1] A compatibilidade entre estas relações define a energia afora uma constante aditiva, que escolhemos nula.

O átomo quântico

Inserindo o resultado (8-23) na expressão (8-17), obtemos, em termos apenas das constantes fundamentais e do número quântico, a expressão das energias permitidas para os estados ligados do átomo:
(8-25)
Em especial, para o estado fundamental (n=1) do átomo de hidrogênio (Z=1), obtemos
(8-26)
Assim, a ordem de grandeza da energia de ligação do átomo é uma dezena de eV, e as energias de excitação serão claramente da ordem de eV. O cálculo acima deixa claro que a pequenez destes valores em comparação com a energia de massa do elétron deve-se ao pequeno valor da constante de estrutura fina, ou ainda, à fraqueza da interação eletromagnética.

É costumeiro representar os valores possíveis da energia num "diagrama de níveis". Cada valor da energia é representado por uma linha horizontal. Muitas vezes, transições entre níveis estão representadas por setas. Na figura abaixo estão representadas as transições associadas às primeiras linhas das séries de Lyman, Balmer e Paschen.


Esquema de níveis e espectro do átomo de hidrogênio.

No hidrogênio a temperatura ordinária, os átomos estão no seu estado fundamental (n=1). O espectro de emissão pode ser observado produzindo-se uma descarga elétrica no gás. Assim são induzidas transições para estados excitados (n>1). Os átomos excitados voltam ao estado fundamental atravês de uma série de transições, emitindo radiação. Assim, todas as séries podem ser observadas no espectro de emissão. Vale notar que várias das séries foram previstas corretamente pelo modelo de Bohr, antes de serem observadas.

Já no que diz respeito ao espectro de absorção, a temperatura ordinária, observa-se apenas a série de Lyman, na qual os átomos, que estão inicialmente no estado fundamental, são promovidos para um estado excitado pela absorção de um fóton. É possível observar a série de Balmer na absorção de radiação por hidrogênio a temperaturas muito altas, por exemplo no interior de certas estrelas. Isto se deve ao aumento da fração de átomos excitados com a temperatura, como pode ser facilmente deduzido da distribuição de Boltzmann.

As demais quandidades características do movimento do elétron no átomos podem ser facilmente deduzidas dos resultados anteriores. Utilizando (8-25), tiramos de (8-11) a expressão do raio da órbita de número quântico n:
(8-27)
onde fizemos uso da definição (8-5). No caso do estado fundamental do átomo de hidrogênio, isto resulta em
(8-28)
onde a notação rB faz referência à denominação raio de Bohr comumente atribuida a esta quantidade. Vê-se que, em conseqüência do pequeno valor da constante de estrutura fina, o raio do átomo é duas ordens de grandeza maior que o comprimento de onda de Compton do elétron. Neste sentido podemos dizer que, em razão da fraqueza da interação eletromagnética, o átomo é grande!

A velocidade do elétron na órbita de número quântico n segue imediatamente de (8-25) e (8-12):
(8-29)
Para o estado fundamental do hidrogênio, fica simplesmente
(8-30)
Este resultado justifica a posteriori o uso da mecânica Newtoniana na análise. Correções devidas à cinemática Einsteiniana existem, mas são bem pequenas.

Para deduzir o momentum angular orbital do elétron, podemos usar (8-14) e (8-17), ou aproveitar as expressões já obtidas do raio (8-27) e da velocidade (8-29), obtendo
(8-31)
onde (8-4) foi usada para simplificar a expressão. Concluimos que o momentum angular é quantizado em multiplos inteiros da constante de Planck racionalizada. A simplicidade deste resultado faz com que ele seja utilizado por vários autores como postulado inicial no desenvolvimento do modelo. No mínimo, sendo de fácil memorização, ele oferece um método rápido de derivação das regras de quantização das demais quantidades. Voltaremos a discutir (8-31) na avaliação crítica do modelo que apresentaremos no fim deste capítulo.