CLONAGEM NA SALA DE AULA: UM EXEMPLO DO USO DIDÁTICO DE UM TEXTO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA
 
 

Isabel Martins
(Apoio parcial CNPq)
Tatiana Galieta Nascimento
(Apoio CAPES/DS)
Teo Bueno de Abreu
(Apoio CNPq/PIBIC/UFRJ)
Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo

        Neste estudo descrevemos uma situação concreta de sala de aula na qual diferentes tipos de texto (jornalístico, divulgação e didático) foram utilizados para fins didáticos. Com base em um quadro teórico que toma a contribuição de abordagens comunicativas para análises de interações em sala de aula e que explora as relações entre discursos e textos, discutimos o uso didático de um texto de divulgação científica por meio de uma análise das re-elaborações discursivas realizadas pela professora. Os dados foram coletados por meio da gravação em vídeo de uma aula de Biologia numa turma de jovens e adultos na qual discutiu-se o tema da clonagem. Com base na análise da transcrição da aula mostramos como textos de divulgação podem funcionar como elementos motivadores ou estruturadores da aula; organizadores de explicações; desencadeadores de debate e; contextos para a aquisição de novas práticas de leitura, estabelecendo relações com o cotidiano dos alunos, ampliando seu universo discursivo, e permitindo ressaltar aspectos da natureza da prática científica. Entre as re-elaborações discursivas realizadas pela professora destacamos: adaptações de textos originais na preparação de textos para uso em aula, mais curtos e de caráter geral; a introdução de atividades de leitura (livre e dirigida); a utilização conjunta com textos didáticos.
Palavras-chave: discurso científico, ensino de ciências, divulgação científica, clonagem, recontextualização
 


Abstract

        This paper describes a science lesson in which different texts,such as newspapers, popular science magazines and textbooks were used as didactic resources. Our theoretical framework explores the relevance of communicative approaches to teaching and discusses the relationships between text and discourse. Data were collected through videotapes of a Biology lesson about cloning in an adult education class in Brazil. The analyses focussed on the teacher’s discursive re-elaborations and revealed a variety of roles played by a popular science text in a science lesson, such as motivation and lesson structuring, as well as, helpingorganise explanations, fostering debate, broadening reading practices and establishing relationships between scientific and everyday contexts. Amongst the discursive re-elaborations observed are strategies for adaptation of originals, the emphasis on reading activities and joint use of popular science texts and textbooks.
Key-words: scientific discourse, science education, popular science, cloning, recontextualisation
 
 

O problema: o uso de divulgação científica na escola

        Estudos recentes (SALÉM e KAWAMURA, 1996; ALMEIDA, 1998; ALVETTI, 1999; TERRAZZAN, 2000; MELO e HOSOUME, 2003) têm demonstrado o interesse da comunidade de pesquisadores em ensino de ciências no funcionamento de textos de divulgação científica dentro do ambiente escolar a partir de uma variedade de perspectivas e pontos de vista. Salém e Kawamura (1996) traçaram diferenças entre livros didáticos e textos de divulgação científica de física e concluem que a utilização de textos de divulgação pode contribuir para enriquecer o ensino "trazendo novas questões, abrindo a visão de ciência e de mundo do aluno e professor, criando novas metodologias e recursos de ensino, localizando o conteúdo ensinado em contexto mais abrangente, motivando, e mesmo aprofundando determinados assuntos" (idem, p. 595). Nesse mesmo sentido, Almeida (1998) e Alvetti (1999) buscaram, nos textos de divulgação científica, alternativas e complementações aos livros didáticos de Física. Em suas conclusões, Almeida (1998) apontou que artigos de divulgação podem ser uma alternativa para o professor que pretende fugir dos textos carregados de informações formais. Já Alvetti (1999), propôs a utilização dos artigos de divulgação sobre tópicos de física moderna e contemporânea, em particular da revista Ciência Hoje, na formação inicial e continuada de professores de Física. Ele discute que a apropriação de tais textos pelos professores seria fundamental para a inserção dos mesmos no ensino médio uma vez que são poucos os materiais didáticos disponíveis sobre física moderna e contemporânea. Na mesma perspectiva, porém numa situação de formação continuada, Terrazzan (2000) desenvolveu um projeto no qual professores de Física selecionaram textos de divulgação científica que pudessem ser abordados em cada série do ensino médio. Os professores organizaram um planejamento para a inserção de tais textos no ambiente escolar e desenvolveram e avaliaram as práticas de sala de aula. Segundo o autor, os resultados apontam para: um aumento significativo da participação dos alunos; a possibilidade de articular o conteúdo abordado nos textos com as informações que permeiam o cotidiano dos alunos; uma maior valorização do professor no que diz respeito a sua prática profissional e na segurança de discutir determinados assuntos em sala de aula. No caso específico da utilização de textos jornalísticos que abordam conceitos científicos, Melo e Hosoume (2003) discutem que tal fonte deve ser considerada nos diversos momentos da atividade pedagógica. Os autores comentam o uso de reportagens publicadas em jornais de grande circulação em aulas de Física e apresentam estratégias para sua inserção na sala de aula durante a introdução, o desenvolvimento e a avaliação de determinado tema científico. A escolha do momento de inserção, segundo eles, deve ter como referenciais o conteúdo, a linguagem, o tipo de texto, o aluno a que se destina e, principalmente, os objetivos buscados pelo professor com a atividade.

        Fora do Brasil percebemos que são raros os estudos que abordam a questão da divulgação científica no contexto escolar (RATCLIFFE, 1999; HALKIA et al., 2001; JARMAN e MCCLUNE, 2002). A investigação feita por Halkia et al. (2001), por exemplo, teve como objetivo explorar as opiniões e atitudes de professores primários e secundários gregos sobre o emprego de artigos de divulgação científica de jornais e revistas em suas aulas. Os autores apontam em seus resultados que a grande maioria dos professores (95%) utilizam textos de divulgação de alguma forma em suas explicações. Os professores apontam diferentes justificativas para esse uso: acreditam que tais textos apresentam conceitos científicos complexos de maneira mais efetiva; consideram que esses artigos contêm conhecimentos mais contemporâneos do que os livros didáticos; vêm tais textos como mais atraentes e motivadores para seus estudantes do que aqueles dos livros didáticos.

        O que tais estudos parecem sugerir é que a contribuição da divulgação científica para o ensino pode se efetivar, entre outras formas, a partir dos potenciais benefícios advindos do contato com diferentes formas de dizer e argumentar contidas nestes textos e através da discussão de temas recentes relacionados ao desenvolvimento da ciência e tecnologia, contextualizados no dia a dia da sociedade contemporânea. De fato, as próprias recomendações curriculares contidas nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Ciências Naturais enfatizam a importância da familiarização dos estudantes com uma variedade de tipos de textos científicos, o que possibilita a expansão de suas possibilidades de entendimento e de expressão através das linguagens da ciência (BRASIL, 2000).

        Embora a utilização de textos de divulgação científica como recurso didático complementar seja prática comum entre professores de ensino médio e de ensino fundamental, são poucos os estudos que investigam exemplos de sua utilização. Neste estudo pretendemos contribuir para um melhor entendimento da contribuição didática da divulgação científica analisando uma aula de Biologia na qual um texto de divulgação, originalmente concebido para fins não didáticos, é transformado e adaptado quando trazido para o contexto da sala de aula com o objetivo de auxiliar no ensino e na aprendizagem de conceitos científicos ao lado de recursos tradicionais como o livro didático. Nossas análises pretendem descrever diferentes movimentos de recontextualização discursiva que viabilizam a apropriação didática deste texto.
 

Quadro teórico de referência

        Desenvolvemos essa pesquisa com base num quadro teórico que toma a contribuição de abordagens comunicativas para análises de interações em sala de aula e que explora as relações entre discursos e textos (MARTINS et al 1999, MORTIMER e SCOTT 2002). Compreendemos o discurso como sendo dialógico e polifônico, relacionado a determinadas práticas sociais, assumindo uma certa estabilidade e constituindo-se em gêneros do discurso. Estes possuem um caráter sócio-histórico e encontram-se diretamente relacionados a diferentes atividades sociais (BAKHTIN, 1986, 2001).

        Consideramos que o discurso manifesta-se lingüisticamente por meio de textos, os quais podem ser entendidos como "formas empíricas do uso da linguagem verbal, oral ou escrita, e/ou de outros sistemas semióticos no interior de práticas sociais contextualizadas histórica e socialmente" (PINTO, 1999: 7). Além disso, os textos são articuladores de diferentes vozes (ORLANDI, 1999), as quais têm origem em diferentes discursos, constituindo-se em vozes sociais por serem pontos de vista específicos do mundo, caracterizadas por seus próprios sentidos e valores (LEMKE, 1995).

        Assim, um conjunto de textos que circula em determinados contextos materializa cada gênero do discurso. Por exemplo: o discurso da divulgação científica, que se encontra relacionado à atividade social de divulgar conhecimentos científicos e tecnológicos a públicos de não especialistas leigos, materializa-se na forma de diferentes tipos de textos, verbais e imagéticos, numa variedade de suportes (impressos, filmes, etc.).

        Entendemos que a divulgação científica realiza aspectos da prática social de comunicar ciência para o grande público, sem os mesmos compromissos do ensino formal (GOUVÊA, 2000). Além disso, a divulgação científica pode ser entendida como "uma atividade de difusão, dirigida para fora de seu contexto originário, de conhecimentos científicos produzidos e circulantes no interior de uma comunidade de limites restritos, mobilizando diferentes recursos, técnicas e processos para a veiculação das informações científicas e tecnológicas ao público geral" (ZAMBONI, 2001: 45). A divulgação científica está presente, nas sociedades modernas, em diversos espaços sociais e em múltiplos meios de comunicação como jornais, televisão, cinema, museus, exposições, livros e revistas. Por conta dessa variedade de veículos, existe uma grande diversidade de textos de divulgação, o que torna o gênero bastante heterogêneo.

        Pelas próprias definições que estamos adotando, notamos que os diferentes tipos de textos de divulgação não têm como finalidade o emprego no ambiente escolar (embora alguns deles, como a Revista Ciência Hoje das Crianças, sejam distribuídos nas escolas públicas). Logo, o uso de materiais de divulgação científica para fins de ensino em sala de aula implica uma recontextualização, processo em que significações próprias de contextos já existentes são reconfiguradas e reordenadas de acordo com os princípios de novos contextos (MARTIN e VEEL, 1998). A recontextualização torna-se possível na medida em que determinados gêneros do discurso têm como característica inerente uma maleabilidade que lhes confere a capacidade de adaptação e reformulação de modo a atender novos propósitos e contextos.

        De forma geral nossas investigações dizem respeito aos diferentes tipos e níveis de apropriação de uma variedade de textos. Neste estudo descrevemos uma situação concreta de sala de aula na qual diferentes tipos de texto (jornalístico, divulgação e didático) foram utilizados e, com base no quadro teórico descrito, concentramos nosso foco na utilização do texto de divulgação como recurso didático. Elegemos como objetivo principal analisar, dentre os diferentes movimentos de apropriação documentados, as re-elaborações discursivas realizadas pela professora. As apropriações realizadas pelos alunos não se constituem, portanto, no foco desta investigação embora a enunciação discursiva da professora seja sempre analisada no contexto de suas interações com os alunos.
 

Metodologia

        Desenvolvemos neste trabalho o que Minayo (1999) denomina como uma pesquisa social. Em outras palavras nossa investigação "reflete posições frente à realidade, momentos do desenvolvimento e da dinâmica social, preocupações e interesses de classes e grupos determinados" (MINAYO, 1999: 23). Ao realizarmos uma investigação social interpretativa, contemplamos uma característica básica de nosso objeto de estudo: seu aspecto qualitativo (idem).

        Por não pretendermos documentar e realizar comparações entre várias situações de uso de textos de divulgação científica, mas sim analisarmos com maior profundidade as possibilidades que um único texto pode viabilizar numa aula de ciências, optamos por adotar a metodologia de estudo de caso. De acordo com Gil (1999), "o estudo de caso é caracterizado pelo estudo profundo e exaustivo de um ou de poucos objetos, de maneira a permitir o seu conhecimento amplo e detalhado" (idem, p. 73). Os estudos de caso enfatizam a interpretação em contexto, buscam retratar a realidade de forma complexa e profunda, procuram representar os diferentes e às vezes conflitantes pontos de vista presentes numa situação social, utilizam uma linguagem e uma forma mais acessível do que os outros relatórios de pesquisa (LÜDKE e ANDRÉ, 1988).

        Buscamos relacionar o uso do texto de divulgação científica com o contexto escolar no qual ele circula por meio da observação de uma única aula de ciências que tinha como tema central a clonagem e que ocorreu numa turma de supletivo da sexta série do ensino fundamental em horário noturno em uma escola pública localizada no município do Rio de Janeiro. Além disso, foi realizada uma entrevista com a professora da turma para que algumas informações pudessem ser utilizadas como subsídios para nossas análises.

        Segundo relato da professora, a turma em questão, que já havia estudado conteúdos relacionados à biologia celular no início do ano letivo, manifestou, no decorrer do ano, interesse por questões relacionadas ao tema da clonagem (possivelmente por influência da novela "O Clone", exibida naquela ocasião pela Rede Globo de Televisão). Nesse contexto a professora planejou a aula observada utilizando três textos como recursos didáticos: uma reportagem da revista Superinteressante que tratava da questão da clonagem da ovelha Dolly realizada em 1997, uma reportagem do Jornal Extra (jornal carioca de grande circulação) que noticiava o lançamento de um concurso para escolher "clones" dos integrantes do programa de televisão "Casseta e Planeta" e um esquema de célula animal extraído de um livro didático.

        A aula teve duração de 45 minutos e foi filmada para posterior observação e transcrição, sendo esta desdobrada em diversas etapas. Primeiramente foi feito o registro das interações orais na íntegra a partir das gravações em vídeo. O uso do vídeo permitiu também o registro e posterior representação de elementos de comunicação não verbal relevantes na realização das falas dos sujeitos, tais como, gestos, posturas e expressões faciais. De forma a facilitar a legibilidade do texto escrito gerado, foi estabelecida uma notação para criar uma versão escrita do texto oral que introduziu formas de pontuação para representar pausas, continuidade da fala, etc. A transcrição envolveu ainda a proposta de um formato que permitisse incluir o registro de elementos contextuais relevantes. Na transcrição do texto verbal optou-se por representar as interações entre os participantes como turnos de fala (SINCLAIR e COULTHARD, 1978), marcando-os através de contadores de tempo. Organizada neste formato, a transcrição permitiu-nos descrever a variedade de eventos que compõem o cenário de comunicação em aula. Além disso, esta representação contempla nosso pressuposto de que o sentido da fala não está encerrado nas palavras, sendo construído nas interações sociais mediadas pela linguagem. A tabela abaixo mostra um fragmento de nossa transcrição.
 
Turno
Participante
Fala
Comunicação não verbal
Contexto
7
Professora
Clonagem. Olha só parece que ela adorou minha aula. Clonagem, mas assim o tema da novela qual é – quem rapidinho sabe como é que se chegou na clonagem, que que é, quem fez, alguém sabe contar mais ou menos?  Mostra o trabalho de uma aluna com título "Clonagem". Olha para a porta e faz sinal para aluna entrar em sala.

Tabela 1: Fragmento de transcrição

        A partir da transcrição, construímos um mapa dos diferentes eventos comunicativos de modo a organizar seqüencialmente as diferentes etapas de interação e atividades ao longo da aula. O mapa permite não só examinar o desenrolar das interações discursivas entre professora e alunos como também relacionar formas de explicar associadas a atividades realizadas em torno dos textos. Este recurso nos auxiliou na interpretação dos movimentos de recontextualização realizados durante a aula, facilitando o estabelecimento de unidades de análise em função de critérios como ênfases temáticas e padrões discursivos típicos de uma determinada seqüência discursiva. Em nossas análises documentamos dinâmicas discursivas relacionadas ao uso de cada um dos textos propostos pela professora. Neste trabalho comentaremos de forma mais detalhada aquelas que se referem à utilização do texto de divulgação científica"Como foi possível?" (DIEGUEZ, 1997) da revista Superinteressante que foi adaptado pela professora antes de sua inserção na sala de aula.
 

Resultados

Uma visão geral da aula: modos de engajamento

        Na tabela 2, a seguir, as diferentes ações realizadas por professores e alunos na sala de aula são organizadas de acordo com duas dimensões de atividades principais: aquelas que dizem respeito ao gerenciamento da aula e aquelas que dizem respeito à construção de explicações para conceitos. Este arranjo nos permite obter um panorama do desenvolvimento da aula bem como identificar as atividades associadas aos diferentes tipos de texto que foram utilizados pela professora. O quadro destaca as ações da professora, foco principal de nossas análises neste estudo, sem, no entanto, deixar de enfatizar que estas ações só fazem sentido se entendidas no contexto das interações que se estabelecem entre ela e seus alunos.

        Representamos, em negrito, algumas das estratégias discursivas e formas de explicação utilizadas pela professora ao longo da aula. Percebe-se a diferença nos formatos, na variedade e na ênfase das atividades relacionadas a diferentes textos. Por exemplo, a contribuição do texto do jornal se resume a uma discussão de termos na sua manchete, o texto da revista de divulgação é lido, comentado e enriquecido por meio de relações com o diagrama de célula animal. Embora nossa análise concentre-se na comunicação verbal, em itálico destacamos ações realizadas por outros modos semióticos diferentes da linguagem verbal (oral ou escrita) tais como: gestos, olhar, postura, desenhos etc. Estes elementos de comunicação não verbal estão presentes tanto nas ações de gerenciamento das atividades da aula (controle de disciplina, distribuição de tarefas, apelos por silêncio, organização do debate) quanto em ações relacionadas à construção de explicações (desenhos complementares, gestos).
 
Tempo
Turno
Espaço de Gerenciamento
Espaço explicativo (conteúdos/atividades)
Texto
00:00 a 02:26
01
Professora inicia a aula

Apresenta o pesquisador


 
 
 
 

Lê manchete da notícia do jornal.

Mostra jornal para alunos.

Pergunta sobre outros contextos relevantes (o que proporciona o aparecimento do tema novela).


 
 

Jornal

02:27 a 05:56
02-28
  Professora encaminha a discussão fazendo perguntas aos alunos.

Alunos participam respondendo às perguntas da professora comentando a clonagem feita na novela.

 
05:57 a 07:42
29-43a
  Professora seleciona entre as contribuições dos alunos idéias relevantes para estabelecer diferença entre sósia e clone.

Encaminhamento e conclusão da diferenciação entre sósia e clone.

07:43 a 16:07
43b-44

 
 
 
 

Distribui cópias com montagem da reportagem

Propõe leitura silenciosa e individual dos alunos

Professora introduz texto da revista.

Referência à clonagem da ovelha.

Mostra para os alunos cópia da montagem.

Exemplifica processos naturais de clonagem de espécies vegetais.

Relaciona a clonagem de animais à experiência da ovelha que é relatada na reportagem.


 
 

Revista Superinteressante

16:08 a 25:29
45-51a

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Olha para alunos que estão conversando e faz movimento positivo com a cabeça quando eles param de falar.

Comenta que ela fez montagem a partir da revista original e que o conteúdo selecionado servirá de base para a discussão.

Mostra capa da revista. Em seguida mostra primeira página da reportagem. Vira novamente a página.

Lê texto da revista.

Leitura do texto é interrompida sempre que a professora pretende elucidar termos e conceitos.

Explicação dos termos neologismo e clonar.
 
 

Faz relação entre conceito de fecundação mencionado no texto com o conteúdo explorado anteriormente em sala de aula.

Esclarece conceito de célula especializada.

Comenta escolha do nome da ovelha ignorando aspectos humorísticos do texto da revista.

Faz síntese das informações lidas.


 
 

Revista

Superinteressante

25:30 a 29:37
51b
Professora entrega aos alunos cópias com o diagrama de uma célula animal Destaca partes do desenho da célula (núcleo e cromossomos).

Aponta o núcleo da célula na cópia que está em sua mão.

Desenha no quadro de giz duas espirais que representam os cromossomos.

Caracteriza cromossomos como contendo as informações genéticas do indivíduo.

Explica o método seguido pelo cientista para clonar a ovelha (retirada do núcleo da célula mamária).

Durante essa explicação professora volta-se e aponta para o desenho do quadro de giz.


 
 

Diagrama de célula animal

29:38 a 30:57
51c
  Professora introduz a questão da clonagem humana.

Propõe discussão, ao perguntar aos alunos sobre quais seriam as conseqüências da clonagem humana.

 
30:58 a 36:50
52-84

 
 
 
 

Pede aos alunos que falem um de cada vez para que todos consigam entender o que determinado aluno diz.

Debate com participação de alunos e professora sobre conseqüências da clonagem humana em relação à propagação de doenças e à clonagem de criminosos.

Professora seleciona algumas das contribuições dos alunos para colocar novas questões para a turma.

Encoraja a participação dos alunos de forma diferenciada.

Professora faz esclarecimento do caráter genético do câncer devido à demanda de aluno.

Alunos trazem questão do envelhecimento precoce da ovelha clonada.

 
36:51 a 38:05
85
  Professora reúne informações até então discutidas e introduz o problema da questão ética e moral da clonagem.

Comenta que o clone apenas tem a mesma base genética que o outro ser e introduz a questão do perigo da seleção de raças.

 
38:06 a 44:05
86-119
  Debate sobre a questão da personalidade do clone e influência do meio. Professora ouve contribuições dos alunos e recupera algumas falas para direcionar a discussão.

Professora retoma o contexto da novela para exemplificar essa questão.

 
44:06 a 45:41
120
  Professora lê parte da reportagem (sobre mitos e realidade em torno da questão da clonagem) que alunos não possuem em suas cópias. 

Revista

Superinteressante

Tabela 2: Mapa dos eventos comunicativos da aula

        A aula tem início com uma breve apresentação do pesquisador pela professora: ela esclarece que sua pesquisa não possui qualquer relação com os procedimentos de avaliação escolar e expõe o interesse do pesquisador por textos de divulgação científica, reforçando a necessidade do grupo agir naturalmente (turno 1). A professora mostra uma reportagem da seção Revista (parte do jornal que aborda temas relacionado à televisão) do jornal que tem como título "Quem parece o Bussunda" e lê em voz alta a manchete e alguns trechos dessa reportagem. A professora estimula a participação dos alunos por meio de perguntas e algumas cenas da novela são comentadas por eles (turnos 2 a 28).

        Ela questiona os alunos se a reportagem do jornal não estaria fazendo referência a algum programa de televisão. Os alunos imediatamente mencionam a novela "O Clone". Várias contribuições são apresentadas por alunos que, falam ao mesmo tempo, misturando informações factuais e presumidas para recompor, coletivamente, a narrativa da novela de forma plausível. Vemos também que entidades científicas (ex. célula, DNA) são incorporadas e tomam parte nesta descrição dos alunos. Da mesma forma, procedimentos familiares (ex. inseminação artificial) são evocados na tentativa de explicar os mecanismos pelos quais um ser humano poderia ser criado a partir de outro. A avaliação da informação passa pela credibilidade da fonte (novela) e é feita num contexto mais amplo que inclui referências a informações obtidas nos meios de comunicação consideradas como relacionadas e relevantes. A discussão é conduzida pela professora que propõe perguntas, seleciona pontos relevantes das respostas obtidas, parafraseia as contribuições dos alunos, retoma e resume conclusões, num esforço de obter uma narrativa construída coletivamente e, dessa forma, transformar cada membro do grupo, e não somente aqueles que dialogam diretamente com ela, em parte interessada na pergunta que se desenha (qual é a diferença entre sósia e clone?) e na sua explicação. A professora não explora algumas sugestões dos alunos, por exemplo retirar o coração ou fazer uma inseminação artificial. Ao decidir por esclarecer estas questões em um momento posterior, ela garante que o fluxo discursivo não seja interrompido e deixa espaço para que Aline volte a expressar sua dúvida ("será que vai ser igualzinho a ele mesmo ou tem uma coisa?"), permitindo que a pergunta desejada se construa.
 
Turno
Participante
Fala
Comunicação

não verbal

15
Prof
Peraí, a Celina está contando pra gente o rapaz morreu aí?
Olha para a turma. Todos falam ao mesmo tempo. 
16
Celina
Aí tirou a célula dele com uma pinça / 
17
Aline
Deve ter tirado né.
18
Celina
E fez o clone dele.
19
Prof
Ah tá, então ele tirou uma parte da célula de uma pessoa que havia sido morta em um acidente, e criou um outro ser vivo. Isso?  
20
Aline
É  
21
Prof
é a mesma pessoa?  
22
Aluna 1
Só se for no DNA.  
23
Prof
Só se for no DNA?  
24
Aline 
A mesma pessoa é, mas se vai ser igual igualzinho a ele ...  
25
Aluno ?
Isso é exagero.  
26
Aluno ?
Isso é novela.  
27
Eliete
( ) nos Estados Unidos uma doutora pediu para fazer uma clonagem de seres humano. Já havia a de animais mas nos Estados Unidos ela foi impedida, né. Então é um tipo de debate que eles estão fazendo do direito das pessoas que sejam seres humanos criados dentro de laboratórios( ) Vários alunos falando ao mesmo tempo durante esse turno
24
Prof
Então a idéia seria essa, criar um ser vivo, um ser humano dentro de um laboratório, né. Mas pra isso, segundo vocês me disseram, ele precisou de uma parte desse ser, né, de um outro ser para pode criar um outro, e a parte que ele utilizou foi uma célula. Então no caso - por que vocês acham que ele precisou da parte do corpo de um ser vivo para criar outro? Qual seria a conseqüência disso? Este ser que nasceu ou na novela, né, no caso, vocês até perguntaram: será que vai ser igual ao outro? Por que vocês acham que ele seria igual? [ ] Pelo fato do cientista ter usado parte da do corpo do outro para formar ele? Será que é isso?  
25
Aluna 1
tirou o coração dele, né tira o coração para fazer /  
26
Aline
Ele fez uma inseminação artificial ( ) diz o homem ( ) é isso?  
27
Prof 
Digamos que sim, digamos que seja isso.  
28
Aline
( ) será que vai ser igualzinho a ele mesmo ou tem uma coisa   
29
Prof
Então olha só, vamos tentar entender uma coisa, primeiro ele precisou de uma célula né, de uma pessoa pra criar uma outra né, essa é a questão que a Elizabeth está apresentando. No caso da reportagem do jornal do Bussunda tá procurando seu clone, pode ser um clone que ele tá procurando?  

        Neste primeiro momento da aula observa-se que a professora ao dar voz aos alunos e procurar fazer uma relação entre o texto da reportagem do jornal e a novela, não só confere à aula um caráter mais dinâmico como também constrói a necessidade por uma explicação (MARTINS et alli, 1999). A análise deste fragmento mostra como a professora é capaz de explicitar a distinção entre sósia e clone, retificar o texto da reportagem, apresentar o tema da aula e expandir o foco da discussão.

        Após a conclusão da diferenciação entre os conceitos de sósia e clone, a professora introduz um novo texto, sendo este uma adaptação do original da revista Superinteressante, que trata da clonagem da ovelha Dolly. A professora distribui aos alunos cópias desse texto e solicita a eles que o leiam silenciosa e individualmente (turnos 43b e 44). Após cerca de seis minutos a professora inicia leitura do texto em voz alta. Essa leitura é pontuada por pausas e interrupções feitas para acrescentar informações ou elucidar conceitos. Nestes momentos a professora traz o discurso científico escolar relembrando conteúdos específicos vistos anteriormente e utilizando termos específicos (turnos 45 a 51a). Ao término da leitura, a professora faz uma síntese da explicação da técnica empregada na clonagem da ovelha e, com o auxílio de uma imagem retirada de um livro didático – um esquema de célula animal – e um desenho no quadro de giz, ela constrói uma explicação da técnica num nível molecular fazendo referência a estruturas celulares como o núcleo e o material genético. Os alunos recebem cópias do esquema e acompanham a explicação observando-o. Durante essa parte da aula os alunos se apresentam atentos e há o predomínio da fala da professora que se dirigia a eles freqüentemente colocando perguntas que visavam capturar e manter sua atenção e confirmar aspectos do seu entendimento (turno 51b).
 
Turno Participante Fala Comunicação

não verbal

51 Professora ... dessa xerox aqui de um livro que mostra pra gente uma célula, uma célula animal ta? Nesse corte aí, o que que nós estamos vendo? Nós estamos vendo a célula como um todo [ ] ( ) Bom, então tá, uma célula, né, tem um corte que a gente consegue ver o que tem dentro da célula. E é no corte mais central nós estamos vendo o núcleo da célula, ta? Olha só aqui, é o núcleo tão vendo? Já acharam o núcleo? Né? Taí a célula mostrando o núcleo. Vindo do núcleo não tem um material com aspecto mais ou menos assim? [ ] Não tem? Um material mais ou menos assim? E eles estão chamando esse material de que? De cromossomos, né? Estes cromossomos daqui são os DNAs, né, que tão sendo transplantados da célula da mama para o óvulo da outra ovelha né? E esse material aqui, ele é muito importante, porque é ele que detêm todas as informações genéticas do indivíduo. Então, por exemplo, a altura que a gente tem, o tipo do nosso corpo, a cor do cabelo é, se é gordo se é magro, se é branco ou se é preto, todas essas informações estão contidas nesse material que estão dentro dos núcleos né, dos núcleos da célula Começa a entregar as cópias com o diagrama da célula animal
 
 

Aponta o núcleo na folha
 
 
 
 

Desenha no quadro de giz duas espirais representando DNA
 
 
 
 
 
 

Volta ao quadro e sublinha as espirais de DNA

        A aula prossegue e é a professora quem introduz a questão da clonagem humana e estimula uma discussão sobre a possibilidade da clonagem de seres humanos (turno 51c). A discussão toma a forma de um caloroso debate acerca dos aspectos éticos e morais envolvidos na clonagem sempre referenciados, nas falas dos alunos, a contextos do cotidiano, tais como identificação de indivíduos ("... ia ser mole você vai preso e manda o clone", Júlio T. 59). O tema motiva discussões entre alunos (turnos 52 a 84 e 86 a 119) e segue-se então uma etapa da aula na qual há um debate sobre as conseqüências da clonagem humana. A professora traz paradiscussão as conseqüências éticas e morais que a clonagem humana traria para nossa sociedade (turno 85). Nesses momentos, algumas das questões levantadas pela professora são comentadas pelos alunos, e vice-versa, enquanto outras não têm qualquer desdobramento. De maneira geral, questões envolvendo dilemas éticos e morais são mobilizadoras do grupo e dão origem a debates nos quais os alunos participam ativamente. Muitos aproveitam o espaço de discussão para expressarem suas opiniões. As discussões contam com grande participação dos alunos, que expressam crenças e dúvidas a respeito do assunto, muitas vezes dialogando com o conteúdo da reportagem da revista Superinteressante. Vemos que nesta última parte de debate, como no início da aula, a professora continua a estimular e a valorizar a participação dos estudantes.
 
Turno Participante Fala Comunicação

não verbal

78
Celina
É como eu tava falando antes, o clone é a mesma pessoa e é a mesma célula, mesmo tudo. Por exemplo o que ela tava falando eu acho que é como ela falou, se vir mesmo a clonar as pessoas né, se eu quiser fazer um clone ...vai ser a mesma pessoa que eu sou, a mesma doença, pensamento.   
79
Aline 
É isso o que eu penso.  
80
Aluno ?
Mas é a mesma pessoa? A mesminha pessoa?  
81
Aline
Nós estamos discutindo  
82
Celina
É isso que a gente está discutindo ( )  
83
Júlio
É por isso que a Dolly ( ) é sério, ela tá envelhecendo precocemente, agora por quê?  
84
Eliete
Mas a Dolly na reportagem ela teve um defeito [ ] a cópia ficou meio desorientada ( )  
85
Professora
Olha só gente, vamos pegar por partes. Primeiro, vamos tentar entender se esse clone é a mesma pessoa. Esse clone é a mesma pessoa? A gente tem que ter um certo cuidado nisso aí, quer dizer, é o ser vivo que tem a base genética de um outro né? Dizer que é a mesma pessoa, a gente não pode afirmar ... Então olha só, então tem uma tensão aí. Essa questão da doença ... se a pessoa tem essa, essa carga genética que possa vir a se desenvolver um câncer ninguém vai clonar uma pessoa que tem uma carga genética dessa. Então aí ocorre o quê, a seleção. Então olha o perigo né, então eu tenho o poder de dizer assim: ó vou clonar pessoas que sejam desse tipo, não pode ter isso, não pode ter aquilo, então eu vou selecionar, né, o tipo que eu quero clonar,   
86
Aline
Que é racista né, por que uns podem e outros não?  
87
Aluno ?
É preconceito.  

        Discute-se muito sobre a possibilidade de determinação genética do comportamento social de um clone em contraposição aos efeitos da cultura e do meio social ("Imagine se clonar um marginal?"). É importante destacar que, nesta etapa, a participação dos alunos aumenta significativamente. Discute-se muito a relação entre a personalidade do clone e a influência do ambiente (turnos 86 a 119). Este debate é novamente relacionado com o conteúdo do texto de divulgação por meio da leitura da sua seção final (A imaginação entre os mitos e a realidade) que discute algumas confusões relacionadas à clonagem, explicita alguns de seus limites e finalidade e, demarca o estatuto da ciência ("depois da Dolly a imaginação de todo mundo disparou na linha de clonar gente. Vamos com calma. Muito do que se fala por aíé mito - mito é uma coisa meio fantasia - primeiro não é verdade que um cidadão poderia ressuscitar na forma de clone, ... não é aquele primeiro reencarnado, isto aqui é genética e não espiritismo." Professora T. 120). A professora aproveita este momento para concluir a aula.
 

Recontextualizações discursivas

        Nesta seção discutimos especificamente a utilização do texto de divulgação científica, relacionando aspectos de sua recontextualização didática à dinâmica discursiva observada no espaço de sala de aula.
 

        Escolhas e estratégias de re-elaboração textual

        Um primeiro nível de re-elaboração discursiva se deu antes da aula propriamente dita e diz respeito à natureza da adaptação do texto original da revista feita pela professora. O texto entregue aos alunos era na verdade um fragmento do artigo original contendo apenas sua primeira parte, na qual o autor explica resumidamente o processo de clonagem e avalia o impacto que tal avanço científico trouxe para o meio acadêmico e para a sociedade de uma forma geral. Assim, o conteúdo trabalhado com o texto não aprofunda muito em relação às técnicas do processo de clonagem e nem em relação à biologia celular. A adaptação feita reduz consideravelmente a extensão do artigo tornando-o mais apto para ser lido e discutido no tempo disponível para a aula. A opção por conservar o trecho inicial da reportagem, que introduz o assunto e sintetiza o argumento a ser desenvolvido em cada uma das seções seguintes, resulta num material coeso que permite o desenvolvimento e conclusão do assunto ainda que de forma geral e superficial. Isto, no entanto, não se constitui em problema na medida que a professora ganha a possibilidade de utilizar o texto como fio condutor de sua explicação sobre o processo de clonagem, selecionando quais aspectos deseja aprofundar através de mediações orais. Essa opção é justificada pela professora na medida em que ela declara:
 
Turno
Participante
Fala
Comunicação não verbal
45
Professora
"... Eu escolhi a primeira parte da reportagem porque ela irá servir de base para nossa discussão... Vira a página e mostra a continuação da reportagem. Vira novamente a página.

Volta para a primeira página da reportagem.

        A adaptação que a professora faz do artigo original exclui uma série de esquemas e textos que constavam na revista. Devido a esta opção, ela abre mão de algumas explicações mais detalhadas sobre questões específicas tais como as etapas da técnica de clonagem representadas em diagramas da estrutura da célula animal que identificam suas organelas. O único recurso imagético que foi mantido na adaptação feita pela professora é uma foto da ovelha Dolly que rapidamente foi reconhecida pela turma, demonstrando ser um elemento contextualizador e motivador para os alunos. Como conseqüência desta opção, o debate a seguir concentra-se quase que exclusivamente em temas relacionados a aspectos éticos e morais da clonagem humana e carece de fundamentação e informação científica que esclareçam algumas das questões levantadas. São exemplos destas questões: a existência de uma memória genética, a diferenciação entre as características genéticas e aquelas socialmente adquiridas, probabilidades e mecanismos pelos quais genes são transmitidos de geração para geração.

 
O texto em interação com outros textos
        O texto adaptado foi distribuído aos estudantes para uma leitura silenciosa. A seguir a professora iniciou uma leitura em voz alta dotexto. O papel representado pelo texto é de eixo estruturador das explicações nesta etapa da aula, introduzindo questões, fornecendo informações para serem trabalhadas com e pela turma. Ela introduz o texto citando a fonte, o fato dela ter feito uma adaptação para que coubesse em apenas uma folha e deixando claro que o conteúdo desse texto não esgota o assunto discutido.

        O início desta leitura marca uma mudança no padrão de interações discursivas da aula. Enquanto no período anterior à leitura a professora estimulava a participação dos alunos com perguntas dirigidas à turma, durante a leitura do texto é ela quem assume o controle da palavra mantendo-o por longos períodos de tempo (até 14 minutos) sem ser interrompida e sem estimular comentários dos alunos, apenas solicitando confirmação. Esta falta de interatividade não corresponde, no entanto, a uma ausência de dialogia na fala da professora (MORTIMER e SCOTT, 2002). Toda leitura é realizada tendo sempre seus alunos como interlocutores. Assim, as perguntas(muitas vezes seguidas de resposta pela própria professora), os momentos de pausa, as interrupções seguidas de explicações, as referências a contribuições dos alunos, as tentativas de recordar informações relevantes anteriormente aprendidas indicam a preocupação em organizar sua fala a partir do conhecimento que ela possui acerca dos seus alunos, de seus conhecimentos prévios e suas necessidades por informação, conforme ilustrado pelas citações abaixo. Na transcrição os trechos sublinhados correspondem às passagens do texto lidas pela professora:
 
Turno
Participante
Fala
45
Professora
"Bem começamos pelo verbo clonar (...) esse neologismo... – Neologismo é uma palavra nova, uma palavra inventada, tá? Uma palavra que não existe e ela foi inventada tá, uma palavra que ainda não existe e ela foi inventada (...) outro exemplo de neologismo. Aquela música do Djavan que ele diz assim é como querer caetanear o que há de bom, lembram dessa música?

...

"... o cientista escocês fez o embrião com os genes de uma célula comum, ou melhor especializada – Por que que ele chama de célula especializada? Porque nossas células são especializadas (...) as células epiteliais têm a função delas, as células do fígado têm sua função...

...

"Desde 1978 vários tipos de animais são copiados – como a colega aqui já tinha dito pra gente no início – e se não fosse proibido já teriam sido clonados".

        Além de fazer referência a contextos culturais ("aquela música do Djavan que ele diz assimé como querer caetanear o que há de bom"), algumas das mediações introduzidas pela professora podem ser entendidas como formas de estabelecer nexos entre as informações do texto e tópicos curriculares. Nesta tentativa estabelece-se uma valorização de conhecimentos prévios dos estudantes adquiridos no contexto da instrução formal, como ilustra o fragmento de transcrição abaixo:
 
Turno
Participante
Fala
45
Professora
"... embriões você sabe, são aqueles pequenos ovos gerados a partir do encontro de um óvulo com um espermatozóide — não foi isso que nós aprendemos? Um novo ser nasce na hora exata em que o espermatozóide encontra-se com o óvulo, aí nasce o embrião."

        Em outras situações as explicações objetivam aproximar o conteúdo do texto com a realidade dos alunos. No entanto, suas intervenções diminuem também o tom sensacionalista do texto. Essa reportagem foi escrita logo após o anúncio do feito da clonagem e por isso ela carrega uma grande dose de espetacularização do feito e de enaltecimento da figura do cientista Ian Wilmut, pesquisador responsável pela criação da ovelha Dolly. Durante a explicação que ela faz do processo de clonagem ela suprime tal característica do texto. Sua fala coloca a descoberta científica como uma técnica passível de ser reproduzida por qualquer outra pessoa tanto que em momento algum da explicação é mencionado o nome do cientista que desenvolveu esse processo.
 
Texto Superinteressante
Fala da Professora
"O que Wilmut conseguiu de extraordinário foi quebrar dois tabus. Primeiro, eliminou de seu clone a necessidade do encontro do espermatozóide com um óvulo.... aí veio o secundo e mais espetacular tabu: o cientista fez o embrião com os genes de uma célula comum, ou melhor, especializada". "....o que a gente viu aqui foi que um cientista, ele usou uma técnica para clonar um animal a partir de outro (...) ele pegou o óvulo de uma ovelha e de uma outra ele pegou somente uma célula (...) desta célula ele tirou uma substância, um material que existe lá dentro do núcleo que a gente chama de DNA". 

        Com essa postura, a professora reafirma a ciência como um meio de construção de conhecimento que envolve a reprodutibilidade dos experimentos, o que permite, inclusive, o aperfeiçoamento desses saberes. Essa postura pode estar relacionada ao processo de assimilação do discurso sobre a clonagem pela comunidade científica pois, passados cerca de cinco anos do nascimento de Dolly, a comunidade acadêmica já está amplamente familiarizada com o conceito da clonagem induzida. Além disso, a sociedade em geral e o discurso do senso comum vêm gradualmente incorporando e assimilando conceitos relacionados à genética e à técnica da clonagem (testes de DNA, transgênicos, etc.), como ficou atestado pela própria temática da novela "O Clone". Deve-se, no entanto, ressaltar que nem sempre essa aproximação é feita de maneira adequada do ponto de vista científico seja pelos textos da mídia seja pelos leitores, dando margem a vários erros conceituais e gerando entendimentos e visões equivocadas da questão. A ação da professora nesse contextoé crucial para esclarecer essas informações e atribuir aos alunos competências que lhes possibilitem lidar com essas informações que cada vez mais se tornarão mais próximas de sua realidade.

        Após a leitura, a professora retoma a questão do processo de clonagem só que agora fazendo uso do esquema de célula para recapitular com a turma as etapas e os elementos envolvidos na clonagem da ovelha Dolly. O esquema também auxilia na explicação das bases celulares microscópicas desse processo. Além do esquema, a explicação do texto adaptado é complementada com desenhos no quadro de giz, o que reforça a natureza multimodal da construção discursiva do conceito de célula. Esta é a etapa da aula em que a professora preenche lacunas deixadas pelo texto tais como a explicação do porque do clone não ser geneticamente igual à sua "mãe" e acrescenta informações ao texto como, por exemplo, a de que o DNA guarda as informações necessárias ao desenvolvimento de um indivíduo.

        Finalmente, na última etapa da aula, o debate, a professora re-elabora discursivamente algumas das contribuições dos estudantes enquanto algumas outras são ignoradas. Ao fazer isso a professora marca diferenciações entre o discurso científico e o discurso do senso comum.
 
Turno
Participante
Fala
63
Aluna L
"A conseqüência (...) pode a pessoa nascer defeituosa ou com doença mental ( ) não sabe como vai ser a pessoa ( ) imagine se clonar uma marginal? Qual seria a conseqüência?"
64
Professora
"Olha só, vamos pegar a colocação da L. Ela disse o seguinte que, a preocupação que ela tem, é (...) clonando-se um marginal, como seria a sociedade (...)"

        Devido à postura adotada pela professora no decorrer da aula, percebemos o esforço em seguir um planejamento preestabelecido evitando alterar o rumo desejado da discussão. É possível notar que ela é responsável pelo direcionamento dos assuntos abordados durante toda a aula, fazendo isso por meio de um discurso altamente estruturado. Percebemos então que, de forma geral, durante toda a aula a professora mantém o controle da palavra e fala muito mais do que os alunos. Todo o discurso da professora é pontuado por perguntas, as quais apresentam duas funções distintas: direcionam a discussão ou ajudam a fazer um elo entre os eventos na construção de um texto coletivo.
 

Considerações finais

        Esse estudo ilustra alguns exemplos de tipos de movimentos discursivos necessários para se didatizar um texto de divulgação científica a partir da análise de um caso exemplar. Nele, foi possível observar que a utilização desse gênero textual em sala de aula exige um intenso trabalho de re-elaboração textual que depende da consideração de características contextuais, das relações entre as práticas sociais de divulgar e de ensinar ciências, das finalidades e objetivos do ensino, dos interesses dos alunos, entre outros.

        Da mesma forma que existe uma multiplicidade de formas de se divulgar ciência, vimos que há uma enorme diversidade de possibilidades de utilização dos textos de divulgação na sala de aula e que, em todas elas, a presença do professor como mediador foi fundamental. Qualquer tentativa de se estabelecer um único método de se trabalhar com textos de divulgação ficaria muito aquém das possibilidades que os próprios textos oferecem.

        Nossos resultados mostraram que, nesta aula, o texto de divulgação funcionou como um elemento estruturador; ajudando a motivar perguntas e organizar explicações; elementos. A leitura do texto e as mediações estabelecidas por professora e alunos permitiram contextos para a aquisição de novas práticas de leitura e desencadearam debates que tiveram alto grau de participação dos alunos. Assim, foi possível estabelecer relações com o cotidiano dos alunos, ampliar seu universo discursivo, e ressaltar aspectos da natureza da prática científica.

        Entre as re-elaborações discursivas realizadas pela professora destacamos: a transformação do texto original, por meio da seleção e destaque para conteúdos básicos e de caráter geral e a conseqüente adequação de sua extensão ao contexto do trabalho de sala de aula; a introdução de atividades de leitura (livre e dirigida) e a utilização conjunta com outros textos, didáticos e de jornal. Estas escolhas podem ser entendidas como relacionadosàs pressões impostas pelo contexto de sala de aula, tais como, a duração fixa das aulas, os compromissos com programas de curso, a necessidade de avaliação.

        Este estudo também nos permitiu ver que o uso do texto de divulgação científica como recurso didático exigiu do professor um papel ativo de re-elaboração dos conteúdos científicos apresentados pelo texto. Em outras palavras, para um completo aproveitamento de seu potencial explicativo fizeram-se necessários vários tipos de mediações didáticas. Estas mediações implicaram uma variedade de estratégias de questionamento, análise e síntese de informações, utilização de recursos visuais. Vimos que o uso dos textos pareceu contribuir para uma efetiva participação dos alunos, iniciando temas, propondo perguntas para discussão e estabelecendo relações entre contextos de informações relevantes, escolares e extra-escolares.

        O presente trabalho estende investigações anteriores que discutiram critérios para seleção e relatos de utilização de textos de divulgação científica em salas de aula (ROCHA e MARTINS, 2002), e ilustra o potencial de práticas de recontextualização na realização de uma abordagem de ensino que integra dimensões científicas e sociais no contexto do ensino escolar. Por tratar-se de um estudo de caso temos que ser particularmente cuidadosos no que diz respeito às possibilidades de extrapolar inferências ou generalizar nossos resultados. No entanto, embora nosso estudo diga respeito a um exemplo particular, procuramos em nossas análises relacionar escolhas localizadas num contexto específico do ensino de um determinado conteúdo a questões mais gerais envolvendo os objetivos deste ensino, a expansão do universo textual dos alunos e a consideração de aspectos da natureza da ciência. Assim, não pretendemos fazer generalizações, mas sugerir que, entre os desdobramentos deste trabalho, está a avaliação do potencial de seus resultados para subsidiar o desenho de futuras ações, envolvendo estratégias de uso de textos de divulgação científica em contextos de pesquisa, de intervenção e em situações de formação inicial e permanente de professores de ciências.
 

Agradecimentos

        Os autores agradecem a Marcelo Borges Rocha pela organização da coleta de dados e pelos valiosos comentários feitos ao longo da análise.

Referências

ALMEIDA, M. J. P. M. O texto escrito na educação em física: enfoque na divulgação científica. In: ALMEIDA, M. J. P. M. e SILVA, H. C. (Orgs.) Linguagens, leituras e ensino da ciência. Campinas, SP: Mercado de Letras, Associação de Leitura do Brasil, 1998.

ALVETTI, M. A. S. Ensino de física moderna e contemporânea e a revista Ciência Hoje. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Centro de Ciências da Educação. Florianópolis: UFSC, 1999.

BAKHTIN, M. M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986.

_______ . (2001) The problem of speech genres. In: JAWORSKI, A. & coupland, n. (ed.) The discourse reader. London and New York: Routledge.

BRASIL, SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental. Brasília: MEC/SEF, 2000.

Dieguez, F. Como foi Possível? Revista Superinteressante, abril. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1997.

GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1999.

Gouvêa, G. A Divulgação Científica para Crianças: o caso da Ciência Hoje das Crianças. Tese de Doutorado. Departamento de Bioquímica Médica, Instituto de Ciências Biológicas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000.

HALKIA, KR; THEODORIDOU, S. e MALAMITSA, K. Teachers’ views and attitudes towards the communication code and rhetoric used in pres science articles. Proceedings of the Third International Conference of the European Science Education Research Association. Thessaloniki, Grécia, 21-25 de ago., 2001.

JARMAN, R. e McCLUNE, B. A survey of the use of newspapers in science instruction by secondary teachers in Northern Ireland. International Journal of Science Education. London, vol. 24, n. 10, p. 997-1020, 2002.

LEMKE, J. L. Discourse and social theory. In: _______. Textual politics: discourse and social dynamics. London: Taylor & Francis, 1995.

LÜDKE, M. e ANDRÉ, M. E. D. Pesquisa em educação. Abordagem qualitativa. São Paulo: EDU, 1988.

MARTIN, J. R. e VEEL, R. Reading science: critical and functional perspectives on scientific discourse. London: Routledge, 1998.
 

MARTINS, I.; OGBORN, J. e KRESS, G. Explicando uma explicação. Ensaio, vol. 1, no 1, 29-46, 1999.
 

MELO, W. C. e HOSOUME, Y. O jornal em sala de aula: uma proposta de utilização. XV Simpósio Nacional de Ensino de Física. Curitiba, 21-26 de mar., 2003

MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 6 ed. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 1999.

MORTIMER, E. F. e SCOTT, P. H. Atividade discursiva nas salas de aula de ciências: uma ferramenta sociocultural para analisar e planejar o ensino. Investigações em Ensino de Ciências. Porto Alegre, v. 7, n. 3, 2002.

ORLANDI, E. P. Análise do Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 1999.

PINTO, M. J. Comunicação e discurso: introdução à análise de discursos. São Paulo: Hacker Editores, 1999.

RATCLIFFE, M. Evaluation of abilities in interpreting media reports of scientific research. International Journal of Science Education. London, vol. 21, n. 10, p. 1085-1099, 1999.

ROCHA, M. B. e MARTINS, I. O uso didático do texto de divulgação científica segundo professores de ciências. Coletânea do 8o Encontro Perspectivas do Ensino de Biologia [CD-Rom]. São Paulo, 20-22 de fev., 2002.

SALÉM, S. e KAWAMURA, M. R. O texto de divulgação e o texto didático: conhecimentos diferentes? Atas do V Encontro de Pesquisadores em Ensino de Física. Sociedade Brasileira de Física. Belo Horizonte, 2-6 de set., 1996.

SINCLAIR, J. e COULTHARD, M. An introduction to discourse analysis. London: Falmer Press, 1978.

TERRAZAN, E. A. O potencial didático dos textos de divulgação científica: um exemplo em física. In: ALMEIDA, M. J. P. M. e SILVA, H. C. (Orgs.) Textos de palestras e sessões temáticas. III Encontro Linguagens, Leitura e Ensino da Ciência. Campinas, SP: Graf. FE / UNICAMP, 2000.

ZAMBONI, L. M. S. Cientistas, jornalistas e a divulgação científica: subjetividade e heterogeneidade no discurso da divulgação científica. Campinas, SP: Autores Associados, 2001.

Este artigo já foi visitado   vezes desde 14/07/2004

    IENCI@IF.UFRGS.BR

    Return to the top

    Return to Main Page