A PERTURBAÇÃO DO CONTRATO DIDÁTICO E O
GERENCIAMENTO DOS PARADOXOS
(Perturbation of the didactical contract and the management of the paradoxes)


Elio Ricardo
Programa de pós-graduação em educação científica e tecnológica – UFSC
Ccntro de educação - Campus trindade
8804-900 Florianópolis SC
elio_ricardo@hotmail.com

Ione Slongo
Programa de pós-graduação em educação - UFSC
Ccntro de educação - Campus trindade
8804-900 Florianópolis SC
ione@ced.ufsc.br

Maurício Pietrocola
Faculdade de Educação – USP
Av. da Universidade 308, 05508-900
São Paulo - SP
Mpietro@usp.br
 

Resumo

        O Contrato Didático proposto por BROUSSEAU (1986) descreve as relações entre o professor, o saber e o aluno, e faz alusão a um paradoxo existente na relação didática: o professor deve proceder de maneira a não deixar tudo explícito ao aluno para não colocar em risco sua aprendizagem; por outro lado, se ele não faz a necessária mediação, rompe com o contrato. Em uma perspectiva em que o professor se coloca como mediador do processo de ensino, um de seus papéis é o gerenciamento de tal paradoxo. Este trabalho pretende mostrar que uma das maneiras de gerenciar tal paradoxo pode ser pela introdução de pequenas “perturbações” na estabilidade do contrato, a partir de problemas fechados com inovações inesperadas pelo aluno, tais como: número excedente de dados, supressão de dados conhecidos do aluno ou situações que solicitam a articulação de conhecimentos. A perturbação de problemas tradicionais demandará uma reflexão qualitativa e investimento criativo, de professor e aluno, evitando automatismos e mantendo-os abertos a avanços sem, contudo, romper com o Contrato Didático estabelecido.
Palavras-chave: Ensino por Mediação, Gerenciamento dos Paradoxos, Perturbação do Contrato Didático.

Abstract

       The Didactic Contract proposed by BROUSSEAU (1986) it describes the relationships among the teacher, the knowledge and the student, and he/she refers to an existent paradox in the didactic relationship: the teacher should come in a way to not to leave everything explicit to the student for not placing in your risk learning; on the other hand, if he doesn't make the necessary mediation, it breaks up with the contract. In a perspective in that the teacher is placed as mediator of the teaching process, one of your roles is the administration of such paradox. This work intends to show that one in the ways of deal with such paradox can be for the introduction of small " disturbances " in the stability of the contract, starting from closed problems with unexpected innovations for the student, such as: spare quantity of data, the student's data acquaintances' suppression or situations that request the articulation of knowledge. The disturbance of traditional problems will demand a qualitative reflection and creative investment, of teacher and student, avoiding automatisms and maintaining them open to progresses without, however, to break with the established Didactic Contract.
Key-words: teaching by mediation, paradox management, perturbation of didactical contract

I – INTRODUÇÃO

        As relações que ocorrem dentro da sala de aula entre os sujeitos envolvidos no processo de ensino apresentam algumas regras, implícitas e explícitas, que procuram estabelecer as responsabilidades que cada um tem perante o outro, em um contexto histórico e social permeado por fatores internos e externos, a fim de viabilizar práticas que possibilitem a apropriação do conhecimento pelo aluno.

        No início do ano, logo nas primeiras aulas, há um jogo de expectativas entre professor e alunos. Existe um período em que um estuda o outro, tentando descobrir seus interesses, estratégias e intenções. Embora todos tenham suas relações pessoais com os saberes o professor é o portador de um saber paradigmático (física, química, biologia) resultado de uma transposição didática. O aluno ainda não tem relação com esse tipo de saber e depende da mediação do professor, estando sujeito a um alto grau de controle por parte deste. Isso implica uma assimetria entre professor e alunos na relação didática que se estabelece no espaço e no tempo escolar.

        Essa assimetria inclui ainda um certo grau de confiança que o aluno deposita no professor ao supor que este tem a chave para a resolução dos problemas que propõe para a classe. O aluno confia que o professor fará as escolhas adequadas e dentro de um grau de exigência cognitiva compatível com o nível de ensino em questão. Outro fator presente nessa assimetria é o fato de que o professor detém uma perspectiva futura do que se supõe que o aluno irá aprender, já que conhece todo o programa. Ao passo que o aluno tem apenas a noção do tempo presente. Essa confiança é uma das bases que sustentam a relação didática, sem a qual haverá uma ruptura. Tal assimetria entre professor e aluno,  apoiada principalmente nas distintas relações com os saberes, é a razão da existência da relação didática.

        Os alunos que percebem as regras do jogo logo se tornam “competentes” e se saem bem diante das atividades a eles propostas, bem como das exigências cognitivas implícitas. Eles logo identificam, por exemplo, o que será exigido na avaliação e o que não será avaliado. O problema é conseguir identificar o que é importante para a disciplina que está sendo ensinada e o que é irrelevante. Quando o aluno compreende isso ele “entrou no jogo”. Entretanto, alguns alunos não conseguem fazer essa distinção e não se encontram no interior da relação didática. Esses passam a apresentar dificuldades de aprendizagem e podem não aderir ao projeto escolar. Sentir-se-ão deslocados na relação didática. Em alguns casos, em que o professor possui uma certa sensibilidade e percebe que alguns alunos estão fora do jogo, até se consegue inclui-los, através de orientações e atividades que possibilitem um cuidado especial. Todavia, em uma classe de quarenta alunos ou mais, tal procedimento fica prejudicado.

        Por outro lado, também aquele aluno que adquire a percepção dos assuntos exigidos nas avaliações, ou seja, aquele que joga o jogo, também corre riscos. Ao mesmo tempo em que ele se sai bem na relação didática, livra-se bem das avaliações, pode estar engessado em um processo padronizado, fechado a qualquer tipo de inovações. Qualquer pequena mudança nesse jogo pode colocar também esse aluno para fora da relação. Aliado a isso, não há garantias de aprendizagem nesse aluno, pois ele pode muito bem estar seguindo duas lógicas: aquela da sala de aula, ou seja, em dar as respostas que o professor quer; e aquela lógica de fora da escola, na qual se mantêm suas concepções alternativas sobre a leitura que faz da “realidade”. Esse engessamento dificulta essa relação que não é apenas entre professor e aluno, mas também entre os saberes.

        Como mediar esses dois mundos? Ou seja, aquele mundo paradigmático, das disciplinas científicas, e o mundo dos alunos? Como por o aluno em jogo na relação com os saberes paradigmáticos? Esse assunto é muito importante no processo de aprendizagem e deveria ser tratado também na formação inicial dos professores, pois confiar na sensibilidade individual de cada profissional não parece ser uma boa estratégia. Além disso, metodologias padronizadas dificultam colocar a relação didática em perspectiva, ou seja, o professor ao ser o mediador entre o aluno e os saberes paradigmáticos coloca o aluno em jogo na relação didática e se espera que em situações fora do ambiente escolar ele continue suas relações com os saberes, a fim de enfrentar situações novas e, a partir da leitura de seu entorno social, buscar soluções mais adequadas. Desse modo, torna-se necessário buscar alternativas pedagógicas que viabilizem colocar o aluno em jogo na relação didática, sem engessa-lo em atividades padronizadas, a fim de proporcionar-lhe oportunidades de estar aberto a inovações.
BROUSSEAU (1986) analise as relações entre o professor e o aluno diante do saber vivenciadas em sala de aula e forja a denominação Contrato Didático com o objetivo de definir uma abordagem teórica sobre elas. Nosso trabalho, ao analisar duas situações didáticas, pretende fazer uma discussão sobre as formas de gerenciar o contrato didático em sala de aula, em especial em relação ao paradoxo definido por Brousseau: de um lado, o professor precisa orientar sua prática de modo a não deixar tudo explícito ao aluno, para não colocar em risco a aprendizagem; de outro lado, se o professor não faz a necessária mediação, rompe com o contrato na relação didática.
 

II – CONTRATO DIDÁTICO: UM INSTRUMENTO DE ANÁLISE DA AÇÃO PEDAGÓGICA

        Para estruturar a noção de Contrato Didático BROUSSEAU (1986) parte da idéia, inicialmente utilizada no âmbito da Didática da Matemática, de que há um conhecimento de referência que ao ser socializado configura uma relação didática, a qual se coloca principalmente a serviço do aprendizado do aluno. O gerenciamento dessa relação que envolve o professor, o aluno e o saber, é feito através de um conjunto de regras que normatizam o sistema de obrigações que cada um dos participantes deve desempenhar numa situação de ensino. Em analogia direta com a noção de “Contrato Social” proposto por Rousseau (1762), BROUSSEAU dá a esse conjunto de regras o nome de Contrato Didático e o caracteriza como:

        ... uma relação que determina, - explicitamente por uma pequena parte, mas sobretudo implicitamente, - a cada parceiro, professor e aluno, a responsabilidade de gerir aquilo que, de uma maneira ou de outra, ele terá de prestar contas perante o outro. Esse sistema de obrigações recíprocas assemelha-se a um contrato. O que nos interessa é o contrato didático, ou seja, a parte deste contrato que é específica do conteúdo (1986, p.51 – tradução nossa).

        Em outras palavras, isso significa que no cotidiano da sala de aula há um conjunto de expectativas dos participantes, definidas a priori, nem sempre de modo explícito, que se traduzem como cláusulas do Contrato Didático estabelecido. Desse modo, o Contrato Didático administra as relações entre professor e aluno no processo de ensino-aprendizagem de um dado saber.

        Além disso, BROUSSEAU faz alusão à dimensão paradoxal que permeia o Contrato Didático, principalmente em função dos papéis atribuídos ao professor e ao aluno no processo de apropriação do conhecimento. Parte do pressuposto que o professor tem responsabilidades distintas do aluno e, enquanto responsável por administrar o contrato no sistema didático, deve proceder de modo a respeitar o papel do aluno no processo de ensino-aprendizagem, buscando compatibilidade com o seu desenvolvimento cognitivo. Assim, a situação paradoxal reside no fato de que tudo o que o professor ensina ou explicita ao aluno, tira deste a oportunidade de aprender. Ou seja, ao mesmo tempo em que a mediação do professor na relação didática se faz necessária, ela não pode solapar do aluno as condições imprescindíveis para o processo de apropriação do conhecimento. O professor procura re-estruturar o problema devolvendo-o ao educando, entretanto, essa “proximidade provoca a constante tentação de ajudar o aluno a ser bem-sucedido, quando se trata de aprender” (PERRENOUD, 1999, p.66).

        Por sua vez, o aluno também poderá estar diante de uma situação paradoxal ao aceitar que o professor extrapole sua responsabilidade diante do Contrato Didático e lhe apresente situações facilitadoras que induzem aos resultados desejados. Ao aceitar esse tipo de conduta, o aluno perderá espaço de atuação no sistema didático e, muito provavelmente, não se apropriará do conhecimento. Contrariamente, se o aluno rejeita a mediação do professor, a relação didática fica descaracterizada e o aprendizado praticamente inviável frente às dificuldades inerentes ao próprio saber.

        As características de um Contrato Didático não são definidas apenas a partir da natureza da área ou especificamente pelo tema objeto de estudo mas, também, em função da concepção de mundo, concepção de Ciência e ensino de Ciência das quais o professor é portador. Tais concepções se materializam no contexto da sala de aula, influenciando os objetivos do curso e as decisões didáticas tomadas pelo professor. Por exemplo, nas situações em que o ensino é concebido como mera transmissão-recepção de conhecimentos, a prática pedagógica comumente adotada é a da aula expositiva proferida pelo professor na qual predominam definições, classificações, conceituações, apresentação de fórmulas e algoritmos. Particularmente no ensino de Ciência, as atividades dirigidas aos alunos freqüentemente se traduzem em extensas listas de exercícios cujas soluções não comportam criatividade e geralmente são consensuais. Há situações em que essas atividades são valorizadas e estimuladas de forma mecânica, esvaziando-se a sua significação.

        Nessa modalidade de ensino fica evidente a dogmatização dos papéis do professor e do aluno no processo de apropriação do conhecimento. Ao professor cabe a função unilateral de selecionar o saber e torná-lo “ensinável”; ao aluno, cabe a pré-disposição para assimilá-lo. O Contrato Didático que rege essa relação de ensino é tributário de uma concepção empirista de conhecimento e administra uma prática de ensino tradicional e domesticadora (FREIRE, 1987), cuja arrogância didática legitima  práticas de ensino autoritárias que fortalecem relações de heteronomia.

        Contrariamente, nas situações em que o ensino é concebido como mediação, os alunos trabalham ativamente, geralmente movidos por situações-problema que desafiam e geram interesse. Nesse enfoque, a criatividade, a tomada de decisão e o exercício da autonomia têm lugar garantido e se desenvolvem no decorrer do processo de aprendizagem. Essa perspectiva epistemológica e pedagógica pauta o Contrato Didático na interação professor-aluno-saber, dialetizando seus papéis.  Desse modo, o aluno é colocado permanentemente diante de situações novas que o levam a propor hipóteses, discutir suas próprias idéias, refletir criticamente, enfim, põe o aluno em ação, em permanente auto-reflexão.

        Contudo, mesmo considerando que o Contrato Didático recebe influências de caráter epistemológico e histórico-social, não podemos esquecer que a prática pedagógica possui uma perspectiva diretiva. Isto é, se de um lado comporta certa dinâmica, podendo ser alterado em função das demandas cognitivas e fatores internos e externos que influenciam o processo de ensino, por outro, apresenta uma espécie de “núcleo duro” que permanece inalterado em função da assimetria que há nos papéis que professor e aluno desempenham numa relação didática. Isso se evidencia, por exemplo, no momento em que o professor administra o tempo didático e domina o conteúdo, tendo responsabilidade pelo desenho do contrato e pela forma como a relação se dará, aos quais o aluno precisa se submeter e que terá influências no processo de ensino-aprendizagem. Afinal, “ o professor tem pelo contrato responsabilidades diferentes daquelas do aluno em relação aos objetos tratados em classe” (JOHSUA, 1996, p.156 – tradução nossa).

        Nesse contexto, ao procurar desempenhar o seu papel, o professor se depara com o problema do gerenciamento dos paradoxos que aparecem na relação didática. Além disso, administrar tais paradoxos presentes no Contrato Didático por meio de sua ruptura, não nos parece ser a melhor opção, pois trará conseqüências indesejáveis como a perda de confiança e a descaracterização dos papéis de cada um dos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. Além do mais, a visão dualista de ruptura-permanência do Contrato Didático deveria ser reorientada para uma perspectiva dialética, no sentido de que alguns fatores do contrato são dinâmicos e outros tendem a permanecer inalterados.
 

III - O GERENCIAMENTO DOS PARADOXOS

        O caráter dinâmico do Contrato Didático ocorre por meio de fatores internos e externos à relação didática. Além das ações pedagógicas do professor e das exigências da instituição escolar, a relação saber-aluno é dinâmica diante da distinção entre o senso comum e o conhecimento científico, permitindo um ajustamento das relações do contrato em face de novos objetos do saber que exigem outras competências cognitivas com grau de complexidade maior que as anteriores. Essa categoria dinâmica do contrato não pode ser confundida com ruptura, pois ainda permanecem definidos os papéis do professor e do aluno no processo e a confiança mutua não foi abalada.

        Entretanto, conforme mencionado acima, o Contrato Didático apresenta um “núcleo duro” que tende a permanecer na relação didática. Primeiro, porque o professor e o aluno ocupam lugares distintos diante do saber, com graus de responsabilidades diferenciados. Segundo, porque há uma assimetria que vai além do caráter quantitativo na relação professor-aluno, pois se trata também de uma diferença qualitativa. Ambos dispõem de conjuntos distintos de significações e isto implica que os conceitos do professor sejam mais elaborados, portanto, abrangem um maior número de significados e explicações (JOHSUA, 1996).

        Para JONNAERT (1996), na relação didática, há uma tendência natural em manter a estabilidade do Contrato Didático, isto é, cada parceiro procura manter-se em dia quanto ao papel que deve desempenhar, afinal, há uma expectativa recíproca entre professor e alunos. Contudo, poderão ocorrer situações em que as regras estabelecidas sejam transgredidas por qualquer uma das partes, o que caracteriza uma ruptura do Contrato Didático. A ruptura se verifica no momento em que o sistema de obrigações recíprocas é desrespeitado e a confiança entre os participantes do sistema didático desestabilizada. Em geral, os momentos de ruptura são aqueles em que o contrato vigente no sistema didático se explicita.

        Como conseqüência, a ruptura traz consigo a extrapolação dos limites do grau de estabilidade e incerteza que comportam cada um dos envolvidos no processo ao desempenharem seus papéis frente ao saber. Isso ressalta que os resultados de uma ruptura do Contrato Didático estariam à mercê das concepções de ensino do professor, pois ele é um dos executores da Transposição Didática e isto faz com que o aluno tenha confiança nas escolhas didáticas e de conteúdo feitas por ele, enquanto mediador do processo de aprendizagem.

        Ao admitirmos o Contrato Didático como instrumento de análise da relação professor-saber-aluno na sala de aula e a presença de fatores históricos e sociais nessa relação, estamos aceitando o professor como mediador indispensável entre o saber, submetido à Transposição Didática, e o aluno, com sua estrutura cognitiva particular. Tal mediação ocorre em um contexto sócio-cultural e histórico. Isso implica orientar a visão de ensino das Ciências a partir do entendimento de que a escola passa a ter grande compromisso com a aprendizagem, pois tem papel essencial nas relações sociais do educando. Desse modo, não se pode imputar a responsabilidade do bom ou mau desempenho escolar do aluno às determinações da natureza humana, mas sim às determinações sócio-culturais. Nessa perspectiva, todos são perfeitamente capazes de aprender, ainda que com tempos de aprendizagem próprios.

        Dessa forma, o professor que se coloca como mediador no processo de ensino, numa perspectiva dialética, percebe que a constituição do sujeito se dá nas relações entre os sujeitos, pois já temos nossa subjetividade, fruto das relações. Assim, o aluno não é mais visto como alguém que está “vazio” e precisa ser “preenchido” por conhecimentos. O senso comum do aluno é o ponto de partida para a aprendizagem e o professor deve convidá-lo a buscar o conhecimento científico, de modo que o aluno perceba a dinamicidade da Ciência como um processo em permanente construção e desenvolvimento, não se limitando a estudar apenas os resultados. Nesse enfoque, o professor, além de fazer a escolha dos conteúdos mais significativos, terá que se perguntar: como se dará a relação professor-aluno?

        Nas aulas de Ciências Naturais, predominantemente expositivas, é comum a resolução de problemas que contêm, conforme está implícito no Contrato Didático, somente os dados necessários à sua resolução, cabendo ao aluno utilizar as fórmulas dadas em aula para resolvê-los corretamente, o que pode levar a uma perspectiva indutivista dos enunciados. Ao aluno não cabe questionar a resposta ou mesmo a pertinência do problema, deve apenas encontrar uma resposta, e apenas uma, que certamente existe, demonstrando a ausência de qualquer reflexão qualitativa. O aluno precisa aplicar a fórmula certa ou dar a resposta que o professor quer! Tal postura acaba dificultando o processo de construção da autonomia intelectual do aluno no enfrentamento de situações novas.

        Pretendemos mostrar que uma das maneiras de gerenciar esse paradoxo poderá ser pela introdução de pequenas “perturbações” no contrato estável. Acreditamos que a introdução de problemas com inovações inesperadas pelos alunos é uma ferramenta pedagógica importante. Conforme argumentaremos no item seguinte, tais inovações poderão ser feitas via resolução de problemas fechados, pela introdução de um número excedente de dados, pela supressão de dados conhecidos pelos alunos, ou pela proposição de atividades que solicitam a articulação de diversos conhecimentos. Estas situações podem ser consideradas o motor da relação didática, porque caracterizam uma tensão positiva e intencional que leva o aluno a uma reflexão qualitativa, evitando automatismos, uma vez que será difícil antecipar soluções. Desse modo, o papel do aluno é desestabilizado com certa freqüência, o que o leva a manter-se atento e aberto a avanços sem, contudo, promover uma ruptura no Contrato Didático.

        Não se trata de abandonar a opção por problemas fechados, mas de inserir pequenas perturbações na estabilidade do Contrato Didático tradicional presente no ensino das Ciências, mostrando que parte do sucesso do aluno se vincula à sua capacidade de perceber como os problemas são apresentados e como se espera que sejam resolvidos. Na visão tradicional está implícito que: os problemas normalmente têm uma única solução; a solução é obtida a partir dos dados fornecidos; os dados fornecidos não são nem abundantes, nem insuficientes; as situações propostas são sempre ideais, mesmo quando isto não é explicitado no enunciado.
 

IV – APRESENTAÇÃO DOS EXEMPLOS

        Uma vez definida a noção de Contrato Didático como ferramenta teórica para analisar práticas de ensino nas Ciências, selecionamos alguns exemplos concretos de problemas fechados propostos e desenvolvidos em sala de aula no ensino médio e superior, nas disciplinas de Física e Anatomia Humana, respectivamente, para que pudéssemos proceder a uma análise mais sistematizada. A partir dessa análise, verificamos que a inclusão de situações inesperadas pelo aluno em seus enunciados pode contribuir para uma reorientação na resolução de problemas fechados e tornar mais significativa sua utilização na ação pedagógica.

No ensino de Física

        Vamos supor o seguinte problema, desenvolvido nas primeiras séries do ensino médio durante o estudo sobre energia mecânica:

        PROBLEMA 1: uma esfera de massa 0,2Kg é arremessada para cima e apresenta velocidade de 20m/s quando está a uma altura de 60m. Determine sua energia mecânica em relação ao solo, admitindo o valor de g como sendo 10m/s2.

        SOLUÇÃO: o aluno irá aplicar a fórmula: Em = Ec + Ep; onde Em é a energia mecânica, Ec é a energia cinética e Ep é a energia potencial.  Se Em = ½.m.v2 + m.g.h; o valor encontrado será Em = 160J.

        PROBLEMA 2: agora, suponhamos o mesmo problema com o seguinte enunciado: uma esfera com volume de 0,9cm3 é arremessada para cima e apresenta velocidade de 20m/s quando está a uma altura de 60m. Em relação ao solo, sua energia mecânica é de 160J. Determine a massa da esfera, em Kg (quilograma).

        Trata-se do mesmo problema anterior, entretanto, apresenta algumas inovações inesperadas pelo aluno em seu enunciado, tais como: (a) o valor de g (aceleração da gravidade) não foi dado, pois o aluno já o conhece e poderia utilizá-lo; (b) o volume da esfera não será relevante para a resposta; (c) a unidade da massa obtida (0,2Kg) já está em Kg e a única forma do aluno saber disso, é através da compreensão de que a unidade J (Joule) equivale a N.m (Newton vezes metro) que, por sua vez, corresponde a {Kg.(m/s2).m}. Desse modo, acreditamos que esse tipo de problema demandará maior atenção do aluno em vez de simples aplicação mecanizada de fórmula.

        Além disso, em sua resolução o professor poderá fazer algumas reflexões qualitativas que envolvam a discussão sobre as condições ideais do problema o qual não considerou a resistência do ar, por exemplo. Sua resolução chama a atenção para as unidades das grandezas envolvidas, que geralmente são esquecidas pelos alunos. Se quisermos aprofundar a discussão sobre as relações entre as grandezas presentes poderíamos mostrar, por exemplo, que a variação da energia mecânica em relação à v (velocidade) ocorre de acordo com uma equação do tipo E = ax2 + b; onde x é a velocidade, a é ½.m e b é a energia potencial. O aluno poderá verificar que essa equação descreve uma parábola. Outra relação que poderia ser mostrada é a variação da energia mecânica em relação à massa m, dada por uma equação do tipo E = x.(a + b); onde x é a massa, a é ½.v2 e b é g.h., a qual descreve graficamente uma reta. Uma abordagem desse tipo poderia anteceder a discussão sobre sistemas conservativos e não conservativos.
 

No ensino de Anatomia Humana

        Trata-se de um problema desenvolvido com alunos do curso de Ciências Biológicas, na disciplina de Anatomia Humana, durante o estudo do aparelho circulatório. Tradicionalmente, após o estudo da unidade em termos teóricos e práticos, estruturas anatômicas que compõem o aparelho circulatório são apresentadas aos alunos através de ilustrações ou de material laboratorial, problematizados da seguinte maneira:

        PROBLEMA 1: a partir das ilustrações dadas, identifique e nomine as estruturas anatômicas que integram o aparelho circulatório. Relacione as estruturas anatômicas que participam da pequena e grande circulação.

        SOLUÇÃO: o exercício acima fornece um esquema (ou, em alguns casos, peças anatômicas – exercício prático) em que a simples memorização da nomenclatura por parte dos alunos tornará possível a resolução do problema proposto.

        PROBLEMA 2 - suponhamos o problema anterior enunciado da seguinte forma: represente esquematicamente, desenhando no chão da sala de aula, o percurso do sangue no corpo humano. Identifique e nomine as principais estruturas anatômicas envolvidas, devidamente articuladas, de modo a ilustrar a pequena e a grande circulação.

        SOLUÇÃO: a resolução não é feita de modo imediato ou automático, como no exemplo anterior, em que prevalece a memorização de nomenclaturas. A solução exige uma reflexão qualitativa e a articulação com conhecimentos gerais de Fisiologia Humana.

        Ao propor o problema dessa forma, destacamos os seguintes aspectos: (a) as dificuldades que os alunos têm para transpor o conteúdo para situações novas; (b) a participação qualitativa do aluno na resolução do exercício que extrapola a memorização de nomenclaturas e resgata conhecimentos anteriores de Fisiologia; (c) o problema vai além de automatismos e solicita a participação criativa do aluno, mesmo sabendo que para sua resolução há uma seqüência invariável que deve ser seguida.
 

V – ANALISANDO OS RESULTADOS

        Podemos observar que nos exemplos de problemas de Física e Anatomia Humana abordados não houve ruptura do Contrato Didático, pois os papéis dos envolvidos na relação didática continuam os mesmos. A tensão provocada pela presença das situações novas, está dentro do grau de incerteza que a estabilidade dos papéis de cada um suporta para que o contrato seja mantido. Além disso, a confiança necessária entre professor e aluno não foi afetada, pois, de outro modo, causaria descontentamentos que inviabilizariam a aprendizagem. O aluno não perdeu a confiança no professor porque percebeu claramente que a tensão provocada foi proposital para tornar dinâmica a ação pedagógica.

        Postulamos que a intervenção consciente do professor, a fim de provocar uma perturbação no contrato, é um instrumento pedagógico importante no gerenciamento dos paradoxos presentes no Contrato Didático. As situações novas que apareceram nos problemas estão dentro dos limites dos conhecimentos já trabalhados com os alunos. A principal diferença é que os conhecimentos exigidos foram tratados em outras situações, mas que deveriam servir de ferramentas para o aluno se desvencilhar de problemas futuros. Desse modo, a perturbação é benéfica, pois os elementos exigidos do aluno, e que não foram antecipados, estão num contexto conhecido.

        Além disso, contínuas rupturas e renegociações do Contrato Didático trariam um grau de incerteza muito grande aos envolvidos, pois as ações pedagógicas seriam revistas assim como os objetivos a serem alcançados. Ademais, poderia ocorrer um progressivo rebaixamento dos objetivos propostos no sentido de facilitar as tarefas atribuídas ao aluno, correndo-se o risco de “nivelar por baixo”, pois “cada parceiro da relação didática se satisfaz ao livrar-se da situação sem grandes problemas” (SILVA; 1999; p.57) evidenciando assim, a falsa impressão de aprendizagem. Isso acabaria afastando a escola do seu objetivo que é formar um aluno crítico, no sentido de dar-lhe condições para analisar informações, tomar uma posição, decidir e não simplesmente se opor. Assim, o aluno crítico seria capaz de dizer o que é admissível e não admissível; e também se incluir no objeto criticável e questionar suas próprias verdades, as quais foram historicamente construídas nas relações.
No caso da tensão causada pela perturbação do contrato esse rebaixamento não ocorre, pois, se de um lado, não houve uma ruptura acompanhada de renegociação, de outro lado, mostrou-se ao aluno que a relação didática tem um caráter dinâmico e provisório, estimulando-o a não depender exclusivamente do saber do professor e a não automatizar comportamentos. Além do mais, a perturbação intencional do Contrato Didático caracteriza melhor o papel do professor como mediador na relação didática.

        Desse modo, as atividades didáticas relatadas mantêm claramente o papel do professor e aluno sem o impacto de uma ruptura do contrato como ocorreria, por exemplo, se, diante do contrato estabelecido, utilizássemos problemas abertos, pois estes não apresentam uma solução a priori e isto abalaria a relação de confiança entre professor e aluno face ao saber. Nesse sentido, as inovações nos enunciados de problemas tradicionais possibilitam uma reflexão qualitativa por parte do aluno, evitando automatismos tais como aplicação mecanizada de fórmulas e algoritmos e a memorização de conceitos descontextualizados.

        Nessa abordagem qualitativa o aluno poderá entender melhor o que de fato os problemas querem determinar, dando uma maior significação à sua resolução. Além disso, terá oportunidades de articular conceitos e conhecimentos anteriores e compreendê-los numa perspectiva menos fragmentada.
 

VI – CONSIDERAÇÕES FINAIS

        A resolução de problemas é uma excelente oportunidade para perturbarmos o Contrato Didático. Primeiro, porque é uma prática pedagógica comum no ensino de Ciência e, segundo, porque possibilita uma ampla margem de variações que permitem a intervenção consciente do professor, sem, contudo, configurar rompimento do contrato.

        Nos exemplos abordados verificamos que os problemas permanecem fechados, entretanto, as inovações apresentadas promovem uma tensão positiva na relação didática. O aluno não fica engessado a problemas meramente mecânicos e repetitivos, mas passa a estar mais atento a inovações. Assim sendo, os problemas deixam de parecer receituários para a aplicação de fórmulas ou memorização de nomenclaturas e classificações e passam a exigir um investimento pessoal e criativo do aluno, exercitando a autonomia que o mantém vivo no processo e em melhores condições para enfrentar novas situações.
Os exemplos dados de perturbação do Contrato Didático representam uma possibilidade de gerenciamento, mas não a única, pois, se utilizada constantemente, será incorporada às regras implícitas do contrato, retornando-se ao comportamento mecanizado. Desse modo, a perturbação do Contrato Didático, enquanto instrumento de ação pedagógica para o gerenciamento dos paradoxos, demanda a necessidade de investimento criativo e pessoal também do professor, a fim de que novas formas sejam encontradas para que os parceiros da relação didática estejam abertos ao novo e progressivamente preparados para investir em situações inéditas.

        Dessa forma, a perturbação do Contrato Didático não consiste simplesmente em propor desafios ao aluno, pois, enquanto estes apenas aumentam o grau de dificuldade dos problemas, a perturbação difere qualitativamente na medida em que está voltada para o gerenciamento das imposições paradoxais do contrato. Ademais, procura reorientar a relação entre professor, saber e aluno propondo alguns questionamentos, tais como: Que aluno queremos formar e para qual sociedade?

VI - BIBLIOGRAFIA

ASTOLFI, Jean-Pierre; Develay, Michel. A Didática das Ciências. Campinas – SP: Papirus, 1990
BROUSSEAU, G.. “Fondements et méthodes de la didactique des mathématiques”.
      Recherches en Didactique des Mathématiques, vol. 7, nº 2, Grenoble, 1986
CASTRO, Sebastião V. Anatomia Fundamental. 2.ed. São Paulo: McGraw-Hill
       1985
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª ed.. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987
JOHSUA, Samuel. “Le concept de contrat didactique et l’approche vygotskienne”.
      In: Au-delà des didactiques, le didactique: débats autour de concepts fédérateurs.
      De Boeck Université, 1996
JONNAERT, Philippe., “Dévolution versus contre-dévolution!Un tandem
      incontournable pour le contrat didactique”. In: Au-delà des didactiques, le didactique: débats autour de concepts fédérateurs. De Boeck Université, 1996
PEDUZZI, Luiz O. Q.. ‘Sobre a Resolução de Problemas no Ensino da Física’.
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PERRENOUD, Philippe. Construir as Competências desde a escola. Trad. Bruno
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SILVA, Elcio Oliveira da et al.. ‘O Contrato Didático e o Currículo Oculto: um duplo
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TIPLER, Paul A.. Física. Vol. 1a. 2ª ed. Traduzido por Horácio Macedo.
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YAMAMOTO, Kazuhito; et al.. Os Alicerces da Física. vol. 1 mecânica.12ª ed..
      São Paulo: Saraiva, 1998

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