Marina de Lima-Tavares
Mestrado em Ensino, Filosofia e História das Ciências
– UFBA/UEFS
Charbel Niño El-Hani
Instituto de Biologia – UFBA
Mestrado em Ensino, Filosofia e História das Ciências
– UFBA/UEFS
Mestrado em Ecologia e Biomonitoramento - UFBA
Resumo
Este trabalho, que é
parte de um projeto mais amplo, no qual se analisa a cientificidade da
teoria Gaia, pretende contribuir para uma apreciação crítica
do papel que esta poderia desempenhar no ensino de Biologia e no tratamento
do tema transversal “meio ambiente”. A teoria Gaia propõe que a
biosfera atua como um sistema adaptativo de controle, mantendo a Terra
em homeostase. Alguns autores têm proposto, nos últimos anos,
que esta teoria seja incorporada ao conhecimento escolar. Ela já
se encontra, inclusive, em livros didáticos de Biologia do ensino
médio publicados no Brasil. Neste artigo, levantamos o problema
da cientificidade desta teoria, considerando que sua transposição
didática deve estar apoiada numa demonstração prévia
de sua natureza científica. Analisamos uma das razões pelas
quais a comunidade científica tem visto com suspeita a teoria Gaia,
a proposição de que a Terra é um ser vivo, examinando
suas conseqüências para uma apreciação de sua
cientificidade, bem como da possibilidade de sua transposição
para o conhecimento escolar. Os proponentes desta teoria acreditam que
ela torna possível caracterizar a Terra como um ser vivo. Esta proposição,
entretanto, não é justificada por uma análise do conceito
de ‘vida’ ou ‘ser vivo’. Neste trabalho, a proposição de
que a Terra é um sistema vivo é analisada à luz de
definições de vida encontradas em três paradigmas biológicos:
a teoria neodarwinista da evolução, a teoria da autopoiese
e a biossemiótica. Esta análise mostra que: (i) a proposição
de que a Terra é um ser vivo certamente não pode ser sustentada
com base na biologia evolutiva neodarwinista; (ii) é possível,
mas provavelmente difícil, fundamentá-la com base na biossemiótica;
(iii) a teoria autopoiética oferece, em princípio, a melhor
oportunidade para caracterizar-se a Terra como um ser vivo, mas trata-se,
ainda assim, de uma proposição controversa. A transposição
didática da teoria Gaia poderia ser feita de maneira mais apropriada,
bem como sua testabilidade e seu conteúdo empírico seriam
mais adequadamente enfatizados, se a asserção de que a Terra
é viva fosse claramente separada de seu núcleo duro ou até
mesmo eliminada.
Palavras-chave: Gaia; Vida; Ensino de Biologia; Meio ambiente;
Cientificidade.
Introdução
A teoria(2) Gaia tem despertado desde a década de 1970 uma reação entusiástica de grupos ambientalistas e espiritualistas. Mais recentemente, a resistência a esta teoria na comunidade científica foi em parte vencida e uma quantidade crescente de pesquisadores de diversos campos do conhecimento tem dedicado-se à sua articulação teórica e ao teste empírico de suas implicações. Não causa espanto, assim, que alguns autores tenham proposto, nos últimos anos, o uso da teoria Gaia no contexto escolar (Baker 1993, McGuire 1993, Haigh 2001. Ver tb. Johnson 1983). Livros didáticos de Biologia do ensino médio publicados no Brasil já têm dedicado seções específicas à discussão desta teoria (e.g. Amabis & Martho 1997; Marczwski & Vélez 1999).
Contudo, para defender-se a transposição didática da teoria Gaia para o ensino de Biologia, é preciso examinar em que medida ela pode ser considerada uma teoria científica. Trata-se, afinal, de uma teoria que foi por muito tempo rejeitada por grande parte dos cientistas, chegando a ser citada como exemplo de anticiência ou pseudociência (e.g. Postgate 1988). Coloca-se assim a preocupação de que ela possa favorecer uma confusão entre explicações científicas de fenômenos como a regulação do clima e da composição atmosférica da Terra e proposições não-científicas, resultando em dificuldades para a demarcação dos conteúdos de natureza científica no âmbito do conhecimento escolar.
Em nossa visão, o conhecimento escolar na área das ciências tem como parâmetro necessário o conhecimento aceito de maneira consensual pela comunidade científica de uma dada época, a partir do qual será feita a transposição de conceitos, teorias, hipóteses etc. para o contexto das escolas. Nesses termos, se a cientificidade da teoria Gaia não puder ser defendida de maneira convincente, será difícil justificar sua transposição didática para o ensino de Biologia e para pelo menos uma parte das discussões sobre o meio ambiente nas escolas. Esta foi uma das questões que nos levaram a iniciar uma análise epistemológica desta teoria (Lima-Tavares 2000; El-Hani & Lima-Tavares 2001).
O conceito de ‘transposição didática’ tem sido objeto de discussão profícua numa diversidade de trabalhos (e.g. Astolfi & Develay 1991, Forquin 1993, Lopes 1997a,b). No entanto, limitaremos nossa argumentação no presente artigo, de modo a não perder de vista seu escopo, a alguns pontos de concordância com Chevallard (1991) que fornecem apoio à idéia de que o conhecimento científico consensual de uma dada época constitui uma base necessária para o conhecimento escolar na área das ciências.
A tarefa de pensar o objeto da didática se configura, para Chevallard, com base num sistema ou numa relação contendo três elementos, o professor, os alunos e o saber ensinado. Uma das questões fundamentais da didática se coloca, então, relativamente ao saber ensinado, um elemento “curiosamente esquecido” que não pode ser excluído da problemática da didática (Chevallard 1991:15): Como se relacionam o saber ensinado e o ‘saber sábio’? O conceito de transposição didática constitui um elemento para responder-se a esta pergunta, na medida em que se refere à passagem do saber sábio ao saber ensinado (Chevallard 1991:22). Para que o ensino de um determinado elemento do conhecimento seja possível, é preciso que este sofra certas transformações que tornem viável ensiná-lo no contexto escolar. O saber ensinado é necessariamente distinto do saber sábio (Chevallard 1991:16-17). Não há, contudo, autonomia completa dos sistemas didáticos no que concerne ao saber que deve ser ensinado.
A idéia de que o conhecimento científico consensual é uma base necessária do conhecimento escolar na área das ciências está relacionada à tese de que o sistema didático, incluindo o saber ensinado, não é produto apenas da vontade dos docentes. Um dos requisitos para o funcionamento do sistema didático é o de que o saber ensinado satisfaça certos critérios específicos. Defendemos que um critérios que não pode ser perdido de vista, no ensino de qualquer ciência, é o da coerência entre o saber ensinado e o conhecimento estabelecido num dado campo do conhecimento científico, numa dada época. Os argumentos de Chevallard oferecem apoio a esta visão. O conceito de transposição didática se refere às relações entre o saber ensinado e o saber a ensinar, cujo significado normativo se torna claro quando Chevallard (1991:17) se refere a ele como o “saber-inicialmente-designado-como-o-que-deve-ser-ensinado” (grifo nosso). O saber ensinado deriva do saber sábio por designação, não podendo ser esquecido como objeto de referência, fonte de normatividade e fundamento de legitimidade (Chevallard 1991:17-18). De outro modo, o saber ensinado será “um saber exilado de suas origens e separado de sua própria produção histórica na esfera do saber sábio, legitimando-se, enquanto saber ensinado, como algo que não é de nenhum tempo e lugar, ao invés de legitimar-se mediante o recurso à autoridade de um produtor [...]” (Chevallard 1991:18). A questão da adequação do saber ensinado sempre se coloca e um dos critérios para julgar-se esta adequação reside, em nossa visão, em sua coerência com o conhecimento científico estabelecido. Não é concebível, da perspectiva em que compreendemos o ensino das ciências, que o saber ensinado, mesmo considerando-se sua necessária diferença relativamente ao saber sábio, não guarde uma relação significativa com o conhecimento científico estabelecido. Afinal, é desta relação que o saber ensinado deriva uma parte importante de sua legitimidade. O saber ensinado deve ser suficientemente próximo do saber sábio, de modo a não ser desautorizado por aqueles envolvidos na produção deste último, o que minaria a legitimidade do projeto social de seu ensino (Chevallard 1991:30).
Os regimes do saber ensinado e do saber sábio não são superpostos, mas são interrelacionados (Chevallard 1991:25). Assim, um dos elementos importantes na análise da transposição didática é a análise do saber sábio. Este artigo consiste na análise de uma teoria em processo de transposição para o conhecimento escolar, colocando a questão da cientificidade desta teoria, como algo a ser respondido para que o processo de transposição didática e o saber ensinado a seu respeito (como parte dos sistemas didáticos do ensino de Biologia) tenham legitimidade. Trata-se de um artigo de natureza epistemológica, mas sua pertinência ao campo do ensino das ciências (e, mais particularmente, da Biologia) se torna clara a partir da própria situação do saber sábio na problemática da didática. Como argumenta Chevallard (1991:23), “quando se atribui ao saber sábio seu justo lugar no processo de transposição [...], torna-se evidente que é precisamente o conceito de transposição didática que permite a articulação da análise epistemológica e da análise didática, convertendo-se então em guia para o bom uso da epistemologia na didática”. A análise da transposição didática não deve, contudo, substituir a análise epistemológica em sentido estrito (Chevallard 1991:23). Levamos a cabo neste artigo uma análise que é, em grande medida, epistemológica, pela natureza de nossa pergunta, concernente à cientificidade da teoria Gaia, à sua pertinência ao saber sábio, condição necessária sem a qual, conforme argumentamos acima, o problema de sua transposição didática para o ensino de Biologia não estaria sequer colocado. Esta análise também pode cumprir um papel relevante no exercício do que Chevallard (1991:17-20) chama de ‘princípio de vigilância epistemológica’, no que concerne à transposição didática da teoria Gaia.
Neste artigo, analisamos
uma das razões pelas quais a comunidade científica tem visto
com suspeita a teoria Gaia, a proposição de que a Terra é
um ser vivo, de modo a verificar se ela pode ser justificada com base em
três definições de vida diferentes, uma das quais associada
ao paradigma até hoje mais influente na história da Biologia,
a teoria neodarwinista da evolução. A partir desta análise,
examinamos as conseqüências daquela proposição
para uma apreciação da cientificidade da teoria Gaia. Discutimos,
então, as implicações desta teoria para o ensino de
Biologia e o tratamento do tema transversal “meio ambiente” (MEC/SEF 1998,
1999).
Gaia
A teoria Gaia surgiu de estudos realizados por Lovelock e Dian Hitchcock para a NASA na década de 1960, com o intuito de descobrir evidências a favor da existência de vida em planetas como Vênus e Marte. Ao ser contratado para auxiliar no desenvolvimento de instrumentos para a detecção de vida, Lovelock levantou uma questão fundamental: ‘Como podemos ter certeza de que as formas de vida de Vênus e Marte, caso existam, sejam passíveis de descoberta através de testes baseados na vida como a conhecemos na Terra?’ (Lovelock 1995a). Ponderando sobre essa questão, ele chegou à conclusão de que a característica mais geral da vida era a de que todos os organismos vivos assimilam matéria e energia, e descartam resíduos metabólicos. Supondo-se que os organismos utilizariam, em qualquer planeta, a atmosfera e os oceanos (caso estes existissem) como fontes de matéria-prima e depósitos de resíduos, Lovelock propôs, em 1965, alguns testes para a presença de vida num planeta. Num destes testes, realizado por Hitchcock e Lovelock (1967), a idéia era comparar a composição química das atmosferas de Vênus, Marte e Terra, sendo esta última utilizada como controle, na condição de um planeta no qual a presença de vida é comprovada. A base teórica do teste era simples: se um planeta não apresentasse vida, sua atmosfera seria determinada apenas pela física e pela química e, desse modo, estaria próxima ao estado de equilíbrio químico. Em contraste, a atmosfera de um planeta que contivesse seres vivos apresentaria uma espécie de ‘assinatura’ química característica, uma combinação especial de gases que poderia ser detectada até mesmo da Terra. Essa ‘assinatura’ seria um estado de constante desequilíbrio químico, causado pela retirada de matéria-prima e incorporação de resíduos metabólicos dos organismos.
Quando Hitchcock e Lovelock
examinaram as evidências disponíveis sobre a atmosfera de
Marte, descobriram uma diferença significativa entre esta e a atmosfera
terrestre. A atmosfera de Marte estava próxima do equilíbrio
químico e era dominada por dióxido de carbono (CO2). A atmosfera
da Terra, por sua vez, apresentava um estado de notável desequilíbrio
químico, com uma composição na qual nitrogênio
(79%) e oxigênio (21%) são os gases mais abundantes, enquanto
o dióxido de carbono (CO2) tem uma concentração de
apenas 0,03%. A atmosfera terrestre também contém monóxido
de carbono (CO), hidrogênio (H2), metano (CH4), óxido nítrico
(NO2) e ácido clorídrico (HCL). Coexistem nela oxigênio
em alta concentração e gases altamente reativos, como o metano.
Esta composição química é muito peculiar, mostrando-se
inconcebível num planeta sem vida, porque todas as reações
químicas possíveis entre os gases atmosféricos teriam
ocorrido há um longo tempo e um estado de completo equilíbrio
químico estaria instalado. Em contraste, um estado de desequilíbrio
químico tem sido mantido na atmosfera terrestre por um período
extremamente longo, por esta ser um sistema aberto, distante do equilíbrio,
caracterizado por um fluxo constante de matéria e energia. Esta
é uma ‘assinatura’ da presença da vida na Terra.
Com base nestes resultados, Hitchcock e Lovelock concluíram
que Marte provavelmente não continha vida. Não foi uma conclusão
agradável para a NASA. Uma enorme quantidade de dinheiro e esforço
havia sido dirigida para o desenvolvimento dos experimentos de detecção
de vida em Marte, e Lovelock e Hitchcock estavam dizendo que não
era preciso enviar a missão Viking àquele planeta. Era possível
concluir que não havia vida em Marte da própria Terra. A
NASA não considerou essa conclusão e enviou a missão
Viking a Marte, mas esta não descobriu, como Lovelock previra, qualquer
indício de vida naquele planeta.
Os estudos que realizou para a NASA levaram Lovelock a conclusões de maior alcance. Ao considerar a análise de cima para baixo (top-down) da atmosfera terrestre que eles haviam realizado, Lovelock pensou que ela podia indicar a existência de um sistema ativo de controle. A melhor explicação para o desequilíbrio químico observado na atmosfera terrestre consistia, em sua visão, numa ação direta da biosfera sobre ela. O papel da biosfera na manutenção do estado químico peculiar encontrado na atmosfera pode ser prontamente apreciado se examinarmos o chamado ‘holocausto do oxigênio’. A transição do Arqueano anaeróbico para o Proterozóico oxigenado é considerada por Lovelock (1990) uma mudança de Gaia, como um sistema, de um conjunto de estados homeostáticos para outro. As evidências sugerem que a composição da atmosfera terrestre já foi bem parecida com aquela das atmosferas de Marte e Vênus, com CO2 predominando e O2 quase ausente (Margulis & Sagan 1986). Durante bilhões de anos, o O2 se acumulou lentamente, visto que uma grande parte desse gás era absorvida por seres vivos, compostos metálicos, gases atmosféricos reduzidos e minerais. No entanto, há cerca de 2 bilhões de anos, provavelmente com o esgotamento dos reagentes passivos disponíveis e a proliferação de cianobactérias fotossintetizadoras, este gás começou a acumular-se rapidamente na atmosfera.(3) A concentração de O2 passou de 0,0001% para 21% (Margulis & Sagan 1986). Este aumento repentino na concentração de O2 atmosférico resultou na morte de muitas bactérias anaeróbicas sensíveis à sua presença (sobrevivendo apenas aquelas que se isolaram nas camadas anaeróbicas do solo e do lodo), bem como na seleção de bactérias resistentes. Entre aquelas bactérias que podiam detoxificar oxigênio, algumas linhagens capazes de respiração aeróbica foram ainda mais favorecidas, por serem capazes de utilizar a reatividade do O2 para obter mais energia livre dos nutrientes. Assim, o O2, antes um gás venenoso para uma biosfera dominada por microorganismos anaeróbicos, se tornou indispensável para os novos organismos aeróbicos. O surgimento dos organismos fotossintetizadores modificou também a concentração de CO2. Este gás, que inicialmente respondia por cerca de 95% da atmosfera terrestre, corresponde hoje a apenas 0,03%. A concentração de O2 na atmosfera em cerca de 21% tem sido mantida pelos organismos fotossintetizadores (principais responsáveis pela produção contínua de O2) e aeróbicos (que consomem O2). A manutenção deste gás num nível alto mas não excessivo é de suma importância para a biosfera. Se um aumento significativo na concentração de O2 ocorresse, todos os seres vivos arderiam em chamas, enquanto que, se esta concentração diminuísse, os organismos aeróbicos começariam a asfixiar.
Além da manutenção do desequilíbrio químico atmosférico, Lovelock estava interessado em outra característica peculiar da Terra, a constância de seu clima desde o surgimento da biosfera. As evidências indicam que, aparentemente, a temperatura de nosso planeta não sofreu alterações significativas pelo menos nos últimos 3,6 bilhões de anos. Mesmo as mudanças climáticas ocorridas com as grandes glaciações não teriam sido tão abruptas, como sugerem as evidências de que a temperatura média das regiões tropicais não foi, naqueles períodos, mais do que 8oC menor do que aquela observada durante os períodos interglaciais (Margulis & Lovelock 1974). É preciso considerar, ainda, a possibilidade de que o planeta tenha até mesmo sofrido um processo de resfriamento. Knauth e Epstein (1976, citados por Lovelock & Watson 1982) sugerem que o clima no Arqueano era mais quente do que o clima atual da Terra. Estas observações se tornam intrigantes quando se considera que estudos astrofísicos têm mostrado que o Sol aumentou sua luminosidade e produção de calor em cerca de 25% desde a origem da vida (Lovelock 1990). Por esta razão, Lovelock considera que o clima da Terra é, assim como a composição química da atmosfera, ativamente regulado.
Walker et al. (1981) propuseram um modelo não-biológico de retroalimentação para explicar a constância do clima terrestre. Neste modelo, o ajuste automático da pressão parcial de CO2 atmosférico é considerado responsável pelo controle da temperatura do planeta. A escolha do CO2 como regulador da temperatura é devida à sua natureza estável e à observação de que ele impede que a radiação infravermelha do Sol escape da atmosfera terrestre (i.e., trata-se de um gás estufa). De acordo com Walker e colaboradores, quanto maior a pressão parcial de CO2 na atmosfera, maior a temperatura do planeta. Uma temperatura mais alta afetaria, por sua vez, a taxa de reação entre o CO2 e as rochas calcsilicáticas (calcium silicate rocks), e também poderia aumentar o índice pluviométrico. Ocorreria, então, um processo de retroalimentação negativa, porque estes dois fatores em conjunto seriam capazes de reduzir a concentração de CO2 na atmosfera, diminuindo a temperatura do planeta.
Lovelock e Watson (1982) concordam com Walker e colaboradores quanto à relação entre a pressão parcial de CO2 na atmosfera e a temperatura do planeta. Eles afirmam, contudo, que a taxa de intemperismo das rochas calcsilicáticas é determinada biológica e não geoquimicamente. Devido à atividade bacteriana, a pressão parcial de CO2 no solo é 10-40 vezes mais elevada do que na atmosfera. A taxa de produção de CO2 pelas bactérias do solo dobra a cada aumento de 10oC na temperatura. Considerando essas evidências, Lovelock e Watson argumentam que as bactérias do solo são essenciais para o funcionamento do modelo de Walker e colaboradores, desempenhando um papel importante no controle da temperatura do planeta. Se não existisse vida na Terra, a pressão parcial de CO2 no solo cairia a um nível mais baixo do que o atmosférico, porque a difusão limitaria a taxa de transferência deste gás para as rochas calcsilicáticas. Assim, um aumento na concentração do CO2 atmosférico seria inevitável, levando a um novo equilíbrio, no qual o planeta teria temperaturas mais elevadas em sua superfície. A evolução de mecanismos biológicos de amplificação do intemperismo das rochas calcsilicáticas teria sido, desse modo, fundamental para a diminuição do conteúdo de gás carbônico da atmosfera, produzindo um resfriamento do planeta da ordem de 15-45oC. Nesses termos, Lovelock afirma que a teoria Gaia fornece uma explicação satisfatória para a constância do clima da Terra.
Estas características singulares da Terra levaram Lovelock a propor a idéia de Gaia como um sistema de controle em 1972. Ele chamou sua teoria de ‘Gaia’ graças a uma sugestão do escritor William Golding, então seu vizinho, baseada na idéia de que o nome da deusa grega era o único adequado para “uma entidade tão poderosa” (Lovelock 1990:100). Logo depois, Lovelock começou a trabalhar com a microbiologista Lynn Margulis, que estudava a produção e remoção de gases por vários organismos, especialmente bactérias do solo. Lovelock e Margulis apresentaram inicialmente a teoria original como a idéia de que “a vida, ou a biosfera, regula ou mantém o clima e a composição da atmosfera em um ótimo para si própria” (Lovelock 1990:100). Eles refinaram a teoria em artigos publicados em Tellus (Lovelock & Margulis 1974a) e Icarus (Margulis & Lovelock 1974), enunciando-a como “a noção da biosfera como um sistema adaptativo de controle que pode manter a Terra em homeostase [...]”. Eles foram capazes de identificar uma rede complexa de alças de retroalimentação (feedback loops) que resultariam, de acordo com sua teoria, na auto-regulação do sistema vida-ambiente em nosso planeta.
Em 1983, Watson e Lovelock apresentaram um modelo numérico, o Mundo das Margaridas (Daisyworld), exemplificando os mecanismos de regulação postulados pela teoria Gaia. Este modelo foi de grande importância para uma maior aceitação desta teoria pela comunidade cientifica. Ele foi construído em resposta à crítica de Dawkins (1982) de que não haveria meios de a evolução por seleção natural levar a um altruísmo em escala global. Trata-se de uma controvérsia importante, porque, para muitos, a teoria de Lovelock e Margulis é incompatível com o paradigma mais influente na história da Biologia, a teoria darwinista da evolução.
Em seu modelo, Watson e Lovelock limitaram, para fins de simplificação, o ambiente a uma única variável, a temperatura, e a biota, a dois tipos de vida, ‘margaridas’(4) brancas e pretas. Estes dois tipos de margaridas diferem em suas taxas de reflexão da radiação solar (albedo) e, assim, em sua temperatura local. O planeta tem uma superfície cinza de albedo intermediário, de modo que as margaridas pretas estão sempre mais quentes e as margaridas brancas mais frias em relação ao ambiente circundante. A taxa de crescimento de cada margarida é uma função de sua temperatura local. As margaridas não crescem abaixo de 5oC e acima de 40oC, apresentando um crescimento ótimo a 22,5oC.
O Mundo das Margaridas é um planeta hipotético parecido com a Terra, orbitando ao redor de uma estrela com a mesma massa e composição de nosso Sol, que se torna mais luminosa com o tempo. Sua atmosfera tem poucas nuvens e uma concentração baixa e constante de gases estufa, que pode ser negligenciada. Nestas condições, a temperatura média da superfície do planeta é determinada por seu albedo total (a fração de luz refletida por sua superfície) e, portanto, pela quantidade de radiação solar absorvida. Isso depende, por sua vez, da cobertura proporcional de margaridas pretas, margaridas brancas e superfície nua.
No modelo de Watson e Lovelock (1983), a temperatura planetária é regulada, com o planeta mantendo seu clima constante na presença de vida, apesar do aumento contínuo da produção de calor e luminosidade pelo Sol. Na ausência de vida, ocorre um aquecimento gradual do planeta, como esperado. As margaridas apresentam, no modelo, a capacidade de estabilizar a temperatura do planeta simplesmente através de seu desenvolvimento. No início da simulação, a temperatura do planeta se encontra no ponto de fusão da água. Sementes de margaridas são espalhadas pelo planeta, que é fértil e úmido em todos os locais. À medida que o planeta se aquece, o equador se torna em algum ponto suficientemente quente para que as margaridas cresçam. As margaridas pretas surgem primeiro, porque a temperatura do planeta ainda é baixa e elas absorvem mais luz e ficam mais quentes do que o ambiente circundante, mostrando-se mais adaptadas para a sobrevivência e reprodução naquelas condições. As margaridas brancas se encontram em desvantagem, porque refletem a luz da estrela e ficam mais frias do que a superfície. Em sua primeira fase, o Mundo das Margaridas apresenta um anel de margaridas pretas espalhadas ao redor do equador. A população de margaridas pretas cresce rapidamente, espalhando-se pela superfície e aquecendo aquela região do planeta. Com o aumento da luminosidade solar, no entanto, o crescimento das margaridas pretas é limitado no equador, em vista do declínio de sua taxa de crescimento a temperaturas acima de 22,5oC e da competição com as margaridas brancas. Eventualmente, as margaridas pretas desaparecem do equador, passando a colonizar as zonas subtropicais. Ao mesmo tempo, margaridas brancas aparecem no equador, uma vez que refletem o calor, mostrando-se mais adaptadas à sobrevivência em zonas quentes do que as margaridas pretas. Na segunda fase do planeta, há um anel de margaridas brancas ao redor do equador e as zonas subtropicais e temperadas são dominadas por margaridas pretas. As margaridas brancas gradualmente dominam o planeta e, como refletem mais luz para o espaço, resfriam sua superfície. Então, o Sol se torna muito quente e toda a vida vegetal é extinta no equador. As margaridas brancas passam a substituir as margaridas pretas nas regiões temperadas, enquanto estas últimas começam a aparecer ao redor dos pólos. Na terceira fase, o Mundo das Margaridas apresenta a superfície do planeta exposta no equador, as zonas temperadas povoadas por margaridas brancas e as regiões polares, por margaridas pretas. O modelo atinge, com o tempo, uma quarta fase na qual restam apenas margaridas brancas. Por fim, a produção de calor pela estrela se torna tão grande que supera a capacidade de regulação da biota e todas as margaridas morrem. No modelo de Watson e Lovelock, o albedo planetário está intimamente acoplado à evolução das margaridas, e a evolução das margaridas, às mudanças no clima. A propriedade crucial para a obtenção de auto-regulação no modelo é a de que as margaridas, quando absorvem ou refletem a luz, aquecem ou resfriam não apenas elas próprias, mas também o planeta. Ou seja, há um acoplamento entre as condições do planeta e os seres vivos, como postula a teoria Gaia. Se as alças de retroalimentação que conectam em duplo sentido as condições ambientais e o crescimento das margaridas forem interrompidas, de modo que não exista mais influência das margaridas sobre o ambiente, as populações flutuam enormemente e todo o sistema se torna caótico. Basta então restaurar as alças de retroalimentação e o modelo volta a estabilizar-se.
Nos últimos anos, o debate acerca do Mundo das Margaridas se tornou cada vez mais fértil, procurando-se compreender, por exemplo, as relações entre a capacidade adaptativa dos organismos e a capacidade de auto-regulação postulada pela teoria Gaia. Robertson e Robinson (1998) construíram um modelo, o ‘Mundo das Margaridas Darwiniano’(5), no qual a capacidade dos organismos de adaptarem sua fisiologia às mudanças ambientais mina sua capacidade de regular o ambiente. Lenton e Lovelock (2000) criticam o modelo de Robertson e Robinson com base em dois pressupostos assumidos por seus construtores: Primeiro, o de que não há limites para as condições ambientais às quais os organismos podem adaptar-se, de modo que as margaridas se adaptariam a qualquer temperatura, mesmo abaixo do ponto de fusão ou acima do ponto de ebulição da água; segundo, o de que as mesmas taxas de crescimento poderiam ser alcançadas sob quaisquer condições. Quando Lenton e Lovelock incorporam no modelo não apenas a capacidade dos organismos de adaptarem-se às mudanças ambientais, mas também as restrições que atuam sobre esta adaptabilidade, a capacidade de regulação do ambiente é recuperada. Desse modo, a necessidade de conciliar as vantagens e desvantagens de modificar o ambiente ou adaptar-se às condições ambientais existentes, enfrentada pelas linhagens de organismos no processo evolutivo, pode ser incorporada no modelo, sem perda da capacidade de regulação do ambiente, que é o aspecto mais essencial da teoria Gaia.(6)
O modelo do Mundo das Margaridas e outros modelos geofisiológicos (como Lovelock os denomina) mais sofisticados, incluindo mais espécies de margaridas, com diferentes cores, ilustrando a regulação simultânea do clima e da química atmosférica por ecossistemas bacterianos, incorporando o papel da adaptação, e assim por diante, têm contribuído para tornar a teoria Gaia mais aceitável para cientistas de diferentes disciplinas (ver Lovelock 1991a, 1991b, 1993; Lenton & Lovelock 2000, 2001). Tem sido cada vez mais reconhecido que Gaia é uma teoria testável, com conteúdo empírico e poder preditivo, explanatório e heurístico. Num artigo publicado em 1991, Lovelock afirma que esta teoria é rica em previsões ‘arriscadas’, enfatizando sua natureza falsificável, no sentido popperiano (Lovelock 1991a:30. Ver tb. Lovelock 1997:621), e discutindo uma série de evidências favoráveis e contrárias (Lovelock 1991a:34-41. Ver tb. Lovelock 1993:5-10). De fato, previsões acerca de sistemas de retroalimentação específicos respondendo pela regulação do clima e da atmosfera têm sido deduzidas de maneira precisa da teoria e testadas através de experimentos e comparações sistemáticas (ver, por exemplo, artigos em Schneider & Boston 1993). A teoria Gaia conduziu à identificação de um outro sistema possível de controle do clima, que poderia ser tão importante quanto o sistema envolvendo o efeito estufa do dióxido de carbono e do metano: a emissão em escala global de sulfeto de dimetila a partir dos oceanos. Esse fenômeno foi descoberto no curso da busca por um agente químico de origem biológica para completar o ciclo do enxofre (Lovelock et al. 1972). Outra previsão nova oriunda da teoria Gaia, mas difícil, ou mesmo impossível, de ser testada empiricamente, é a de que a vida, quando surge num planeta, deve não apenas adaptar-se ao ambiente, mas propagar-se rapidamente, visto que uma biota esparsa não seria capaz de acoplar-se com o ambiente físico-químico, regulando-o de modo a favorecer sua sobrevivência. Na ausência de uma proliferação rápida da vida, a tendência seria a de uma extinção dos seres vivos, com a evolução geofísica e geoquímica do planeta progredindo na direção de estados de equilíbrio físico-químico como aqueles observados em Marte e Vênus (Lovelock 1990:101). Lovelock (1990) apresenta uma lista de previsões testáveis derivadas da teoria Gaia, discutindo a situação de cada uma delas diante dos testes empíricos até então realizados.
É importante considerar, também, que algumas questões, como, por exemplo, ‘Por que a concentração de oxigênio é de cerca de 21% desde a transição do Arqueano para o Proterozóico?’, ou ‘Por que o clima permaneceu favorável à biota pelos últimos 3,6 bilhões de anos?’, eram raramente colocadas antes de a teoria Gaia ter sido proposta.
Mas, apesar da reação
mais positiva observada nos últimos anos, Lovelock e Margulis não
tiveram sucesso, durante muito tempo, em suas tentativas de convencer a
comunidade científica de que sua idéia merecia investigação.
Eles encontraram dificuldade para publicar seus primeiros artigos conjuntos
sobre a hipótese Gaia. Revistas científicas de maior impacto,
como Nature e Science, recusaram seus artigos e convites como o de Carl
Sagan, então editor da revista Icarus, foram providenciais (Capra
1996:106). Gaia se tornou uma noção mais adotada por grupos
ambientalistas e religiosos do que pela comunidade científica (Schneider
& Boston 1993). Apenas recentemente, a partir do impacto dos modelos
construídos por Lovelock e Watson e do aumento do número
de cientistas envolvidos com o programa de pesquisa iniciado por Lovelock
e Margulis, essa situação começou a mudar.
As críticas de Kirchner
Não se pode perder de vista críticas vigorosas à teoria Gaia como as de Kirchner (1989, 1993). Este autor argumenta que Gaia não é uma ‘hipótese’ única, tratando-se, antes, de uma série de ‘hipóteses’ distintas, variando de fracas a fortes. As ‘hipóteses’ fracas incluiriam aquelas que enunciam que a biosfera está envolvida na dinâmica planetária. Kirchner observa que nada há de novo nesta idéia e, por isso, ela é de fácil aceitação pela comunidade científica. As ‘hipóteses’ fortes incluiriam aquelas que se referem a uma fisiologia planetária com o propósito de regular a dinâmica da Terra, como no caso de ‘Gaia Teleológica’, a idéia de que a atmosfera terrestre, por exemplo, poderia ser vista como “um dispositivo constituído especificamente para um conjunto de propósitos” (Lovelock & Margulis 1974a:3). Kirchner critica este enunciado da teoria Gaia por ser incompleto, uma vez que o propósito do suposto mecanismo de controle biológico não é definido. Ele enfatiza que propósito e função somente coincidem em dispositivos que funcionam adequadamente. No entanto, se a atmosfera funciona adequadamente, ou se ela é de fato um dispositivo, é exatamente a questão em pauta. Argumentando que a atmosfera certamente tem uma série de funções importantes, Kirchner coloca uma pergunta inevitável: Qual das funções da atmosfera deve contar como seu ‘propósito’? Sem um propósito definido de maneira independente, Gaia Teleológica simplesmente afirma que a atmosfera cumpre o propósito de fazer qualquer coisa que ela faça.
Este problema é resolvido por outra versão da teoria, ‘Gaia Otimizadora’(7) , na qual se afirma que o propósito de Gaia é manter um ambiente físico-químico ótimo para a biota. Lovelock e Margulis (1974b), por exemplo, apresentam sua hipótese como a idéia de que energia é gasta pela biota para manter ativamente um ambiente ótimo para a vida na Terra. Kirchner explicita um difícil problema colocado por este argumento: Como definir uma condição ótima para toda a biosfera? Afinal de contas, ela inclui uma enorme diversidade de organismos, cada um dos quais com requisitos diferentes, e muitas vezes conflitantes, para sua sobrevivência.
Lovelock considera que uma parte das idéias que Kirchner atribui a ele não corresponde, de fato, a noções que ele tenha defendido, propondo-se a distinguir a teoria Gaia ‘real’ de um conjunto de idéias ‘parasitas’ ou ‘inquilinas’, incluindo Gaia ‘coevolutiva’, ‘otimizadora’ e ‘dotada de propósito’ (Lovelock 1991a:31. Ver tb. Lovelock 1990:101). Referindo-se à apresentação de Kirchner na Conferência Chapman da União Americana de Geofísica(8), em março de 1988, Lovelock (1990:101) escreve: “Como alguma figura da Inquisição, ele queimou publicamente várias Gaias imaginárias e sua demolição pirotécnica da Gaia forte roubou o show. Mas quando as centelhas desapareceram, o real sistema de Gaia ainda estava lá, apenas oculto pela fumaça”. No entanto, ele e Margulis escreveram sentenças cujo conteúdo inclui de maneira evidente idéias criticadas por Kirchner, incluindo a noção de teleologia:
“Nós estamos chamando a noção da biosfera como um sistema adaptativo de controle ativo capaz de manter a Terra em homeostase de hipótese ‘Gaia’” (Lovelock & Margulis 1974a:3).
“... a atmosfera da Terra é mais do que simplesmente anômala; ela parece ser um dispositivo constituído especificamente para um conjunto de propósitos” (Lovelock & Margulis 1974a:3).
“Nós acreditamos que Gaia é uma entidade complexa envolvendo a biosfera, os oceanos, o solo e a atmosfera terrestres. A totalidade constitui um sistema cibernético ou de retroalimentação que busca um ambiente físico e químico ótimo para a biota” (Margulis & Lovelock 1974:473).
Estes trechos ilustram, respectivamente, as versões homeostática, teleológica e otimizadora da teoria Gaia, de acordo com a taxonomia de Kirchner. São trechos escritos pelo próprio Lovelock, de modo que, apesar de ele sugerir que Kirchner lhe atribui idéias que não reconhece como suas, as dificuldades suscitadas pelas versões mais fortes da teoria Gaia merecem atenção. Kirchner (1993) afirma que a idéia de que há um propósito na manutenção da constância climática e da instabilidade atmosférica pela biosfera não é testável, a menos que o propósito de Gaia ou o significado de um ambiente físico-químico biologicamente ótimo seja precisamente definido. Trata-se de uma acusação séria, implicando, em termos popperianos, que a teoria Gaia não pode ser considerada, em suas versões mais fortes, científica, a não ser que se proponha uma interpretação teleológica adequada para ela. A situação se torna ainda mais complexa, quando se leva em conta que o próprio Lovelock não está disposto a admitir uma interpretação dessa natureza (ver Lovelock 1990:100, 1991a:30, 1991b:11). Seria o caso, então, de optar-se por uma interpretação mais fraca, rejeitando-se as noções de teleologia e otimização. No entanto, as versões mais fracas da teoria Gaia não possuem, para Kirchner, qualquer conteúdo novo. Na visão deste autor, a teoria Gaia, onde parece ser nova, não é científica, e onde parece ser cientificamente aceitável, nada diz de novo. A perspectiva de uma aceitação da teoria de Lovelock e Margulis pela comunidade científica não é, nesses termos, muito promissora. No entanto, como afirmamos acima, esta teoria parece possuir conteúdo empírico, e poder explanatório, preditivo e heurístico, orientando o trabalho de investigação de um número crescente de pesquisadores. Considerando-se, então, que as versões mais fortes da teoria Gaia se mostram mais interessantes, é importante para o desenvolvimento do programa de pesquisa iniciado por Lovelock a formulação de uma explicação teleológica cientificamente válida desta teoria, apesar da cautela de seus proponentes a este respeito.
Neste trabalho, não trataremos do problema
da cientificidade da teoria Gaia em termos da natureza das explicações
teleológicas envolvidas. Nosso objetivo está focado sobre
a análise da proposição de que a Terra é um
ser vivo, usualmente encontrada nos escritos de Lovelock. Como escreve
Kirchner (1993:46), “a percepção comum é a de que
Gaia significa que ‘a Terra é viva’ ou que a biosfera está
tentando fazer uma boa casa para si própria aqui. Porque muitas
pessoas não compreendem os riscos de tratar afirmações
poéticas como proposições científicas, o público
em geral pensa que os cientistas estão ocupados tentando compreender
se a Terra realmente é ‘viva’. Eu não penso que aquela percepção
ajude a qualquer um de nós”. Esta citação destaca
alguns dos aspectos centrais que devem ser considerados numa análise
epistemológica da teoria Gaia, particularmente quando se examina
a perspectiva de sua transposição para o conhecimento escolar.
Uma discussão cuidadosa da proposição de que a Terra
é um ser vivo e da possibilidade de sua justificação
teórica é particularmente importante, porque se trata da
idéia mais destacada, entre os vários conteúdos da
teoria Gaia, por obras de divulgação científica (e.g.,
Capra 1996) e em textos escritos por leigos (e.g., Spowers 2000). Além
disso, o próprio Lovelock, quando se dirige ao público leigo,
costuma colocar maior ênfase sobre a caracterização
da Terra como um ser vivo do que sobre outros aspectos de sua teoria (ver
abaixo).
Gaia e definições de vida
Ao chamar sua teoria de ‘Gaia’ e colocar a Terra na condição de um ser vivo, Lovelock deixou a porta aberta para as mais diversas interpretações de suas idéias. Como Myrdene Anderson observou (apud Lovelock 1990:102), ‘Gaia’ é um signo vazio com capacidade quase infinita de significação. O próprio Lovelock (1990:102) reconheceu que o termo ‘Gaia’ se estendeu muito além de suas intenções, comparando-o a uma lata vazia deixada numa rua, sendo gradualmente enchida com um monte de lixo. Embora ele afirme que este é o destino de qualquer signo novo, é razoável pensar que um dos motivos para que isso tenha ocorrido foi a escolha do nome ‘Gaia’, que contribuiu tanto para a rejeição da teoria por muitos cientistas como para a adesão entusiasmada de grupos ambientalistas e espiritualistas (Schneider & Boston 1993). Lovelock propôs um substituto para o termo ‘Gaia’, ‘Geofisiologia’, referindo-se àquele primeiro termo como uma “abreviação para a teoria” (Lovelock 1990:100). Contudo, este neologismo não se tornou muito difundido, provavelmente porque é um termo muito menos atraente do que ‘Gaia’.
O termo ‘Geofisiologia’ preserva a idéia de que a Terra é um super-organismo. Considerando-se que o conceito de ‘super-organismo’ é uma das noções mais polêmicas na história da Ecologia (e.g., Simberloff 1980), a referência a ele torna a teoria Gaia ainda mais controversa. A inspiração para aquele neologismo se encontra em Hutton (para Lovelock, um precursor de sua hipótese), que concebia a Terra como um super-organismo e afirmou que seu estudo apropriado seria através da Fisiologia (Lovelock 1991a:31, 1993:3, 1997:619). Hutton chegou a propor uma analogia entre a circulação sangüínea e a circulação de nutrientes na Terra. Essa analogia mostra um problema que torna noções como a de ‘super-organismo’ tão controversas: embora analogias e metáforas sejam elementos indispensáveis da teorização científica, elas se tornam problemáticas quando há mais diferenças do que semelhanças entre os elementos que colocam em relação (Bradie 1980, 1984, 1995; Kirchner 1989, 1993; Ortony 1993; Rocha & El-Hani 1996).
Lovelock (1990:102) lamenta que sua hipótese tenha sido colocada lado a lado com a filosofia da ‘Nova Era’ e se preocupa com a possibilidade de que Gaia tenha dado apoio à anticiência. Colocações como estas, encontradas num artigo que é basicamente um manifesto a favor da cientificidade da teoria Gaia, mostram a intenção de Lovelock de convencer seus pares a reconhecerem em sua teoria uma idéia digna de investigação. Neste contexto, a proposição de que a Terra é um sistema vivo, encontrada na maioria dos trabalhos de Lovelock, sendo inclusive destacada no título de alguns deles (e.g., Lovelock 1986, 1995b, 1997), se torna particularmente problemática. Embora esta seja uma afirmação sedutora para o senso comum, ela deve ser defendida de maneira consistente para que a comunidade científica possa aceitá-la. Afinal, como o próprio Lovelock (in: Spowers 2000:26) reconhece, a afirmação de que a Terra se comporta como um animal o envolveu num terreno bastante controverso. É preciso demonstrar que essa idéia pode ser justificada à luz do estado atual do conhecimento científico e, em particular, de alguma definição geralmente aceita dos conceitos de ‘vida’ ou ‘ser vivo’.
Diante deste problema, não basta afirmar, como faz Lovelock (in: Spowers 2000:26), que se trata apenas de uma metáfora. A metáfora de que a Terra é um ser vivo traz o risco, apontado por Kirchner (1993:46), de levar as pessoas a confundirem afirmações poéticas com proposições científicas. Kirchner (1989:226-227) observa que pode haver algum sentido no qual seja possível conceber a Terra como um organismo, mas esta analogia requer, para ser sustentada, uma estipulação de quando ela se aplica ou não se aplica. Modos específicos através dos quais a biosfera supostamente viria a exibir atributos de um organismo global (e.g., homeostase) podem ser considerados hipóteses testáveis, mas a própria analogia não é testável, porque não apresenta conteúdo empírico além dos dados que sugerem maneiras específicas em que ela se aplica ou não. A analogia entre Terra e seres vivos deve ser objeto de outro tipo de investigação, de natureza teórica, na qual ela seja analisada com base em algum conceito de ‘vida’ ou ‘ser vivo’. Pode ser, por exemplo, que uma demonstração empírica de que a Terra exibe homeostase e de que esta se relaciona diretamente à ação da biosfera seja irrelevante para a classificação da Terra como um ser vivo. Afinal, esta demonstração só se mostraria relevante quando cotejada com uma definição de ‘vida’ na qual a propriedade de exibir homeostase seja considerada um atributo definidor deste fenômeno. De outro modo, seria demonstrado apenas que entidades caracterizadas, com base em alguma definição de ‘vida’, como ‘vivas’ exibem uma propriedade que a Terra, que poderia não ser qualificada como ‘viva’ à luz daquela definição, também apresenta. Nesse caso, existiria uma analogia entre organismos e o sistema planetário, mas ela não apoiaria a proposição de que a Terra é viva.
Lovelock não justifica sua caracterização da Terra como um ser vivo com base em alguma definição de ‘vida’, limitando-se a propor analogias que não são suficientes para tal caracterização. Isso pode ser visto numa análise de alguns de seus artigos. Lovelock inicia sua contribuição à obra Biodiversity, organizada por Edward Wilson, afirmando que “a idéia de que a Terra é viva pode ser tão velha quanto a humanidade. Os antigos gregos deram-lhe o poderoso nome de Gaia e tinham-na como deusa” (Lovelock 1997:619). Ele descreve sua hipótese como uma retomada de uma ‘visão holística do planeta’ presente nesta antiga idéia e, também, na visão de Hutton sobre a Terra(9). Lovelock considera que os estudos realizados por ele e Hitchock confirmaram “a visão que James Hutton teve de um planeta vivo” (Lovelock 1997:620). A conclusão de que a Terra é viva é justificada por ele através de analogias, como, por exemplo, entre a auto-regulação do clima e da composição atmosférica do planeta e a propriedade de homeostase exibida pelos seres vivos: “... isso significaria que o planeta está vivo – pelo menos até o ponto em que compartilha com outros organismos vivos a maravilhosa propriedade da homeostase” (Lovelock 1997:620). O acoplamento da biota e do ambiente físico-químico através de um sistema de retroalimentação faria a Terra comportar-se, em sua visão, de maneira similar a um organismo vivo (Lovelock 1990:101). Ele também utiliza outra propriedade compartilhada pela Terra e por organismos, a de que ambos são sistemas abertos que apresentam limites, como base para a conclusão de que “... Hutton estava correto ao chamar a Terra de um super-organismo” (Lovelock 1990:101). A proposição de que a Terra é um super-organismo, exibindo homeostase como uma propriedade emergente, levaria, então, à conclusão de que o estudo da Terra requer Fisiologia, ao lado da Física e da Química (Lovelock 1991a:34, 1993:4-5). Lovelock (1990, 1991a) entende a auto-regulação do clima e da composição química da atmosfera como propriedades emergentes que não envolvem qualquer teleologia. A natureza emergente de Gaia também é citada por ele como uma similaridade entre os organismos e o sistema evolutivo incluindo a biota e o ambiente físico-químico descrito por sua teoria (Lovelock 1991a:33, 1993:4). A vida seria “um domínio em escala planetária que emerge após a vida ter originado-se” (Lovelock 1991a:41). Ao considerar a analogia entre a natureza emergente dos seres vivos e do sistema de controle de Gaia, Lovelock não reconhece que até mesmo sistemas abióticos simples podem exibir propriedades emergentes (Kirchner 1989:227)(10). O problema é que o compartilhamento de uma ou mais propriedades não assegura, na ausência de um conceito de ‘vida’, que a Terra possa ser incluída na mesma classe que os ‘outros organismos vivos’, como Lovelock pretende. Listar propriedades, como será discutido abaixo, é uma abordagem inadequada para o problema de diferenciar seres vivos e objetos inanimados.
Não encontramos nas
obras de Lovelock que analisamos qualquer definição de vida
baseada nas propriedades citadas acima, de modo a fundamentar a proposição
de que a Terra é viva. Ele se limita a repetir sempre as mesmas
analogias. Esta não é, entretanto, uma atitude defensável,
porque a proposição de que a Terra é viva estende
o conceito ordinário de vida para além de seus limites (Bedau
1996), necessitando de justificação por meio de uma análise
conceitual adequada.
É verdade que Lovelock se coloca o problema da definição
de vida: “Então há a questão ‘O que a palavra vivo
significa?’ Biólogos evitaram cuidadosamente a tentativa de respondê-la”
(Lovelock 1991a:34, 1993:4). No entanto, ele não oferece uma resposta
apropriada, limitando-se a comparar Gaia com uma espécie de choupo,
de modo a destacar semelhanças: “De muitas maneiras, a árvore
do choupo, viva, mas ainda assim incapaz de reproduzir-se, é como
Gaia. Ambos são feitos principalmente de matéria morta que
foi profundamente alterada por organismos vivos, e ambos têm apenas
uma fina pele de tecido vivo ao redor de suas circunferências” (Lovelock
1991a:34. Ver tb. 1991b:31ff.). Em vez de uma análise conceitual
visando responder a pergunta que ele próprio se coloca, Lovelock
apenas oferece mais uma analogia. Da mesma forma, quando responde à
crítica de que a Terra não é um organismo porque não
se reproduz e não evolui por seleção natural, ele
se limita a mencionar outros atributos presentes na Terra, de acordo com
sua teoria, que considera tão importantes quanto a reprodução:
metabolismo e capacidade de homeostase (in: Spowers 2000:27).
Em suma, não foi encontrada nos escritos de Lovelock examinados a análise conceitual necessária para demonstrar a plausibilidade da caracterização da Terra como um sistema vivo. Na ausência de uma definição de vida coerente com algum referencial teórico sobre as únicas entidades conhecidas que são indubitavelmente ‘vivas’, os organismos típicos, uma reação apreensiva à descrição de Gaia como um organismo, encontrada até mesmo entre os biólogos que são amigos de Lovelock (ver Lovelock 1990:102), é justificada. Não basta afirmar que a teoria Gaia está apenas retomando, ao propor que a Terra é um ser vivo, uma tradição que remonta a Da Vinci ou Hutton e que teria sido supostamente rejeitada pela Biologia no século XIX por causa da influência do reducionismo (Lovelock 1990:102) ou de um interesse crescente nas origens e nas teorias evolutivas da Terra e da vida (Lovelock 1991a:31, 1993:3). Não se trata, tampouco, de uma incapacidade da comunidade científica de lidar com a metáfora de que a Terra é viva (Lovelock, in: Spowers 2000:27). O problema é de outra ordem e muito mais sério: a descrição de Gaia como um organismo não pode sustentar-se do ponto de vista teórico na ausência de alguma definição de ‘vida’. É preciso ir além da metáfora construída por Lovelock, levando a cabo uma análise teórica que poderia colocar a própria validade daquela metáfora em dúvida.
O fato de que a percepção mais comum sobre a teoria Gaia é a de que ela significa que a Terra está viva (Kirchner 1993:46) mostra a importância de examinar esta afirmação ao analisar-se a cientificidade desta hipótese. Por exemplo, numa entrevista recente de Lovelock (Spowers 2000), o conteúdo que predomina é o de que a Terra é um ser vivo. Apenas depois de a idéia de que o planeta e a biosfera constituem um super-organismo ter sido enfatizada, aparece uma referência às proposições que formam, em nossa visão, o núcleo duro (Lakatos 1979) de Gaia como uma teoria científica, i.e., as afirmações de que os seres vivos e seu ambiente material formam um sistema em evolução intimamente acoplado e indivisível, e de que a auto-regulação do clima e da composição química atmosférica são propriedades que emergem ao nível do planeta como um todo. Sintomaticamente, estas são as proposições destacadas por Lovelock em artigos nos quais busca defender a cientificidade de sua hipótese. Por exemplo, quando descreve sua teoria em ‘Hands up for the Gaia hypothesis’, a afirmação de que a Terra é viva não é mencionada: “De muitas maneiras, Gaia [...] é difícil de descrever. O mais próximo que posso chegar é referir-se a Gaia como a teoria de um sistema em evolução – um sistema composto dos organismos vivos da Terra e de seu ambiente material, sendo as duas partes intimamente acopladas e indivisíveis” (Lovelock 1990:100). Da mesma forma, quando ele se propõe, em ‘Gaia: A planetary emergent phenomenon’, a apresentar a hipótese de maneira mais clara do que em seus primeiros artigos, não há qualquer referência à Terra como um ser vivo: “A hipótese Gaia amadureceu ao longo dos últimos quinze anos e pode agora ser mais claramente enunciada como uma teoria que vê a evolução da biota e de seu ambiente material como um processo único intimamente acoplado, com a auto–regulação do clima e da química como uma propriedade emergente” (Lovelock 1991a:30). Por fim, um exemplo importante é encontrado num artigo recente dirigido especificamente à comunidade científica (Lenton & Lovelock 2000). Neste artigo, a afirmação de que a Terra é viva não está sequer presente. A teoria é descrita da seguinte maneira: “A teoria Gaia propõe que a biota da Terra e seu ambiente superficial [...] formam um sistema auto-regulatório que mantém o planeta num estado habitável” (Lenton & Lovelock 2000:109). É claro que o próprio Lovelock também nutre a idéia de que um dos principais conteúdos de sua teoria reside na proposição de que a Terra é viva, como exemplifica sua concordância com a seguinte afirmação: “... nós podemos ver Gaia como uma extensão macrocósmica de nossos próprios corpos” (Spowers 2000:26). No entanto, é interessante observar que há uma diferença importante na maneira como ele apresenta a teoria para a comunidade científica e para o público leigo.
Spowers (2000:25) atribui
a resistência da comunidade científica à hipótese
Gaia a dois fatores: (i) os paralelos entre Gaia e crenças animistas,
dado que, nos dois casos, afirma-se que a Terra é viva; (ii) a abordagem
holística de Gaia, que estaria em contraste direto com a abordagem
reducionista da ciência moderna. Não discutiremos este segundo
ponto, reservando-o para trabalhos futuros. O que nos interessa aqui é
o fato de que Spowers não reconhece que a dificuldade não
reside apenas na similaridade de conteúdo entre a idéia de
que a Terra é viva na teoria de Lovelock e crenças animistas,
mas na ausência de uma justificativa teórica adequada para
a proposição de que a Terra é viva.
Definindo vida
A palavra ‘Biologia’ é uma filha do século XIX. O próprio conceito de ‘vida’ não existia até o fim do século XVIII. Existiam apenas seres vivos (Foucault 1987). Essa constatação causa menos espanto quando a entendemos contra o pano de fundo do surgimento de uma nova visão de mundo, baseada na idéia de evolução, a partir de meados do século XVIII (Bowler 1989). Não foi por acaso que os primeiros naturalistas a conceberem a noção de uma ‘Biologia’, de uma ciência unificada dos seres vivos, Karl Friedrich Burdach (em 1800), Gottfried Treviranus (em 1802) e Jean-Baptiste Lamarck (em 1802), estivessem também entre os primeiros evolucionistas. É fácil entender, então, por que a maioria dos biólogos se preocupa com os ataques desferidos por criacionistas ao ensino de evolução: na ausência da evolução, o ensino de Biologia perde, como um todo, o seu sentido (cf. Dobzhansky 1973). Uma ciência da vida só faz sentido quando a vida é concebida como um fenômeno único e essa concepção não é natural numa visão criacionista, na qual os seres vivos só podem estar vinculados uns aos outros no máximo como idéias na mente de um criador. Em contraste, quando todos os seres vivos – toda a diversidade biológica – são entendidos como ramos de uma única árvore evolutiva (Meyer & El-Hani 2000), a vida é naturalmente vista como um fenômeno unificado.
A compreensão da diversidade
biológica como um conjunto de variações sobre um mesmo
tema, a vida, leva naturalmente à busca de atributos compartilhados
pelos seres vivos. A pesquisa biológica revelou, de fato, uma unidade
desconcertante na diversidade da vida, na forma da universalidade do DNA
como memória genética (com exceção dos vírus
de RNA, se forem considerados vivos), na quase universalidade do código
genético, no compartilhamento de vias metabólicas básicas
etc. Diante disso, pode-se pensar que definições de vida
consistentes e bem formuladas são encontradas no começo de
todo bom livro de Biologia. No entanto, definições de vida
são raramente discutidas em profundidade e às vezes não
são sequer mencionadas em livros-texto ou dicionários de
Biologia (Emmeche 1997, El-Hani & Kawasaki 2000). Na história
da Biologia, a raridade das tentativas de refletir crítica e sistematicamente
sobre a natureza dos seres vivos e a definição de vida causa
perplexidade. A expectativa natural é que biólogos, na medida
em que se dedicam à ‘ciência da vida’, sejam compelidos a
buscar uma definição clara de seu objeto de estudo, no sentido
mais geral. Além disso, esperar-se-ia também que filósofos
se interessassem pela questão, dado que a filosofia se debruçou
no passado sobre o problema da natureza da vida. O que se observa, entretanto,
é que a maioria dos filósofos atualmente ignora a questão,
como se o problema da natureza da vida fosse apenas pertinente ao domínio
dos discursos científicos sobre este fenômeno. É como
se o problema da vida parecesse, hoje, muito ‘científico’ para ser
objeto de trabalho de um filósofo. Para os biólogos, por
sua vez, o tópico parece ‘filosófico’ demais (Bedau 1996).
Assim, o problema da natureza da vida se tornou uma terra de ninguém,
o que explica a falta, num século que viu a pesquisa biológica
florescer e aprofundar-se como nunca antes, de uma discussão séria
e continuada a seu respeito.
As tentativas de definir vida foram freqüentemente entendidas
como especulações ‘meramente teóricas’ ou ‘metafísicas’,
sendo contrastadas, de maneira a denegri-las, com os ‘fatos’ da pesquisa
experimental (Emmeche 1997, Emmeche & El-Hani 2000). James Watson (1986:31)
lamenta o fato de que cientistas inteligentes se preocupem com a ‘filosofia
da célula’, em vez de dedicarem-se à Biologia experimental,
afirmando que não deseja sofrer do que chama de ‘doença
alemã’, um interesse pela filosofia, e manifestando sua aversão
a “abstrações que não conduzem a nada”. Contudo, a
Biologia não pode limitar-se à vida de laboratório
(Emmeche & El-Hani 2000). Como em qualquer ciência, a construção
de teorias, uma tarefa que freqüentemente nos leva a um terreno fronteiriço
com a filosofia, é igualmente importante. Uma Biologia teórica
é tão fundamental para o crescimento das ciências da
vida quanto uma Biologia empírica (incluindo, mas não limitando-se
à Biologia experimental). Admitido este ponto, pode-se até
mesmo afirmar, como Rizzotti (1996), que definir ‘vida’ é o problema
central da Biologia teórica. Afinal, para entender essa ciência
denominada ‘Biologia’, é necessário compreender a natureza
de seu objeto de estudo, a vida.
Nessa empreitada, é importante não perder de vista que investigar definições de vida significa trabalhar no componente metafísico dos paradigmas biológicos (cf. Kuhn 1996), lidando com um tipo muito geral de objetos científicos, que são parte da ontologia da ciência. Emmeche (1997) inventou um conceito útil, ‘ontodefinição’, para denominar as definições propostas para estes tipos muito gerais de objetos, que se encontram na fronteira entre ciência e metafísica, como ‘vida’, ‘mente’, ‘matéria’, ‘consciência’, ‘espaço’, ‘tempo’ etc. A investigação de ontodefinições pode ser considerada parte do trabalho de um metafísico moderno, entendendo-se a metafísica, segundo Harré (1985), como a teoria dos conceitos e de suas relações. Um metafísico moderno deve, salienta Harré, buscar a clareza do pensamento através de um estudo cuidadoso dos conceitos, dando especial atenção ao papel destes nos jogos de linguagem da ciência. Um aspecto importante de seu trabalho consiste na análise das relações entre conceitos. Este artigo se vincula, assim, também ao tipo de investigação metafísica descrito por Harré, dado que pretendemos analisar a relação entre os conceitos de ‘vida’, na Biologia teórica, e da Terra como um ser ‘vivo’, na teoria Gaia, buscando compreender as possibilidades e limitações deste último.
Nos casos em que definições de vida foram propostas, a apresentação de listas de propriedades encontradas em seres vivos, mas não em objetos inanimados, se destaca como a abordagem mais usual. Crick (1981), por exemplo, menciona auto-reprodução, genética e evolução, e capacidade de metabolizar; Küppers (1985) lista metabolismo, auto-reprodução e mutabilidade; De Duve (1991) se refere a assimilação, conversão de energia em trabalho, catálise, informação, isolamento controlado, auto-regulação e multiplicação; Mayr (1982) cita complexidade e organização, singularidade química, qualidade, individualidade e variabilidade, presença de um programa genético, natureza histórica, seleção natural e indeterminação. Vários outros exemplos poderiam ser citados, mas estes são suficientes para nossos argumentos. A tentativa de caracterizar a vida através de listas de propriedades envolve problemas difíceis ou até mesmo impossíveis de solucionar. Comparando-se as listas apresentadas acima, não são encontradas muitas concordâncias. Considere-se, então, o problema do número e tipo das propriedades que deveriam ser incluídas numa lista de condições necessárias e suficientes para a vida. De todas as listas possíveis de propriedades, como escolher aquela que seria a mais correta? Como garantir que uma propriedade crucial não foi deixada de fora? Ou que uma propriedade desnecessária não foi incluída? Nós simplesmente não estamos em posição de responder a essas questões, porque não temos e nem há maneira de termos acesso à vida em si mesma, a alguma ‘essência’ da vida que pudesse servir de parâmetro para respondê-las. Diante da dificuldade ou mesmo impossibilidade de definir vida por meio de listas de propriedades, a inadequação das analogias entre propriedades da Terra e de seres vivos utilizadas por Lovelock como base para a caracterização da Terra como um organismo se torna evidente.
Nenhuma lista de propriedades pode ser considerada uma solução adequada para o problema de definir vida. É importante, possivelmente indispensável, relacionar de maneira consistente as propriedades listadas umas com as outras, explicando-as sempre que possível à luz de algum paradigma biológico (Emmeche 1997; Emmeche & El-Hani 2000)(11). Nesses termos, a tarefa de definir ‘vida’ é entendida como uma tentativa de explicitar as relações deste conceito com um conjunto de outros conceitos incluídos em algum paradigma. É preciso, então, considerar, ainda que brevemente, como conceitos adquirem significado dentro de paradigmas. Num paradigma, conceitos são definidos em termos de outros conceitos. Em princípio, isso deveria levar a um sério problema de regressão infinita das definições (cf. Chalmers 1995:110). Isso não ocorre, no entanto, nos paradigmas científicos, porque o significado de um conjunto de conceitos é compartilhado em tal extensão pela comunidade de pesquisadores que eles não precisam ser definidos, sendo tomados como auto-evidentes. Isso permite, por um lado, a construção de definições para os outros conceitos no domínio daquele paradigma, e, por outro, circunscreve as possibilidades de aplicação destas. Assim, conceitos não adquirem, num paradigma, significado de maneira isolada, nem através de alguma suposta relação entre o ato de defini-los (i.e., de atribuir-lhes um significado particular) e a realidade. Definir ou explicar um conceito como parte de um paradigma implica introduzi-lo numa rede de conceitos que mutuamente se suportam e atribuem significado uns aos outros, sobre a base de um conjunto de conceitos tomados como auto-evidentes (ainda que, em sentido estrito, não o sejam). O significado de um conceito emerge de suas conexões com os demais elementos de uma rede de conceitos incluída num paradigma (Emmeche & El-Hani 2000).
Bedau (1996) observa que
o que se está buscando, ao discutir-se o problema de definir vida,
é uma explicação do porquê de um conjunto de
propriedades coexistirem nos seres vivos, de modo que uma lista de propriedades,
em vez de resolver a questão, apenas a levanta. Poder-se-ia argumentar
que a lista é algo como uma síndrome médica, nada
mais que uma coleção de sintomas, que poderia não
ter qualquer causa subjacente. Mas o argumento não se sustenta,
porque quando uma síndrome médica é descoberta, o
passo seguinte é investigar as causas subjacentes à coexistência
daquela lista de sintomas, e não tomar a lista como um ponto final
satisfatório. Assim, causas para o que anteriormente parecia ser
apenas uma síndrome são freqüentemente encontradas.
Da mesma maneira, listas de propriedades dos seres vivos não são
uma solução para o problema de definir vida. Elas antes colocam
o problema de encontrar-se algum conjunto de causas e, assim, alguma explicação
subjacente àquela conjunção de propriedades características
da vida. Um paradigma biológico no qual seja possível propor
ou descobrir uma definição para o termo ‘vida’ deve ser potencialmente
capaz, também, de oferecer uma explicação para a coexistência
de elementos que antes eram apenas parte de uma lista mais ou menos frouxa
de propriedades. Este é um dos requisitos que podem ser considerados
ao examinar-se definições de vida no contexto de um paradigma.
Emmeche (1997) propõe outros requisitos para uma definição
de vida: Generalidade – a definição deve ser capaz de incluir,
na medida do possível, todas as formas possíveis de vida,
e não apenas as formas contingentes da vida como a conhecemos na
Terra; coerência com o conhecimento científico atual – a definição
deve ser coerente com o conhecimento atual sobre os sistemas vivos, baseado
na pesquisa biológica, química e física; elegância
conceitual e capacidade de organização cognitiva – a definição
deve ser capaz de propiciar um perfil claro ao objeto de estudo da Biologia
como um todo, organizando nossas teorias e nossos modelos cognitivos sobre
os sistemas vivos de maneira unificada e coerente; especificidade – a definição
deve ser suficientemente específica para distinguir sistemas vivos
de coisas que obviamente não são vivas.
Quando o procedimento de
listar propriedades dos seres vivos é colocado de lado como solução
para o problema de definir vida, propondo-se em seu lugar a análise
das relações entre este conceito e outros conceitos incluídos
de maneira coerente em paradigmas biológicos, a conclusão
a que se chega é que não só é possível
definir vida, mas já existem na Biologia atual pelo menos três
definições de vida que satisfazem os requisitos acima (Emmeche
1997, Emmeche & El-Hani 2000). Estas definições são
encontradas na Biologia evolutiva neodarwinista, na teoria da autopoiese
e na biossemiótica.
Vida como a seleção natural de replicadores
A síntese neodarwinista tem sido, desde a década de 1940, a teoria mais influente nas Ciências Biológicas. Ela propicia a explicação científica mais aceita da diversidade dos seres vivos, cumprindo um papel central e, em grande medida, unificador no pensamento biológico contemporâneo. É relevante, então, que uma definição de vida possa ser encontrada de maneira implícita na biologia evolutiva neodarwinista. É fácil explicitá-la e, isso feito, é provável que a maioria dos biólogos evolutivos a aceite sem dificuldade. Ela exemplifica uma das situações na qual uma definição de vida pode ser encontrada num paradigma, i.e., como um elemento implícito em sua rede de conceitos.
Maynard Smith buscou explicitar essa definição, afirmando que a vida pode ser definida mediante a presença das propriedades necessárias para evolução por seleção natural: “... entidades com as propriedades de multiplicação, variação e hereditariedade são vivas, e entidades que não possuem uma ou mais destas propriedades não o são” (Maynard Smith 1986:23). Emmeche, por sua vez, define a vida no contexto da biologia evolutiva neodarwinista como segue: “a vida é uma propriedade de populações de entidades que (1) se auto-reproduzem, (2) herdam características de seus predecessores por um processo de transferência informacional de características hereditárias (implicando uma distinção entre genótipo e fenótipo), (3) variam devido a mutações aleatórias (no genótipo), e (4) têm as chances de deixar descendentes determinadas pelo sucesso da combinação de propriedades (herdadas como genótipo e manifestas como fenótipo) diante dos desafios do regime seletivo ambiental” (Emmeche 1997).
Essas definições
satisfazem os requisitos propostos acima. Porém, considerando-se
sua generalidade, é preciso enfatizar que termos como ‘genótipo’
e ‘fenótipo’ não implicam necessariamente genes feitos de
DNA e organismos compostos de células, devendo ser interpretados
como referências gerais a quaisquer tipos de replicadores e interagentes.
Um replicador, conforme definido por Dawkins (1979:36), é uma molécula
que apresenta a propriedade de fazer cópias de si mesma, ou, em
termos mais gerais, qualquer estrutura que, no ambiente correto, pode agir
como molde para sua própria cópia (Sterelny 2001:17). Um
interagente é qualquer entidade que interage como um todo com o
ambiente, com seu sucesso adaptativo frente às pressões seletivas
presentes em cada circunstância ambiental determinando as chances
de os replicadores passarem cópias para a próxima geração
(Hull 1981).(12)
Vida como autopoiese
Uma definição de vida é encontrada na teoria da autopoiese, desenvolvida por Maturana e Varela na década de 1960. Esta teoria resultou da tentativa de Maturana de resolver duas questões aparentemente distintas com as quais se defrontou em sua atividade profissional: Qual é a característica distintiva de um sistema vivo? O que acontece no fenômeno da percepção? Maturana observou que a principal questão colocada por seus estudantes dizia respeito às propriedades que distinguiam os seres vivos dos objetos inanimados. Entrementes, seus estudos sobre a visão de formas e cores em pássaros resultou em dados inusitados, que o levaram a inferir que a relação entre a retina e os estímulos físicos externos não era o principal fator a ser considerado, mas antes a relação entre as atividades retinais e as experiências de percepção de cor daqueles animais. A percepção não parecia ser uma representação de uma realidade externa, mas uma criação incessante de novas relações dentro de redes neurais. Ele havia chegado, pelo caminho da Neurofisiologia, a considerações sobre a natureza da percepção que a Filosofia tinha alcançado anteriormente por outros caminhos (El-Hani & Pereira 2001). Para Maturana, isso mostrava que as atividades do sistema nervoso eram determinadas pelo próprio sistema nervoso, e não pelo ambiente externo. O sistema nervoso funcionaria como uma rede fechada de interações neurais (Maturana & Varela 1980).
Maturana percebeu, então, que poderia responder às duas questões de maneira similar. Tanto o sistema nervoso como os seres vivos pareciam apresentar uma organização circular (Maturana & Varela 1980). Colaborando com Varela, que havia sido seu estudante, ele criou o termo ‘autopoiese’ (que significa literalmente ‘auto-produção’ ou ‘auto-criação’) para designar sua teoria da organização dos sistemas vivos. De acordo com a teoria autopoiética, um sistema vivo é uma unidade fechada organizacionalmente mas aberta estruturalmente, i.e., trata-se de uma rede de componentes na qual (i) os componentes produzem a própria rede (e seus contornos), que, por sua vez, produz os componentes; e (ii) há troca de matéria e energia com outros sistemas que se acoplam àquela rede.(13) Um sistema vivo é descrito por Maturana e Varela (1980:135) como “uma máquina que é organizada (definida como uma unidade) como uma rede de processos de produção, transformação e destruição de componentes que produz os componentes que: (i) através de suas interações e transformações regeneram e realizam a própria rede de processos que os produziu; e (ii) a constituem (a máquina) como uma unidade concreta no espaço na qual eles (os componentes) existem mediante a especificação do domínio topológico de sua realização como tal rede”. A organização circular é, na teoria da autopoiese, o aspecto definidor dos sistemas vivos: eles produzem a si próprios, enquanto sistemas não-vivos (alopoiéticos) não o fazem. Fenômenos biológicos como evolução, auto-reprodução e replicação seriam secundários à constituição de unidades autopoiéticas no espaço físico.
A definição
autopoiética não se refere apenas ao exemplo particular de
vida encontrado na Terra. Essa definição é coerente
com o conhecimento biológico atual e, a despeito do estilo difícil
da teoria, oferece uma maneira particular e logicamente consistente de
ver a vida, com capacidade de organizar o conhecimento a este respeito.
A definição da vida como autopoiese parece, em princípio,
ser suficientemente específica para capturar aspectos fundamentais
da vida biológica, ainda que problemas possam ser detectados neste
caso (ver abaixo). A teoria da autopoiese contém, em suma, uma definição
de vida que parece satisfazer os requisitos discutidos acima. Como esta
definição foi criada deliberadamente para responder à
questão ‘O que é vida?’, ela é um exemplo característico
de definição de vida encontrada como um elemento explícito
na rede de conceitos de um paradigma.
Vida como um fenômeno semiótico
A biossemótica é uma nova perspectiva na Biologia teórica, que busca compreender a vida como um fenômeno baseado na comunicação de signos na natureza (Emmeche & Hoffmeyer 1991; Merrell 1996; Emmeche 1997; Hoffmeyer 1997). Ela pode ser vista como um programa de pesquisa que almeja reconstruir uma história natural dos signos, descrever a evolução de diferentes sistemas de signos e interpretação de signos, desde os sistemas genéticos até a linguagem humana. No entanto, questões fundamentais acerca da natureza da biossemiótica ainda permanecem:
“A biossemiótica poderia realmente ser um novo paradigma para a Biologia teórica que – assim como a moderna teoria sintética da evolução – seria capaz de orientar a pesquisa experimental em subdisciplinas específicas e propiciar uma estrutura coerente para o estudo da vida? Ou seria ela, antes, uma reflexão metateórica sobre as condições de possibilidade da pesquisa biológica [...]? Ou seria um tipo de nova filosofia da natureza, na qual o mundo é visto, desde seu início, como um universo vivo pleno de significado, com potencial inato para a geração criativa de nova significação?” (Emmeche 1997).
Na biossemiótica,
a ênfase não recai sobre a seleção natural de
replicadores ou o fechamento organizacional dos sistemas vivos, mas sobre
as relações mediadas por signos em todos os níveis
biológicos (Emmeche 1997). A definição semiótica
de vida constitui outro exemplo de definição implícita
num paradigma (Emmeche, comunicação pessoal)(14).
Numa tentativa de explicitá-la, Emmeche (1997) define ‘vida’ no
contexto da biossemiótica como a interpretação funcional
de signos em sistemas materiais auto-organizados. Emmeche e El-Hani (2000)
apresentam uma versão simplificada desta definição,
explicando a vida como uma propriedade de sistemas materiais auto-organizados
capazes de utilizar informação de maneira a realizar funções
favorecendo sua adaptação e sobrevivência.(15)
A Terra é um ser vivo?
Podemos examinar agora se a idéia de que a Terra é um ser vivo pode ser justificada com base em alguma (ou algumas) das definições discutidas acima.
Verifiquemos, primeiro, se a Terra pode ser considerada ‘viva’ se a vida for caracterizada pela presença numa população de entidades das propriedades necessárias para assegurar a evolução por seleção natural. Uma das razões pelas quais a teoria da seleção natural é um marco na história da Biologia diz respeito à transição de um pensamento tipológico para um pensamento populacional (Mayr 1976, 1982, 1988; Sober 1980). Antes dela, a evolução era entendida como um processo transformacional. A teoria da evolução de Lamarck, por exemplo, explica a modificação das espécies ao longo do tempo com base na transformação individual de cada organismo em sua história de vida (Lamarck [1809]1984, Burkhardt 1984). A teoria da seleção natural, em contraste, explica a evolução como uma mudança ao longo do tempo nas proporções dos organismos variantes que compõem as populações (Darwin [1859]1995, Lewontin [1983]1985, Meyer & El-Hani 2000). Como um processo variacional, e não transformacional, a evolução biológica sempre envolve populações. Por exemplo, caso se queira falar numa evolução ‘química’ ou ‘pré-biótica’ (cf. Sterelny 2001:17), não se deve perder de vista que se trata de um fenômeno qualitativamente distinto da evolução biológica. As substâncias químicas mudam através do tempo como entidades individuais, passando por uma seqüência de estágios de transformação. Enquanto a evolução biológica implica uma mudança na distribuição das freqüências das características fenotípicas e das freqüências gênicas nas populações ao longo do tempo, a ‘evolução’ química na Terra primitiva envolveu apenas a transformação das características de entidades individuais.
A Terra é, obviamente, uma entidade individual única, e não um membro de uma ‘população de planetas’. Pode-se afirmar que a Terra ‘evolui’ através do tempo, mas ela o faz como uma entidade individual, mediante um processo transformacional, e não variacional. Há mais diferenças do que semelhanças entre a ‘evolução’ da Terra e a evolução dos organismos. A Terra não apresenta qualquer propriedade de ‘memória genética’ e não pode reproduzir-se.(16) Não há dúvida, em suma, de que a Terra não pode ser considerada viva com base na definição de vida implícita na síntese neodarwinista.
Lovelock (in: Spowers 2000:27) afirma que “a Terra claramente não é um organismo” se os seres vivos forem entendidos como entidades que se reproduzem e obedecem às leis da seleção natural. Ele levanta, contudo, uma dúvida: “Gaia é única no sentido de que teve um tempo de vida de pelo menos 3,8 bilhões de anos. Quem sabe se ela se reproduz ou não!”. Quanto a este argumento, é suficiente dizermos que nosso esforço de esclarecer os conceitos em questão não deve perder-se num terreno de pura especulação, sem uma fundamentação teórica que permita conceber uma suposta ‘reprodução’ da Terra. Lovelock também argumenta que a Terra tem outros atributos da vida tão importantes quanto a reprodução, como o metabolismo e a capacidade de homeostase. Ele cita em apoio ao mesmo argumento o exemplo de uma espécie de choupo que, apesar de tratar-se obviamente de um organismo, não seria capaz de reproduzir-se (Lovelock 1991a:34). No entanto, tendo-se em vista que a espécie citada é “capaz de propagar-se apenas através de cortes” (Lovelock 1991a:33), trata-se de um caso em que certamente ocorre reprodução, mas esta é assexuada. Além disso, não basta listar propriedades para caracterizar o que é um ser vivo, como argumentado acima. É preciso relacionar as propriedades citadas de maneira consistente, no contexto de um paradigma definido. Lovelock não leva a cabo essa empreitada.
Na biossemiótica, a vida é definida como a interpretação funcional de signos em sistemas materiais auto-organizados. A seguinte questão pode ser levantada, caso queiramos fundamentar a proposição de que a Terra é um ser vivo a partir de tal definição: Quais seriam os sistemas de reconhecimento e interpretação de signos do planeta como um todo? Ou, alternativamente, poderíamos encontrar no planeta sistemas dessa natureza que não fossem aqueles mesmos utilizados pelos organismos que são exemplos paradigmáticos de ‘seres vivos’? Talvez alguém se sinta motivado, diante de tal desafio, a tentar descrever sistemas de reconhecimento e interpretação de signos supostamente existentes na Terra como um todo, mas certamente não seria fácil conceber e/ou descobrir tais mecanismos. É possível argumentar que os sistemas de reconhecimento e interpretação de signos do planeta são exatamente os organismos. Mas, então, por que qualificar o planeta inteiro como vivo desta perspectiva? É mais parcimonioso simplesmente afirmar, como sempre se afirmou, que tais organismos são vivos. Pode-se concluir que é provavelmente difícil conceber a Terra como um sistema vivo com base na definição biossemiótica de vida proposta por Emmeche (1997).
Na teoria autopoiética, a organização circular dos sistemas vivos é considerada seu principal atributo definidor. Proposições centrais da teoria Gaia, como a de que o sistema compreendendo a biota e o ambiente físico-químico é capaz de exibir auto-regulação, mantendo a homeostase planetária, sugerem ser possível pensar na Terra, tal como caracterizada nesta teoria, como uma unidade autopoiética. Esta idéia foi defendida por Margulis & Sagan (1986) e Capra (1996:213-216). Capra observa que a rede global de processos de produção e transformação de substâncias descrita pela teoria Gaia é similar à rede encontrada em sistemas vivos que serviu como base para a formulação da definição da vida como autopoiese por Maturana e Varela. Em sua visão, Gaia é “talvez a expressão mais surpreendente e bela da auto-organização – a idéia de que o planeta Terra como um todo é um sistema vivo, que se auto-organiza” (Capra 1996:100).
A idéia de que a Terra é um sistema autopoiético requer, contudo, análise cuidadosa. Fleischaker (1988) questiona se há quaisquer outros exemplos de sistemas autopoiéticos além dos seres vivos. A questão é pertinente, dado que a teoria da autopoiese tem sido aplicada aos mais diversos campos do conhecimento, muitas vezes sem uma justificativa teórica adequada da natureza autopoiética dos sistemas estudados. Fleischaker (1990) propõe três critérios para a caracterização de um sistema como autopoiético: o sistema deve ser auto-limitado (self-bounded), auto-generativo (self-generating) e auto-perpetuado (self-perpetuating). Num sistema auto-limitado, a extensão do sistema é determinada por um limite que é parte integral da rede de relações que compõe o sistema. Num sistema auto-generativo, todos os componentes, incluindo aqueles que formam o limite do sistema, são produzidos por processos interiores à rede. Num sistema auto-perpetuado, os componentes são constantemente produzidos, sendo, portanto, continuamente substituídos pelos processos de transformação do sistema. Capra (1996:214-215) utiliza esses critérios para justificar a idéia de que a Terra é um sistema autopoiético, argumentando que ‘Gaia’ é auto-limitada, pelo menos no que concerne ao seu limite mais externo, a atmosfera, que é parte integral da rede planetária; que ‘Gaia’ é auto-generativa, porque todos os componentes da rede planetária são produzidos por processos interiores à rede; e, por fim, que ‘Gaia’ é auto-perpetuada, visto que os componentes dos oceanos, dos solos e do ar, bem como os organismos, são continuamente substituídos pelos processos planetários de produção e transformação. Em nossa visão, ele justifica de maneira convincente o entendimento de ‘Gaia’ como uma rede autopoiética.
Capra reconhece, contudo,
que não é fácil pensar em ‘Gaia’ como um ser vivo
de uma maneira concreta, colocando algumas questões que indicam,
em nossa visão, que a caracterização da Terra como
um ser vivo com base na teoria autopoiética pode não resistir
à aplicação do princípio da parcimônia:
“O planeta inteiro está vivo, ou apenas certas partes? E se for
o último caso, quais partes?” (Capra 1996:214). Ele se refere, então,
à analogia entre a Terra e uma árvore proposta por Lovelock
(ver acima), concluindo que, como “... a Terra é coberta por uma
fina camada de organismos vivos”, então “a parte viva de Gaia não
é mais que um fino filme ao redor do globo” (Capra 1996:214). Ele
escreve, ainda, que “nem a atmosfera acima de nós nem as rochas
abaixo estão vivas, mas foram moldadas e transformadas consideravelmente
pelos organismos vivos”. Margulis e Sagan (1986:66), por sua vez, afirmam
de maneira sintomática que “há pouca dúvida de que
a pátina planetária – incluindo a nós próprios
– é autopoiética” (grifo nosso). Ora, se a afirmação
de que a Terra é viva não for entendida como uma referência
a uma caracterização do planeta como um todo, mas apenas
à fina camada de seres vivos que o recobre, qual seria a vantagem
de tal qualificação? É difícil ver como a inferência
de que a Terra é um ser vivo com base na observação
de que ela é coberta por uma fina camada de seres vivos poderia
sustentar-se diante de uma aplicação do princípio
da parcimônia. É certamente mais parcimonioso afirmar-se que
a Terra, como um todo, não é um ser vivo, mas está
coberta por seres vivos, e a biota é capaz de regular o ambiente
físico-químico, por estar intimamente acoplada a ele.
É tentadora a possibilidade de considerarmos a Terra como algo
que obviamente não é vivo e, então, analisarmos as
definições de vida acima com base no requisito da especificidade.
Nesses termos, a conclusão de que a Terra pode ser considerada viva
à luz da teoria da autopoiese seria entendida como uma evidência
da natureza inespecífica da definição de vida encontrada
em tal teoria. Esta definição não poderia ser considerada
válida, dados os requisitos propostos por Emmeche (1997). Por um
lado, é possível argumentar-se a favor de tal teste, enfatizando-se
que a caracterização da Terra como um ser vivo estende o
conceito de vida para além de seu domínio usual (Bedau 1996).
Por outro, devemos ser cautelosos, na medida em que a suposição
de que a Terra ‘obviamente’ não é viva pressupõe alguma
noção de vida, o que tornaria a argumentação
circular. No entanto, considerando-se que a argumentação
de Capra a favor da natureza autopoiética do sistema descrito pela
teoria Gaia é convincente, mas que ele próprio afirma que
apenas uma parte do planeta é viva, a biosfera, podemos concluir
que, embora aquele sistema possa ser considerado autopoiético, entendê-lo
como um sistema vivo não é mais do que afirmar, de maneira
obscura e tautológica, que os seres vivos são vivos. Isso
significaria, então, que haveria sistemas autopoiéticos que
não são vivos, o que coloca sob suspeita a definição
da vida como autopoiese, no sentido preciso de que a autopoiese poderia
ser uma propriedade de muitos tipos de sistemas, e não apenas dos
organismos. Estes seriam casos especiais de sistemas autopoiéticos,
requerendo, para sua explicação e/ou definição
no contexto de um paradigma definido, a referência a outras características
que os diferenciassem dos demais casos de sistemas autopoiéticos.
Implicações para o ensino de Biologia e o tratamento do tema transversal “meio ambiente”
Lovelock (in: Spowers 2000:27) afirma que sua teoria tem sido ensinada na Grã-Bretanha no nível universitário, mas como ‘ciência dos sistemas terrestres’ ou Biogeoquímica, e não como teoria Gaia. Ele atribui esta situação a um suposto temor que sua teoria despertaria pelo fato de reunir muitas disciplinas diferentes. Observa-se, contudo, uma demanda por abordagens interdisciplinares dos fenômenos naturais tanto na pesquisa científica como no ensino das mais diversas ciências, como reconhece o próprio Lovelock (1993:3), de modo que a reunião de muitas disciplinas não pareceria ser um empecilho, mas antes uma das razões para transpor-se a teoria Gaia para o conhecimento escolar. Afinal, no que diz respeito à interdisciplinaridade, não faz muita diferença falar-se em Biogeoquímica, como o próprio termo indica, ou em teoria Gaia. É razoável, então, reconhecer-se outros motivos, além daquele indicada por Lovelock, para uma resistência à transposição didática da teoria Gaia, merecendo destaque sua natureza controversa na própria comunidade científica e, conseqüentemente, o problema de sua cientificidade, discutido neste artigo.
A teoria Gaia poderia desempenhar
um papel relevante no ensino médio e superior de Biologia. Ela poderia
constituir, por exemplo, uma das bases para a construção
de uma abordagem menos fragmentada do conhecimento biológico e até
do conhecimento científico em termos mais gerais. A visão
sistêmica do planeta que ela suscita torna possível reunir
a Geologia, a Microbiologia, a Química Atmosférica, a Biologia
Evolutiva, a Ecologia e outras ciências numa abordagem integrada
de uma série de fenômenos naturais. Pode-se conceber, por
exemplo, a perspectiva de uma integração, nos termos dessa
teoria, da compreensão dos vários ciclos biogeoquímicos
numa visão única sobre o sistema cibernético de controle
do ambiente físico-químico pela biota. Ou a possibilidade
de uma inter-relação mais íntima do estudo de teias
tróficas com conteúdos concernentes a fatores abióticos
como o clima e a temperatura. O próprio Lovelock indica essa possibilidade,
ao comentar que sua teoria concebe a biota e as rochas, o ar e os oceanos
como sistemas fortemente conjugados, que evoluem por um processo único,
e não por vários processos separados, estudados em diferentes
prédios das universidades (Lovelock 1997:621). De maneira similar,
Baker (1993) considera que o emprego da teoria Gaia no ensino de Biologia
pode enfatizar a natureza interdisciplinar da ciência e propiciar
uma perspectiva planetária da Biologia. As implicações
da visão sistêmica decorrente da teoria Gaia para a compreensão
da Biologia e de outras ciências também são destacadas
por Capra (1996).
No ensino de evolução, a teoria Gaia poderia oferecer
uma oportunidade para a transposição didática da apreciação
crítica do conceito de ‘adaptação’ que tem sido elaborada
por biólogos evolutivos como Lewontin (1977[1985], 1983[1985], 2000)
e Gould (Gould & Lewontin 1978, Gould 2002). Este conceito implica,
na visão destes autores, a concepção de que os organismos
se adaptam a um mundo externo mutável, que não é influenciado
por eles, mas apenas coloca problemas que os organismos resolvem por meio
da evolução. No entanto, o ambiente de um organismo não
é, em termos causais, independente dele. Os organismos influenciam
o ambiente em que vivem de diversas maneiras. A afirmação
de que as mudanças ambientais são autônomas e independentes
das mudanças sofridas pelas próprias espécies é,
como afirma Lewontin (2000:48), ‘biologia ruim’, e qualquer ecólogo
ou biólogo evolutivo sabe muito bem disso. Apesar de ter sido um
importante instrumento heurístico na construção da
teoria da evolução, o conceito de ‘adaptação’
é criticado por estes autores por veicular a idéia de que
os organismos são objetos passivos de forças internas (genéticas)
e externas (ambientais) autônomas. Lovelock afirma, de maneira similar,
que considera a ‘adaptação’ uma noção dúbia,
porque “no mundo real, o ambiente ao qual os organismos estão adaptando-se
é determinado pelas atividades de seus vizinhos, e não somente
pelas forças cegas da química e física. Em tal mundo,
mudar o ambiente é parte do jogo da sobrevivência, e seria
absurdo supor que os organismos iriam abster-se de mudar seu ambiente material
se, fazendo isso, deixassem mais progênie” (Lovelock 1991a:32).
Os biólogos evolutivos que têm criticado a teoria neodarwinista da evolução usualmente não pretendem pôr de lado a noção de seleção natural, mas questionar alguns aspectos que, em sua visão, requerem reformulação, tais como: a idéia de que a seleção natural é um processo que atua em um único nível, na formulação original de Darwin, o do organismo, e no selecionismo gênico, o dos genes; a compreensão da seleção natural como o único processo responsável pelos padrões de mudança evolutiva, de modo que todo o poder explicativo na biologia evolutiva deveria ser atribuído a ela; a visão gradualista da evolução, de acordo com a qual todos os processos macro-evolutivos, que produzem os grandes padrões da história da vida, são simplesmente conseqüências de processos micro-evolutivos (Gould 2002). Não se trata de defender uma refutação da teoria darwinista e sua substituição por uma teoria evolutiva inteiramente nova (o que seria uma espécie de mudança paradigmática kuhniana), mas de propor-se adições e reformulações que, sobre fundações darwinistas, resultem numa teoria diferente, em aspectos significativos, da síntese neodarwinista que tem dominado a biologia evolutiva desde a década de 1940, mas não a ponto de abandonar-se o núcleo selecionista do pensamento evolucionista (algo mais próximo da construção de uma nova teoria dentro de um programa de pesquisa lakatosiano). O que parece estar em elaboração no presente é uma nova teoria darwinista da evolução, incluindo vários níveis de seleção, reconhecendo o poder explicativo de outros fatores envolvidos na evolução, como as restrições ao processo evolutivo, e descrevendo processos macro-evolutivos que não são apenas uma extrapolação da micro-evolução (Gould 2002).
De maneira similar, Lovelock entende a teoria Gaia não como uma alternativa incompatível com a tradição darwinista, mas como um complemento, na medida em que trata da relação entre o sucesso evolutivo dos organismos e a ocorrência de um acoplamento adequado entre sua evolução e a evolução de seu ambiente material (Lovelock 1990:101, 1991a:41, 1991b:99, 1993:10, 1997:621). Em sua visão, Gaia torna possível unificar duas teorias diferentes da evolução, a biológica e a geológica, que têm coexistido separadamente desde o final do século XIX (Lovelock 1991a:31-33). Nesses termos, a teoria Gaia pode mostrar-se heuristicamente fértil para as discussões contemporâneas sobre evolução, inclusive na sala de aula, desde que a relação entre o acoplamento de vida e ambiente postulado por ela e o sucesso evolutivo dos organismos seja formulada de maneira clara.
A contribuição da teoria Gaia não se limita ao ensino de Biologia. Tem-se argumentado que ela oferece uma nova maneira de olhar a Terra (Lovelock 1991a:41, 1993:10; Capra 1996:106), contribuindo para a promoção de uma conscientização ecológica nos estudantes. Lovelock (in: Spowers 2000:27) afirma que a teoria Gaia tem fortes implicações morais, na medida em que “uma das leis de Gaia é a de que qualquer espécie que prejudica seu ambiente o torna pior para sua progênie. Portanto, se ela continuar a fazer isso, será extinta. Inversamente, qualquer espécie que torna seu ambiente melhor para sua progênie tem uma vantagem” (ver também Lovelock 1997). Desse modo, esta teoria pode cumprir um papel importante no tratamento do tema transversal “meio ambiente” (MEC/SEF 1998, 1999), desde que sua situação no conhecimento escolar seja claramente demarcada, estabelecendo-se seu estatuto como conteúdo transposto do conhecimento científico aceito. Ainda que as discussões sobre meio ambiente não estejam restritas à esfera das ciências, o problema da cientificidade da teoria Gaia permanece, dada a necessidade de demarcação dos domínios dos diferentes discursos que coexistem no contexto escolar.
A transposição didática da teoria Gaia para o ensino de Biologia e o esclarecimento de seu estatuto entre os diferentes discursos que coexistem no tratamento do tema “meio ambiente” requerem uma apreciação de sua cientificidade. Neste artigo, realizamos uma análise da proposição de que a Terra é um ser vivo, uma das razões pelas quais a comunidade científica tem visto com suspeita a teoria Gaia, com base em três definições de vida diferentes. Outras definições de vida poderiam ser utilizadas nesta análise. Entretanto, o que consideramos mais importante é destacar que aquela proposição não pode ser justificada meramente através de analogias, sendo necessária uma análise conceitual como a que realizamos aqui. Para que a caracterização da Terra como um sistema vivo seja mantida no núcleo da teoria Gaia, é preciso fundamentá-la numa definição de vida formulada no contexto de um paradigma biológico. Caso isso seja feito, a proposição de que a Terra é um ser vivo se mostrará aceitável à luz do referencial teórico no qual teve lugar sua justificação. Podemos questionar, contudo, se esta proposição é, de fato, tão relevante para a elaboração da teoria Gaia a ponto de merecer tal esforço. Em nossa visão, nada de essencial será perdido na estrutura da teoria se tal proposição for posta de lado ou tiver sua importância substancialmente diminuída. As idéias nucleares da teoria Gaia podem ser formuladas de modo suficiente concebendo-se uma relação íntima entre os componentes vivo e não-vivo do planeta, de modo a formar um sistema auto-organizado, que evolui como um todo. É possível dizer, é claro, que a afirmação de que este sistema é vivo contribui para reforçar essas idéias nucleares, podendo ser entendida como uma metáfora. Entretanto, esta metáfora não deveria estar apoiada numa análise conceitual que justificasse a seleção de determinadas semelhanças entre os seres vivos e a Terra? E, caso esta análise fosse fornecida, diferenças fundamentais entre os seres vivos e a matéria inanimada não poderiam estar sendo perdidas de vista ao enfatizar-se determinadas analogias? Ou isso não poderia resultar, como sugere Kirchner (1993), numa confusão entre afirmações poéticas e hipóteses científicas, prejudicial para a visão das pessoas sobre a natureza da ciência?
A teoria Gaia apresenta poder
preditivo, explanatório e heurístico, tem sido apoiada por
evidências coletadas desde a década de 1970 e tem atraído
a atenção de um número crescente de pesquisadores
de diferentes campos do conhecimento científico. Assim, é
razoável propor-se sua transposição didática
para o conhecimento escolar de Biologia. Entretanto, é importante
não perder de vista, face a esta proposta, a aceitabilidade da teoria
Gaia na comunidade científica e a demarcação dos conteúdos
desta teoria compatíveis com o conhecimento científico contemporâneo.
Grande parte da resistência à teoria Gaia nos meios científicos
está relacionada à proposição de que a Terra
é um ser vivo. Capra (1996:106-107), por exemplo, afirma que é
“... tentador imaginar se esta reação altamente irracional
da comunidade científica à hipótese Gaia foi provocada
pela evocação de Gaia, o poderoso mito arquetípico.
De fato, a imagem de Gaia como um ser sensível foi o principal argumento
implícito para a rejeição da hipótese Gaia
após sua publicação”. Embora Capra e o próprio
Lovelock (e.g. Lovelock 1990) pareçam entender esta resistência
como algo despropositado, nós pensamos que a comunidade científica
tem uma boa justificativa para não aceitar tal caracterização
da Terra na ausência de uma análise conceitual apropriada.
Não se trata de resistir a qualquer mito arquetípico, mas
de um requisito de rigor na formulação de nossas concepções
teóricas.
Em nossa análise conceitual da proposição de que
a Terra é viva, as seguintes conclusões foram obtidas: (i)
esta proposição certamente não pode ser sustentada
com base na definição de vida implícita na síntese
neodarwinista; (ii) é possível, mas muito difícil,
apoiá-la na definição de vida implícita na
biossemiótica; (iii) a teoria autopoiética oferece, em princípio,
a melhor oportunidade para caracterizar-se a Terra como um ser vivo, mas
trata-se, ainda assim, de uma proposição controversa, uma
vez que poderia ser entendida, antes, como um teste da validade da definição
da vida como autopoiese, com base em um critério de especificidade.
Desse modo, a caracterização da Terra como um ser vivo com
base em sua natureza autopoiética apenas adiciona mais uma polêmica
às várias controvérsias sobre a teoria Gaia.
Uma vez que a resistência à teoria Gaia tem a ver, em grande medida, com a idéia de que a Terra é viva, é razoável pensar-se que seria desejável, pelo menos, separar esta idéia das proposições nucleares da teoria. No entanto, Lovelock freqüentemente a coloca no cerne de sua argumentação. O problema é que, ao fazê-lo, ele dificulta a aceitação de sua teoria com base numa proposição metafísica para a qual não oferece a sustentação necessária. É interessante observar que, quando Lovelock descreve sua teoria em artigos destinados aos seus pares, a afirmação de que a Terra é viva freqüentemente não é mencionada (ver acima). Estamos inclinados a pensar que a afirmação de que a Terra é viva, embora apelativa para o senso comum, não traz contribuições importantes para a formulação precisa da teoria Gaia. Esta teoria teve diferentes formulações ao longo de sua história (Kirchner 1989, 1993; Wilkinson 1999b). Em sua formulação original, a Terra era descrita como um ‘super-organismo’ capaz de agir de modo a otimizar as condições para a vida. Embora esta descrição ainda seja encontrada em textos recentes, inclusive do próprio Lovelock, autores simpáticos à teoria Gaia, como Wilkinson (1999b), observam que ela não é apoiada por muitos cientistas que trabalham na área. Lovelock também tem mostrado-se, por vezes, mais cauteloso em relação a esta formulação da teoria (ver acima e tb. Lovelock 1995a). Para Wilkinson (1999b), a formulação da teoria que goza de maior apoio é Gaia homeostática, na qual a vida tem um grande efeito regulatório sobre o ambiente global, mas as idéias de super-organismo e otimização não são evocadas. É este tipo de formulação da teoria Gaia que defendemos aqui, por considerá-la de natureza mais claramente científica.
Em relação
ao saber a ser ensinado, deve-se considerar se a afirmação
de que a Terra é viva auxilia de algum modo a compreensão
das redes de interação envolvendo os sistemas vivos e o ambiente
físico-químico, ou se ela se mostra dispensável no
uso da teoria Gaia como parte do conhecimento escolar. A caracterização
da Terra como um ser vivo poderia contribuir, por exemplo, para a conscientização
ecológica dos alunos. Corre-se o risco, entretanto, de levá-los
a uma compreensão equivocada da natureza da vida ou a uma confusão
entre proposições metafísicas e hipóteses científicas
no contexto de um paradigma. Nós consideramos suficiente, para que
a teoria Gaia suscite uma mudança substancial no entendimento do
planeta, a explicação da complexa rede de alças de
retroalimentação descrita por Lovelock e Margulis e da capacidade
de tal rede de regular o sistema planetário, acoplando intimamente
os seres vivos e seu ambiente físico-químico.
As propostas recentes de incorporação da teoria Gaia ao ensino de Biologia e de outras áreas encontradas na literatura (Baker 1993, McGuire 1993, Haigh 2001) e a presença desta teoria entre os conteúdos de livros didáticos brasileiros (Amabis & Martho 1997; Marczwski & Vélez 1999) atestam sua seleção, entre os elementos do saber sábio corrente, como saber a ser ensinado, colocando, portanto, a necessidade de um trabalho de transposição didática. Vale a pena examinar, neste contexto, dois livros didáticos de Biologia do ensino médio publicados no Brasil nos quais a teoria Gaia é abordada.(17) Amabis e Martho apresentam como principal conteúdo associado à teoria Gaia a proposição de que a Terra é viva. Eles se referem à Terra como um “grande organismo vivo do qual fazemos parte”, propondo ao aluno de Biologia que “imagine a Terra como um ser vivo de dimensões planetárias, e nossa própria espécie como parte desse todo vivo – seríamos um de seus tecidos” (Amabis & Martho 1997:583). A analogia entre a espécie humana e um tecido oferece um exemplo notável de um risco percebido por Kirchner na compreensão da Terra como um ser vivo, o de tratar afirmações poéticas como proposições científicas. A metáfora da Terra viva é estendida nessa proposição, suscitando uma outra analogia na qual há mais diferenças do que semelhanças entre os conceitos postos em relação. As idéias nucleares da teoria Gaia são mencionadas apenas de passagem por Amabis e Martho, que destacam a aceitação atual desta teoria pela comunidade científica. Eles utilizam a teoria Gaia para suscitar nos alunos uma conscientização ecológica, enfatizando a necessidade de cuidarmos da “saúde planetária”. Contudo, esta conscientização poderia ser suscitada sem necessariamente tratar-se a Terra como um ser vivo. Os próprios autores, afinal, reconhecem que “aceitando ou não a hipótese Gaia, temos de refletir com muita seriedade sobre a atuação do homem no planeta” (Amabis & Martho 1997:584). Marczwski e Vélez (1999:305), por sua vez, reproduzem uma reportagem da revista Superinteressante, publicada em Agosto de 1988, intitulada “Gaia: a Terra vive’. A abordagem é semelhante àquela discutida acima, com a proposição de que a Terra é viva sendo colocada em destaque, relativamente às idéias nucleares da teoria Gaia, ainda que estas mereçam maior atenção neste segundo livro. Assim como Amabis e Martho, Marczwski e Vélez vêem em Gaia um conteúdo capaz de suscitar nos estudantes uma conscientização ecológica.
A razão de ser das
preocupações discutidas no presente artigo é posta
em destaque pelo exame destes dois livros didáticos. Os argumentos
aqui desenvolvidos indicam que a eliminação ou pelo menos
a colocação em segundo plano da idéia de que a Terra
é um ser vivo contribui para uma maior aceitação e
uma melhor compreensão da teoria Gaia. Assim, no que diz respeito
à transposição didática desta teoria, a proposta
que decorre da análise epistemológica que realizamos é
a de que se dê prioridade às suas proposições
centrais, nucleares. A transposição didática da teoria
Gaia poderia ser feita de maneira mais apropriada, bem como sua testabilidade
e seu conteúdo empírico seriam mais adequadamente enfatizados,
se a asserção de que a Terra é viva fosse claramente
separada do núcleo duro da teoria ou até mesmo eliminada.
As razões que levam a esta conclusão são, primeiro,
a inadequação de sustentar-se uma proposição
metafísica, não-testável, como a de que a Terra é
viva, na ausência de uma definição de ‘vida’ formulada
de maneira consistente, e, segundo, as dificuldades encontradas na tentativa
de apoiar esta proposição em definições de
vida encontradas na síntese neodarwinista, na biossemiótica,
e inclusive na teoria da autopoiese.
Agradecimentos
Gostaríamos de agradecer
a Olival Freire Jr. e Luiz Felippe Serpa pelos comentários a versões
preliminares deste trabalho, a dois árbitros anônimos pelas
contribuições significativas para a preparação
da versão final, a Clarice Sumi Kawasaki pela indicação
dos livros didáticos de Biologia, e a Cláudia Sepúlveda
e Martha Marandino pelas discussões sobre transposição
didática.
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(1) Este artigo foi elaborado a partir do
trabalho defendido por Marina de Lima-Tavares para a conclusão do
curso de Bacharelado em Ciências Biológicas da UFBA (Lima-Tavares
2000). Ver tb. El-Hani & Lima-Tavares (2001). (Volta
para o texto)
(2) Lovelock usa de maneira indiscriminada
os termos metateóricos ‘hipótese’ e ‘teoria’ para referir-se
a Gaia. Entendemos uma teoria como um sistema ou uma estrutura (Kuhn 1996,
Lakatos 1979, Chalmers 1995), i.e., como um conjunto de elementos que estabelecem
relações entre si. Os elementos que compõem uma teoria
incluem, entre outros, princípios explicativos, leis empíricas,
suposições metafísicas, hipóteses, descrições,
métodos, técnicas. Uma teoria cumpre o papel de explicar
um fenômeno ou padrão observado mediante a elucidação
dos mecanismos ou processos responsáveis por sua produção
ou causação. Entendemos hipóteses, por sua vez, como
tentativas de responder a uma questão ou um problema definido, ou,
nas palavras de Campbell (1996), uma “explicação em julgamento”.
Nesses termos, parece-nos mais correto considerar Gaia uma teoria, e não
uma hipótese. Assim, utilizaremos neste artigo o termo ‘teoria’
para referir-se a Gaia, restringindo o uso da expressão ‘hipótese
Gaia’ às citações de outros trabalhos, quando não
for possível evitá-la. (Volta para o texto)
(3) Brocks et al. (1999) descobriram fósseis
moleculares de lipídeos biológicos indicando a presença
de cianobactérias há pelo menos 2,7 bilhões de anos.
Assim, a fotossíntese oxigênica teria evoluído bem
antes de a atmosfera se tornar oxidante, há cerca de 2 bilhões
de anos. O acúmulo de oxigênio em grandes quantidades na atmosfera
terrestre poderia estar relacionada, então, a uma diversidade de
fatores, incluindo a proliferação de cianobactérias
que já existiam há milhões de anos e o esgotamento
dos reagentes passivos associados à depleção de oxigênio.
(Volta
para o texto)
(4) Este termo se encontra entre aspas para
enfatizar a importância de não se interpretar as margaridas
do modelo de maneira muito literal, como argumentam Lenton & Lovelock
(2000). No restante do artigo, não utilizaremos mais as aspas. (Volta
para o texto)
(5) Em resposta à referência
por Robertson & Robinson (1998) à natureza ‘darwiniana’ de seu
modelo, Lenton e Lovelock (2000) enfatizam que o Mundo das Margaridas é,
desde sua concepção original, darwiniano, por incluir competição
por espaço e, logo, por luz entre tipos diferentes de vida, e variação
herdável num traço, a cor, que afeta o fitness.
(Volta para o texto)
(6) Outros aspectos da evolução
no Mundo das Margaridas são abordados por Saunders (1994), Stöcker
(1995), Lenton & Lovelock (2001). A questão da compatibilidade
entre Gaia e seleção natural também foi abordada por
Lenton (1998), Hamilton & Lenton (1998), Levin (1998) e Wilkinson (1999a,b).
(Volta
para o texto)
(7) Kirchner discute outras versões
da teoria Gaia, como ‘Gaia Influente’, ‘Gaia Coevolutiva’ e ‘Gaia Homeostática’.
A este respeito, ver os artigos originais. (Volta para o
texto)
(8) Esta conferência foi organizada
por Stephen Schneider, motivado por sua convicção de que
a teoria Gaia deve ser discutida e investigada pela comunidade científica
(Schneider & Boston 1993). Lovelock (1990) considera esta conferência
um episódio muito significativo na história da teoria, relacionando
a grande quantidade de artigos inspirados por Gaia que foram publicados
desde então ao seu impacto. (Volta para o texto)
(9) A caracterização da teoria
Gaia como uma visão ‘holística’ do planeta também
merece investigação. Nós trataremos deste tópico
em outro trabalho, tomando como base a distinção, por El-Hani
(2000), entre formas radicais e moderadas de holismo. (Volta
para o texto)
(10) Lovelock (1990, 1991a) não
explica ou define o que entende por ‘propriedades emergentes’. Ele apenas
relaciona a emergência de propriedades à afirmação
de que o todo é mais do que a soma das partes (Lovelock 1991a:33,
1993:4; Lovelock & Margulis 1974a:3), usualmente associada ao holismo
(e.g., Hofstadter 1980, Capra 1983). Contudo, esta proposição
não é um elemento essencial para uma definição
ou explicação da emergência e, além disso, não
constitui uma crítica vigorosa ao reducionismo, como freqüentemente
se pensa, porque não tem na devida conta o reconhecimento pela maioria
dos reducionistas do poder explanatório das relações
entre as partes de um sistema (Levine et al. 1987; El-Hani 2000). Em geral,
Lovelock parece estar referindo-se a uma idéia muito genérica
da emergência como a criação de novas propriedades
na evolução de um sistema, sem deter-se sobre os problemas
filosóficos que esta noção suscita (e.g., Blitz 1992;
Beckermann et al. 1992; Kim 1999, 2000; O’Connor 1994; Emmeche et al. 1997,
2000; Stephan 1998; Pihlström 1999). Esta interpretação
é apoiada por sentenças como a seguinte: “O debate real,
então, é o de quão importante e íntimo
é o acoplamento [da vida e do ambiente]? Ele confere, como nós
acreditamos, novas propriedades ao sistema, tais como a estabilidade aumentada
ou um comportamento similar àquele de um organismo vivo?” (Lovelock
1990:101). Bergandi (2000) discute a terminologia emergentista utilizada
na teoria Gaia. (Volta para o texto)
(11) Emmeche & El-Hani (2000) comparam
as abordagens de Mayr (1982) e Maynard Smith (1986) de modo a destacar
as diferenças entre definições de vida essencialistas
e paradigmáticas. Neste trabalho, caracterizamos a teoria da autopoiese
e, com um pouco mais de dúvida, a biossemiótica como ‘paradigmas’
(ver abaixo), em vez de restringirmos este termo à estrutura teórica
dominante na biologia, o neodarwinismo. Kuhn introduziu o conceito de ‘paradigma’
a partir da descoberta de que muitos campos do conhecimento, especialmente
na ciência moderna, funcionam de acordo com tradições
de pesquisa baseadas num consenso relativamente firme entre os praticantes.
A noção inicial de paradigma enfatizava, assim, um consenso
universal entre os pesquisadores de um dado campo. No entanto, como fases
em que não há consenso universal podem ser encontradas na
maioria das ciências, a propriedade da aceitação universal
dos paradigmas sofreu uma retração nas obras de Kuhn (Hoyningen-Huene
1993). Esta foi a base para utilizarmos a noção de
‘paradigma’ de maneira mais ampla. Sobre a noção de ‘paradigma’,
ver Kuhn (1996), Lakatos & Musgrave (1979), Hoyningen-Huene (1993).
Uma análise mais aprofundada do que Emmeche & El-Hani (2000)
chamam de ‘visão paradigmática das definições’
será feita em trabalhos futuros. (Volta para o texto)
(12) Para maiores detalhes sobre essa definição
de vida, especialmente sobre as versões elaboradas nas perspectivas
teóricas de Dawkins (1976) e Hull (1981), ver Emmeche (1997) e Emmeche
& El-Hani (2000). (Volta para o texto)
(13) Esta breve discussão da teoria autopoiética
não faz justiça aos escritos complexos de Maturana e Varela.
Por exemplo, termos como ‘organização’ e ‘estrutura’ recebem
na teoria definições específicas que não discutimos
em detalhe acima. Sugerimos ao leitor que consulte os trabalhos originais
(e.g., Maturana & Varela 1980, Varela 1979, Maturana 1997). Nós
apenas examinamos a definição de vida incluída na
teoria, não nos propondo a considerar outros aspectos epistemológicos
e ontológicos interessantes. Embora Maturana e Varela tenham trabalhado
juntos, há diferenças importantes em suas visões acerca
da autopoiese e autonomia dos seres vivos, que se tornaram evidentes quando
eles passaram a trabalhar separadamente (ver Pereira 1997). Uma análise
mais detalhada da definição da vida como autopoiese é
encontrada em Emmeche (1997) e Emmeche & El-Hani (2000). (Volta
para o texto)
(14) Emmeche considera a idéia de
Sebeok da célula como unidade semiótica mínima como
uma indicação de que vida e semiose (a ação
de signos) são coextensivas, embora não seja uma definição
explícita de vida. (Volta para o texto)
(15) Para detalhes sobre a definição
de vida como um fenômeno semiótico, ver Emmeche (1997) e Emmeche
& El-Hani (2000). (Volta para o texto)
(16) Heather Douglas e Robert Pennock (comunicação
pessoal) sugeriram que a panspermia cósmica e uma possível
colonização de outros planetas pela espécie humana
poderiam contar como casos de reprodução planetária.
Parece-nos, contudo, que esses processos não são análogos
a uma ‘reprodução’, mas a uma ‘infecção’ de
um planeta por entidades oriundas de outros planetas. (Volta
para o texto)
(17) Estes livros foram selecionados de uma amostra
de 20 obras nas quais Kawasaki & El-Hani (2002a,b) estão analisando
as visões sobre definições de vida. Essa amostra foi
construída mediante a combinação dos resultados de
dois levantamentos: 1) dos livros didáticos de Biologia do ensino
médio mais utilizados em Ribeirão Preto-SP; 2) dos livros
didáticos de Biologia do ensino médio publicados pelas editoras
que dominam o mercado naquela cidade. (Volta para o texto)
Este artigo já foi visitado vezes desde 24/05/2002.