LABORATÓRIO DIDÁTICO DE FÍSICA A PARTIR DE UMA
PERSPECTIVA KUHNIANA
Didactical physics laboratory from a kuhnian perspective
 
 

Sergio de Mello Arruda
Departamento de Física
Universidade Estadual de Londrina.
renop@uel.br

Marcos Rodrigues da Silva
Departamento de Filosofia
Universidade Estadual de Londrina.

Carlos Eduardo Laburú
Departamento de Física
Universidade Estadual de Londrina.
 

Resumo

        Os estudos atuais sobre o laboratório didático de Física têm se fundamentado na utilização do método hipotético-dedutivo, propondo o desenvolvimento das atividades experimentais como um processo de investigação, o que revela a sua inspiração popperiana. Nesse trabalho, a partir de uma discussão sobre as diferentes possibilidades de entender as relações entre a teoria e o experimento, propomos, baseados nas idéias de Thomas Kuhn, complementadas pelo pensamento de van Fraassen, uma nova orientação para o laboratório de Física, concebendo-o, não como uma verificação ou falseamento de hipóteses, mas como um processo de adaptação entre a teoria e o experimento.
Palavras-chave: filosofia da ciência, relação teoria-experimento, laboratório didático de física.

Abstract

        Current studies on didactical physics laboratory have been based in the use of the hypothetical-deductive method, proposing the development of the experimental activities as an investigation process, that reveals its popperian inspiration. In this work, starting from a discussion about different possibilities to understand the relationships between theory and experiment, we propose, based on Thomas Kuhn's ideas, complemented by the thought of van Fraassen, a new orientation for the Physics laboratory, conceiving it, not as a verification or falsification of hypotheses, but as an adaptation process between theory and experiment.
Key-words: philosophy of science, theory-experiment relationship, didactical physics laboratory.
 

Introdução

         Como sabemos, durante o século XIX e o primeiro quarto do século XX, houve o predomínio, na filosofia da ciência, de reconstruções metacientíficas vinculadas ao empirismo. No interior desta filosofia, a filosofia empirista, duas teses são defendidas: (I) as leis científicas são produzidas por meio de procedimentos indutivos, ou seja, através da observação sistemática de fatos e posterior generalização, com o resultado do aumento cumulativo após cada teste; (II) as hipóteses ou teorias devem ser comprovadas experimentalmente para serem consideradas verdadeiras, ou seja, são científicas somente as afirmações comprovadas experimentalmente. Popper, o principal crítico das teses empiristas(1), demonstra, posteriormente, a impossibilidade lógica do indutivismo, considerando que só podem ser tomadas como científicas as afirmações passíveis de serem falseadas e refutadas experimentalmente. O cientista é aquele que busca falsear as suas teorias e não comprová-las. O aspecto central dessa visão é a compreensão da ciência como produto do uso do raciocínio hipotético-dedutivo, num processo de superação de teorias por meio do contraste empírico, o que levaria a uma aproximação sucessiva da realidade por meio de teorias cada vez mais verdadeiras. Os homens são livres para inventar teorias. Mas as científicas são as que passam pelo crivo do experimento ou, pelo menos, as que produzem conseqüências empiricamente testáveis. As teses do empirismo e as teses de Popper diferem claramente, portanto, apenas na questão da função da experiência no que se refere à verificação/falseamento de teorias científicas. No primeiro caso, a experiência fornece respaldo empírico, de modo a constituir uma instância verificacional para as teorias; no caso de Popper, a experiência é apenas um instrumento de detecção do erro – a experiência só pode mostrar que uma teoria é falsa, nunca verdadeira.

         É importante perceber aqui que a relação entre teoria e experimento é idêntica, sob o ponto de vista formal, em ambas teorias. Esta simetria é evidente pelo fato de que a experiência é uma categoria teórica que está apartada da teoria; em outras palavras, não há uma articulação do experimento a partir da teoria. Os testes são considerados independentes da teoria. Não existe margem de manobra, pois a leitura do experimento é uma leitura objetiva, independente, imparcial. Ou os testes confirmam uma teoria ou refutam-na. Enfim, teoria e experimento são categorias conceituais bastante distintas e o compromisso entre eles é de natureza lógica, e não metodológica.

        No entanto, a partir dos anos 60, com os trabalhos de Toulmin, Feyrabend, Lakatos e principalmente Kuhn, novos modelos para o desenvolvimento científico começaram a ser propostos, baseados em estudos históricos sobre o funcionamento da ciência. Defendeu-se a idéia que além de não-demonstráveis empiricamente (como Popper já tinha proposto), as teorias são também não-refutáveis e que, face a uma evidência empírica contrária, uma teoria pode sempre ser salva por hipóteses auxiliares, um procedimento bastante freqüente do cientista. Ficou também evidente que a ciência é um empreendimento comunitário, em que os valores partilhados pela comunidade exercem um papel preponderante sobre a validação do conhecimento. No sistema kuhniano, a relação entre a teoria e experimento não é, nem verificacionista, nem falseacionista, mas adaptativa, como veremos mais adiante. Ou seja, teoria e experimento não são independentes e antagônicos, mas contribuem ambos para a estruturação do paradigma.

        O que nos chamou a atenção sobre esse tema, a função do experimento na ciência, em especial na Física, foram as implicações que isso acarreta para as concepções do laboratório didático.

         Afora as concepções onde o laboratório didático era visto como uma mera ilustração da teoria, alguns dos trabalhos mais antigos fundamentavam-se no aprendizado por descoberta, carregando as deficiências daquele modelo de ensino, ou seja: uma visão simplificada da ciência como um processo de generalizações indutivas e uma visão ingênua do aprendizado científico, considerando que este conhecimento poderia ser elaborado espontânea e individualmente por meio do senso comum. Uma outra, propunha as práticas de laboratório como meio de introduzir os alunos nos métodos da ciência. Entretanto, o que era tido como método científico consistia em uma série de procedimentos estereotipados, tais como classificação, medição, emissão de hipóteses, etc, que transforma a investigação experimental numa série de atividades (uma receita), quase sempre separada dos conteúdos. (Salinas, 1994). Ao que parece, propostas como essas não estão mais sendo seriamente consideradas, tendo sido demonstrado há muito tempo a sua insuficiência metodológica.

         Alguns dos estudos mais recentes sobre o laboratório didático na Física, procuram orientar as atividades experimentais como uma “investigação científica” (Salinas, 1994; Gil e Castro, 1996) ou como “pequenos projetos de investigação” (Lewin e Lomáscolo, 1998:147). Em todas essas propostas comparecem as seguintes etapas: formulação do problema, elaboração de hipóteses, planejamento de experimentos, coleta dos dados e análise/interpretação dos resultados. Ou, de uma forma mais detalhada: (Salinas, ibid: 140): (i) Inicialmente, uma situação problemática aberta é colocada; a partir de um corpo de conhecimentos (teoria) a situação é analisada e o problema é definido de uma forma mais precisa; (ii) em seguida são elaborados modelos, hipóteses e estratégias para a contrastação empírica das mesmas, o que inclui o planejamento e a realização de experimentos; (iii) após obtidos, os resultados são interpretados e comunicados (a outras equipes), o que pode levar à verificação ou falseamento das hipóteses e construção de novos conhecimentos; modificação das crenças e atitudes, bem como das concepções sobre a ciência; novos problemas; revisão da investigação.

         É inegável a semelhança de tais passos ou etapas, com a seqüência de operações do método científico, conforme esquematizado em Bunge (1967:9), que tem como fundamento o processo de “conjecturas e refutações” popperiano (Popper, 1982) ou a utilização do raciocínio hipotético-dedutivo. Talvez esses autores também concordassem que é a aplicação desse método, com a finalidade de conhecer objetivamente o mundo, que “faz toda a diferença entre ciência e não-ciência” (Bunge, ibid:12).

        Sem querer tirar o mérito das orientações acima citadas, é interessante que, apesar de novos modelos para o desenvolvimento científico terem surgido já há bastante tempo, diversas concepções atuais do laboratório, têm se fundamentado em uma visão de ciência baseada nas idéias de Popper, não sendo muito freqüentes, na literatura, propostas baseadas em outras visões da ciência, como a de Kuhn, por exemplo(2) . Nesse ensaio, queremos explorar a utilização de uma perspectiva kuhniana da ciência, em especial, refletir sobre as implicações que as suas idéias sobre a relação entre teoria e experimento, podem trazer para uma nova concepção do laboratório didático.
 

Contribuições de Kuhn ao tema da experimentação na física

        As obras de Thomas Kuhn têm sido, há algum tempo, fonte de inspiração para a educação científica, sendo, esse tema, objeto de publicação recente (Science & Education, vol. 9, janeiro de 2000). Suas idéias gerais sobre o processo de desenvolvimento científico foram usadas, por exemplo, na elaboração de modelos úteis de ensino/aprendizado, tal como o Modelo de Mudança Conceitual de Posner e colaboradores (Posner et al:1982). Por outro lado, na Estrutura das Revoluções Científicas e em outros ensaios, podemos encontrar idéias interessantes sobre a educação, cujas implicações para o ensino parecem ainda não terem sido suficientemente exploradas. Especificamente em relação ao papel desempenhado pela experimentação no desenvolvimento da ciência, existem dois ensaios que trazem contribuições importantes ao tema: A Função da Medição na Ciência Física (1961) e a Tradição Matemática versus Tradição Experimental no Desenvolvimento da Ciência Física (1976). Ambos foram republicados na coletânea A Tensão Essencial (Kuhn 1989).

        A nossa idéia neste trabalho é fazer uma breve análise sobre as idéias colocadas nessas obras e estudar sua fecundidade em tratar o problema do laboratório didático na física. Para isso, é necessário fazer uma síntese das principais idéias sobre o desenvolvimento científico em Kuhn e sua visão sobre a experimentação, apresentada nas obras acima mencionadas.

        Como sabemos, Kuhn separa o desenvolvimento da ciência em três estágios. Inicialmente, no estágio pré-paradigmático (ou ciência imatura), caracterizado pela competição entre diversas “concepções distintas da natureza”, aproximadamente compatíveis com os “preceitos da observação e método científicos” (Kuhn 1978:23), não há crescimento científico apreciável, não há um paradigma único, no sentido de um “corpo implícito de crenças metodológicas e teóricas interligadas” (p.37) ou um “conjunto padrão de métodos ou fenômenos que todos os estudiosos...se sintam forçados a empregar ou explicar” (p.33). Posteriormente, as divergências ou competições entre as diversas escolas podem cessar quando “um indivíduo ou um grupo produz uma síntese capaz de atrair a maioria dos praticantes”, causando o desaparecimento das escolas mais antigas, em decorrência da “conversão de seus adeptos...ao novo paradigma” (p.39). Com a emergência do paradigma, o campo passa ao estágio denominado de ciência normal. Os cientistas que desenvolvem a pesquisa “baseada em paradigmas compartilhados estão comprometidos com as mesmas regras e padrões para a prática científica” (p.30), orientando-se daí para frente “para problemas cada vez mais recônditos e concretos...” (p.42), os quais Kuhn denomina quebra-cabeças, utilizando-se cada vez mais de artigos endereçados aos membros do grupo do que de livros dirigidos ao público mais amplo. O grupo constituiu-se numa comunidade científica, especializada numa determinada área.

        Eventualmente, o consenso estabelecido durante a ciência normal pode se quebrar devido a dificuldades empíricas persistentes, que deveriam ser resolvidas por meio das regras e procedimentos utilizados pela prática usual dos cientistas (ciência normal). O campo entra numa fase de debate sobre suas suposições fundamentais, um período chamado de crise marcado por “investigações extraordinárias”, pelo motivo de não estarem baseadas no paradigma conhecido, que acabam por conduzir a comunidade a um “novo conjunto de compromissos”, ou seja, a um novo paradigma (p.25). Tais episódios são denominados de revoluções científicas. Como exemplo, Kuhn cita as sínteses produzidas por Copérnico, Newton, Lavoisier e Einstein(3) .

    Voltando ao assunto deste trabalho, qual seria a função desempenhada pelas atividades experimentais no desenvolvimento da ciência? Kuhn aponta duas funções principais. A primeira está inserida dentro do funcionamento normal da ciência, enquanto a outra está relacionada às situações de crise e produção de novos paradigmas.

    Quando um novo paradigma é proposto, ele deixa em aberto diversos problemas que serão objetos de estudo durante a atividade normal da ciência. Dentre os problemas experimentais da ciência normal, Kuhn menciona, na Estrutura, três tipos:
 

(i) A determinação de fatos que vão conduzir a um aumento na acuidade e extensão do conhecimento experimental, envolvendo inclusive a construção de equipamentos especiais.  A construção de aceleradores de partículas e radiotelescópios são exemplos recentes dessa atividade.
(ii) A produção de fatos que podem ser comparados diretamente com o paradigma, visando estabelecer acordos cada vez melhores entre a natureza e a teoria. Na mecânica newtoniana, a demonstração experimental da segunda lei só foi possível após a invenção da máquina de Atwood em 1784, quase um século depois do aparecimento dos “Principia” de Newton. No caso da atração gravitacional, investigações quantitativas surgiram apenas em 1798. Usualmente, a produção de comparações desse tipo são difíceis de serem realizadas e em muitos dos casos em que ela foi possível, os investigadores tiveram de fazer diversas aproximações, desprezando algumas variáveis e simplificando os modelos usados.
(iii) A articulação da teoria envolve, dentre outras atividades, a determinação de constantes físicas e a descoberta de leis empíricas. A medição da constante gravitacional, por exemplo, foi feita na última década do século XVIII. Tentativas de melhorar a precisão de seu valor tem sido objeto de esforço de diversos pesquisadores desde então. Com relação à descoberta de leis experimentais, podemos citar a lei de Boyle, a lei da atração elétrica de Coulomb, etc.


        Nos tipos de atividades descritas acima, a teoria desempenha um papel fundamental. De um lado, ela força os fatos a se conformarem a ela, reduzindo a dispersão dos resultados experimentais e o desacordo sobre sua interpretação e, de outro, é o principal instrumento a guiar o cientista no planejamento do experimento e das técnicas de medida. Como escreve Kuhn:
 

“Dado que a maior parte das leis científicas possuem poucos pontos de contato quantitativos com a natureza, dado que as investigações desses pontos de contato exigem em geral uma instrumentação e aproximação tão laboriosa, e dado que a própria natureza necessita ser forçada a produzir os resultados adequados, o caminho que vai da teoria ou lei à medição quase nunca pode ser feito em sentido inverso. Os números colhidos sem conhecimento da regularidade quase nunca falam por si” (Kuhn 1989:244).


        Kuhn adverte, por outro lado, que o fato da natureza responder às predisposições teóricas não significa que ela “responderá a qualquer teoria”. Eventualmente, medições podem “se adaptar” a duas ou mais teorias rivais, o que poderá forçar os “limites das técnicas experimentais existentes” para distinguir entre elas (Kuhn 1989:247-248).
A segunda contribuição da experimentação para a ciência ocorre em momentos de substituição de um paradigma ou nas situações anormais da ciência, que Kuhn chama de revolução científica. Como já discutido, para Kuhn o processo de mudança científica se inicia com a consciência da anomalia, ou seja, “com o reconhecimento que, de alguma maneira, a natureza violou as expectativas paradigmáticas que governam a ciência normal” (Kuhn 1978:78). Kuhn se refere aqui, especificamente, ao papel que os fatos cumprem nas descobertas.

        Para Kuhn, entretanto, a descoberta não é uma questão simples, mas “um acontecimento complexo, que envolve o reconhecimento, tanto da existência de algo, como de sua natureza” (Kuhn 1978:81). Para Kuhn, as descobertas têm em comum: “a consciência prévia da anomalia, a emergência gradual e simultânea de um reconhecimento, tanto no plano conceitual quanto no plano da observação e conseqüente mudança das categorias e procedimentos paradigmáticos” (Kuhn 1978:89). Ou seja, para poder reconhecer uma novidade, o cientista deve estar dotado de novos óculos teóricos. Os exemplos dados por Kuhn são: a descoberta do oxigênio por Lavoisier, que dependeu de uma nova teoria da combustão (pelo oxigênio); a descoberta dos raios-X, por Roentgen, que questionava os aparelhos de raios catódicos, tidos como instrumentos paradigmáticos naquela época; e a descoberta da garrafa de Leyden, que só pode ser reconhecida como um capacitor, quando o paradigma do “fluido elétrico” foi substituído. Nos três casos, a medição funcionou como um critério na escolha entre duas teorias e na produção de um consenso estável na comunidade de pesquisadores. É somente nessas situações, segundo Kuhn, que a medição pode ser considerada como uma confirmação. De uma forma geral, a quantificação na ciência mostrou ser um excelente meio de reduzir as controvérsias sobre as teorias e aumentar a solidez do consenso (Kuhn 1989:269).
 

A Herança de Kuhn: van Fraassen e a relação entre teoria e experimentação

        Como vimos na seção anterior, segundo Kuhn, o experimento é usualmente realizado na Física como uma atividade da ciência normal, ou seja, como uma resolução de problemas deixados em aberto pelo paradigma, visando essencialmente a consolidação de sua base experimental. A busca de fatos mais precisos, a determinação de constantes e a comparação do paradigma com os fatos, são alguns dos problemas experimentais deixados pela ciência normal. Eventualmente, um fato experimental pode ser visto como uma anomalia, ou seja, como um resultado que violou as expectativas determinadas pelo paradigma vigente. Nesse caso, o fato só vai ser compreendido e encontrar suporte, se uma nova teoria for providenciada. Na visão kuhniana, portanto, os fatos são usualmente produzidos em conformidade com as teorias mas, eventualmente, as novas teorias são produzidas em conformidade com certos fatos. A relação entre os fatos e a teoria não é do tipo verificacionista ou falseacionista, mas adaptativa. Sendo assim, o pensamento epistemológico kuhniano põe em evidência um dos aspectos centrais de todo processo de aquisição de conhecimento: a necessidade de que haja um ajuste ou uma adaptação entre os esquemas teóricos propostos e a realidade(4) .

        Idéias semelhantes podem ser encontradas em van Fraassen com seu empirismo construtivo, para quem a ciência tem por finalidade “nos dar teorias que são empiricamente adequadas” (van Fraassen 1980:12). É importante perceber o eco da proposta kuhniana na filosofia de van Fraassen. Para Kuhn, como foi colocado, a teoria não se relaciona com os fatos, em função de sua verificação ou falseamento, mas em vistas de sua adaptação. Desta forma, não se coloca aqui a relação, postulada tanto pelo falseacionista quanto pelo verificacionista, entre teoria e fato como uma relação que asseguraria o valor-de-verdade da primeira, em razão de sua correspondência com o mundo. Para van Fraassen, as teorias científicas não precisam estar sob a rubrica de um valor-de-verdade (o verdadeiro ou o falso), uma vez que “o objetivo da ciência pode ser cumprido sem que seja fornecido um relato literalmente verdadeiro e a aceitação de uma teoria pode apropriadamente ter uma implicação menor (ou mesmo outra implicação) do que a crença de que ela é verdadeira” (van Fraassen 1980:9). E, seguindo Kuhn, vemos van Fraassen adotar uma estratégia metacientífica que não privilegia a experiência como o tribunal das teorias científicas. De fato, a teoria (como os paradigmas de Kuhn) antecipa a intervenção da natureza sobre ela própria, selecionando os aspectos relevantes da natureza; a experiência, por sua vez, comprovará a adequabilidade empírica da teoria. A citação abaixo destaca a imbricação dos aspectos teórico e observacional que estão presentes nas teorias científicas.
 

“Para a construção de teorias, a experimentação tem duplo significado: o de testar a adequação empírica da teoria...e preencher os espaços vazios (da teoria), isto é, guiar a continuação da construção ou complementação da teoria. Da mesma forma, a teoria tem um duplo papel na experimentação: formulação de questões a serem respondidas de uma maneira sistemática...e como guia no planejamento de experimentos para responder a essas questões” (van Fraassen 1980:74).


        Para van Fraassen, afigura-se como uma impossibilidade o acesso privilegiado à natureza, uma vez que esta tende a se mostrar como altamente “intratável”. A ciência, em sua descoberta de regularidades naturais, não pode prescindir do suporte fornecido pela teoria, uma vez que a natureza, ao revelar suas regularidades, mostra-se excessivamente parcimoniosa quanto aos seus aspectos que podem ser observados. Segue-se que a experimentação está visceralmente vinculada ao pressuposto teórico que está em jogo.

        Experimentos, como Kuhn já havia afirmado, são sempre experimentos articulados em função de um paradigma. A natureza é demasidamente complexa para ser tratada “como um todo”, e, de fato, a ciência parece ter se destacado das outras modalidades cognitivas a partir de seu rigoroso critério seletivo de escolha dos fenômenos que devem ser investigados. Assim, experimentos desvinculados de paradigmas/teorias não podem ser considerados mais do que “simples fatos”, sem qualquer interesse científico. Como afirma Kuhn:
 

“No século XVIII, por exemplo, prestava-se pouca atenção a experiências que medissem a atração elétrica utilizando instrumentos como a balança de pratos. Tais experiências não podiam ser empregadas para articular o paradigma do qual derivavam, pois produziam resultados que não eram coerentes, nem simples. Por isso, continuavam sendo simples fatos (...)” (Kuhn 1978:58).
Implicações: dificuldades com as interpretações usuais para as atividades experimentais no laboratório didático na Física

        Consideremos as interpretações dadas aos seguintes exemplos de atividades experimentais, em um laboratório didático, que encontramos na literatura.

      Exemplo 1. Sabe-se que muitos livros didáticos, ao introduzirem o conteúdo de magnetismo, afirmam que ao partirmos um imã retangular ao meio, formam-se, no local da quebra, pólos opostos que tendem a se atrair. Em uma experiência demonstrativa simples, o professor utiliza um imã que tem os seus pólos nas faces e não nas extremidades, de modo que a separação do imã em duas partes não reproduz o fenômeno descrito no texto. Provavelmente, isso causa surpresa aos estudantes, que são então estimulados a pensar sobre a aparente anomalia e produzir “teorias” explicativas. (Moura e Canalle, 1999).

        Exemplo 2. Depois de uma reflexão inicial, cujo objetivo é motivar os estudantes, o professor coloca o problema de entender a queda dos corpos. O que se pode falar a respeito dela, a partir das observações cotidianas? Os alunos levantam algumas hipóteses, a principal delas é que o tempo de queda depende da massa. O professor, então, passa a planejar e realizar com os alunos diversas experiências para demonstrar que os corpos caem praticamente ao mesmo tempo no vácuo, o que de fato é demonstrado. A atividade seguinte consiste em verificar se a aceleração de queda é constante. Para isso, alguma conseqüência que possa ser testada diretamente, tem de ser elaborada. Nesse momento, a teoria previamente aprendida ajuda os estudantes descobrir uma relação entre a altura e o tempo de queda, que pode ser deduzida diretamente da equação da posição com o tempo, para um movimento retilíneo uniformemente variado. Isso leva ao planejamento de novos experimentos, o uso do plano inclinado e do microcomputador para a tomada de dados, etc. O valor da aceleração é então determinado e os resultados são analisados. Posteriormente, os estudantes escrevem os seus relatórios e eventualmente comunicam os resultados para outros grupos. (Gil e Castro, 1996).

         Exemplo 3. Consideremos um experimento de lançamento horizontal, em que uma esfera rola horizontalmente por uma canaleta e cai de uma certa altura até o solo. Com o equipamento, que é dotado de um sensor e utiliza o computador para a coleta e análise dos dados, é possível determinar, por exemplo, o alcance da bola, em função da velocidade com que ela sai da canaleta e a aceleração da gravidade. (Cavalcante e Tavolaro, 1997).

    Dados os exemplos acima, fazemos então as seguintes perguntas:

        · Será que, no exemplo 1, a experiência didática pretende demonstrar, de uma maneira simplificada, “como é o trabalho de um cientista e a utilização do método científico”, que consistiria, na opinião dos autores, na elaboração ou confirmação de teorias a partir da observação de um fenômeno (ou seja, na utilização do método indutivo) ?

        · Será que, no exemplo 2, a atividade desenvolvida com os estudantes pretende ilustrar a “orientação das práticas de laboratório como investigação”, entendida como a aplicação da seqüência de passos do método científico ou do raciocínio hipotético-dedutivo, conforme definido na Introdução desse trabalho?

        · Será que, no exemplo 3, os experimentos poderiam ser realizados com o objetivo de “testar previsões teóricas” (uso do método hipotético-dedutivo) ou “descobrir relações entre variáveis, a partir da análise de dados experimentais” (uso do método indutivo), conforme interpretado pelos autores?

         Em síntese, será que nos exemplos acima, os professores estão realmente praticando, como alegam, uma metodologia de ensino que visa induzir, verificar, testar ou falsear as hipóteses ou teorias levantadas pelos estudantes através da utilização da experimentação? Nós suspeitamos que não, por várias razões, que tentaremos expor abaixo.

         Em primeiro lugar, a esmagadora maioria dos alunos da escola secundária, como muitos dos universitários iniciantes, chega mesmo a não entender um problema experimental, quando ele é colocado. Na verdade, apresentam uma série de dúvidas que precisam ser pouco a pouco esclarecidas e trabalhadas, até que eles consigam entender o que está por detrás da atividade, o que seria praticamente impossível, sem o auxílio do professor.

        Em segundo lugar, é muito improvável que os estudantes, principalmente do ensino médio, consigam elaborar hipóteses explicativas interessantes para uma dada situação experimental, ou que, dedutivamente, consigam dar conta satisfatoriamente de uma anomalia. Quase sempre, caberá ao professor apontar as soluções e oferecer as saídas que tornarão a atividade experimental dotada de sentido e interessante aos estudantes.

        Em terceiro lugar, a transposição para o laboratório didático, de uma visão da ciência que pressupõe a contrastação empírica, seja para a verificação, seja para o falseamento de hipótese, subentende, pelo menos implicitamente, que os “dados” de uma experiência são compreendidos de forma inequívoca pelos alunos. Entretanto, mesmo em casos de medições simples, como a do comprimento de um fio ou o diâmetro de uma bola, uma medida pode assumir para os estudantes um significado bastante diferente do que assumiria para o professor. Esse é um dos resultados apresentados em tese de doutorado recente. Observando como grupos de estudantes universitários conduziam o seu trabalho em um laboratório didático, foi possível, para a autora, inferir uma série de representações que os alunos possuem sobre uma medida, que ora é vista “como um valor qualquer, pois não leva em conta nem mesmo o instrumento utilizado para obtê-la, ora é “proto-medida”, pois embora considere na sua obtenção o instrumento, não leva em conta o contexto experimental no qual ela se insere”, ou ainda pode ser entendida como “tendo uma importância absoluta e não relativa para o resultado final”, isto é, sem levar em conta a teoria de erros (Barolli, 1998:71-72).

        Em quarto lugar, atividades experimentais como a observação de regularidades ou de relações entre variáveis, podem representar um problema fora do alcance dos estudantes. Pudemos observar, recentemente, com estudantes, tanto do ensino médio quanto do superior, bem como com professores de Física da escola secundária, dificuldades em entender relações constantes entre grandezas, tal como as expressas pela lei de Boyle, tendo, os valores de cada medida, aparentemente sido considerados independentes um do outro.

        Em quinto lugar, um experimento qualitativo simples pode ser interpretado de diferentes maneiras, segundo as perspectivas ou idéias prévias dos estudantes. Por exemplo, um corpo que desliza no chão, apenas sob a ação do atrito, pode ser visto como sujeito a forças impressas na direção do movimento; um líquido sobe num canudinho de refrigerante por causa da força aplicada pela sucção exercida pela boca da pessoa; a temperatura de um corpo aumenta porque aumentou sua quantidade de calor; as cargas elétricas que correm por um fio se originaram da bateria, e assim por diante. Em muitos desses casos, a superação das concepções espontâneas só ocorrerão como “resultado da aquisição de um corpo de conhecimentos capaz de deslocá-las de forma global” (Gil e Castro, 1996:161).

        Parece-nos, portanto, que os objetivos das atividades exemplificadas acima não ficam legitimadas. Elas seriam melhores compreendidas como um intenso processo dialógico entre professor e alunos, em que, através do debate e do levantamento das idéias desses últimos, o professor vai, a cada momento da aula, explicando as dúvidas dos alunos, preenchendo suas lacunas e desenvolvendo suas idéias em relação ao conteúdo. Em síntese, trata-se de fazer com que termos como velocidade, aceleração, força, pressão, temperatura, etc, e suas relações, em conjunto com variado número de habilidades e destrezas necessárias para suas determinações, façam sentido no contexto experimental em que eles aparecem. Portanto, ao que parece, o que está ocorrendo de fato, é um esforço para ajustar, articular ou tornar coerente um corpo teórico, com o qual o estudante provavelmente já teve contato, com a parte fenomenológica do paradigma em estudo. Trata-se portanto, mais de “adaptar” um corpo teórico a resultados experimentais, do que induzir, verificar ou falsear teorias.
 

 Considerações finais

         Uma concepção do laboratório didático que entende as atividades que estão sendo desenvolvidas como um esforço em dar uma unidade ao discurso teórico e experimental, poderia ser designada como uma concepção adaptativa do laboratório didático. Nesse sentido, uma tal concepção, estando fundamentada nas idéias de Kuhn, consideraria o aprendizado científico, essencialmente, como a aquisição de um vocabulário ou de uma linguagem, por meio da exposição do estudante aos exemplares - inclusive as situações experimentais - e suas soluções (Kuhn, 1990). Em outras palavras, o que deve ocorrer, seja em uma aula teórica, seja em uma aula no laboratório, é o aprendizado de novos termos, que devem ser empregados de uma certa maneira, a qual é indicada ao aluno pelo professor, pelos livros, etc. Portanto, de um modo geral em um laboratório didático sob uma concepção adaptativa, a preocupação central do professor não seria com a contrastação empírica (confirmação ou falseamento) de hipóteses, teorias, etc, ou seja, não se trata de opor a teoria ao experimento, mas de articular os dois de maneira integradora, de modo a permitir que o estudante possa ter uma visão do todo (do paradigma).

         Por outro lado, em analogia ao que Kuhn coloca na Estrutura (seção 2, deste artigo), as atividades experimentais em um laboratório desse tipo seriam entendidas como:

1) a exploração da parte fenomenológica do paradigma, o que poderia envolver a construção de equipamentos;
2) a produção de fatos que se ajustem com precisão a determinadas conseqüências do paradigma;
3) a articulação da teoria através da determinação de constantes físicas características, a descoberta de leis empíricas e medições em geral;
4) ou ainda, a resolução de uma anomalia, ou seja, de uma situação em que os conhecimentos prévios do estudante não estão funcionando, o que exigiria a construção de novos óculos teóricos, para permitir enxergar o experimento de uma outra maneira.

        Poderia ser argumentado, que a maioria das dificuldades apontadas na seção anterior, também se aplicam a um laboratório do tipo adaptativo. Entretanto, nesse laboratório, o professor terá a clareza de que o que está em jogo é a aprendizagem da linguagem científica e, em especial, o ajuste entre um discurso teórico e um experimental, os quais, apesar de problemáticos, cada um deles a seu modo, irão compor, ao final um todo, a linguagem única e coerente do paradigma que está sendo ensinado. Talvez, a adoção dessa perspectiva possa possibilitar ao professor minimizar o caráter problemático do aprendizado científico no laboratório.
 

Referências Bibliográficas

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Notas
(1) Não obstante o fato de Popper ser um contundente crítico do empirismo, o que pode ser percebido em Popper (1975: cap. 1), é perfeitamente razoável entender sua filosofia como envolvida no projeto empirista. De qualquer modo, sua filosofia é uma sofisticação do empirismo tradicional – esta é a tese de pelo menos um dos autores deste artigo e pode ser encontrada em Silva (1999). (Volta para o texto)
(2) Como exceção, podemos citar o artigo de Millar (1987). (Volta para o texto)
(3) Cabe ressaltar que a distinção entre ciência normal e pré-ciência pode ser compreendida a partir da presença do consenso na primeira.  Desta forma, parece interessante a proposta de Hoyningen-Huene (1993:169), que apóia a distinção estabelecida por Kuhn entre a ciência normal e os outros períodos a partir do estabelecimento do consenso: “A ciência normal é assim simultaneamente distinguida dos outros dois estágios da ciência, ou formas de prática científica. Por um lado, ela se distingue da forma de prática científica típica de campos nos quais a condução da pesquisa não tem sido ainda sustentada por algum consenso universal. Este modo de condução da ciência será por mim chamado de ciência ‘pré-normal’. A ciência normal é também distinta de fases de fundamental dissensão dentro de uma ciência em seu estágio maduro, dissenso resultante do colapso de um consenso prévio universal. Kuhn chama esta forma de prática científica ‘ciência extraordinária’ ou ‘ciência em crise’ “ (Hoyningen-Huene 1993:169). (Volta para o texto)
(4)  Um aspecto essencial desse processo de ajustamento ou adaptação entre os esquemas teóricos e a realidade é que ele vai desde a aquisição de modelos mentais pelas crianças até a testagem e verificação de teorias pelo cientista, num processo que Arbib e Hesse chamam de feedback físico (Arbib e Hesse 1986:2). (Volta para o texto)
 


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