ARGUMENTAÇÃO EM UMA AULA DE CONHECIMENTO FÍSICO COM CRIANÇAS NA FAIXA DE OITO A DEZ ANOS
(Classroom argumentation in a physical knowledge class for eight to ten years old students)
  
Maria Candida Varone de Morais Capecchi
Bolsista de doutorado FAPESP/FEUSP
e-mail: mcandida@usp.br
Anna Maria Pessoa de Carvalho
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
e-mail: ampdcarv@usp.br

 

RESUMO

O presente trabalho refere-se ao estudo da argumentação de alunos, na faixa etária de oito a dez anos, numa aula de conhecimento físico. A análise foi realizada tanto do ponto de vista estrutural, através da identificação de componentes presentes nos argumentos isolados, quanto do ponto de vista da interação entre os locutores, observando a presença de diferentes idéias e a busca de sínteses na argumentação como um todo. Foi observado, também, de que forma a professora conduziu a discussão, tendo sido identificado um padrão discursivo IRF predominantemente elicitativo. Tal predominantemente elicitativo, possibilitou a criação de um espaço cooperativo para a exposição de idéias, incluindo ao mesmo tempo o respeito às diferentes explicações e a autoconfiança para posicionamentos contrários aos dos colegas, assim como, a elaboração de argumentos complementares por parte dos alunos. Além de apresentarem muitas afirmações com justificativas, relacionando-as aos dados obtidos, os alunos elaboraram hipóteses a partir de suas conclusões e o problema proposto estimulou-os não apenas a solucioná-lo, mas também a tentar variações.
Palavras-chave: argumentação em sala de aula, conhecimento físico, escola fundamental.


ABSTRACT

 This paper is concerned with the study of the argumentation of eight to ten years old students in a physical knowledge class. The analysis was carried out from the structural point of view, through the identification of the components present in isolated arguments, as well as looking for different ideas and searching for syntheses in the argumentation as a whole. It was also observed in which way the teacher conducted the discussion and a IRF discursive standard mainly elucidative was identified. This kind of discourse provided a cooperative space for the externalization of ideas, which allowed at the same time the respect for alternative explanations and the selfconfidence regarding of complementary arguments. Besides presenting many statements in their justifications, relating them to the data they gathered, students stated hypotheses from their conclusions and the proposed problem stimulated them not only to solve it but to try alternative solutions as well.
Key-words:
classroom argumentation, physical knowledge, elementary school.

 

Introdução

O incentivo à participação dos alunos em discussões sobre os temas a serem estudados em aula e os trabalhos em grupos envolvem dimensões importantes na formação geral dos estudantes, tais como, o aprendizado de uma convivência cooperativa com os colegas, o respeito às diferentes formas de pensar, o cuidado na avaliação de uma afirmação e a auto confiança para a defesa de pontos de vista.

No contexto de ensino de Ciências, esta troca de idéias entre os alunos e a elaboração de explicações coletivas possibilitam o contato com um aspecto importante para a formação de uma visão da Ciência como uma construção de uma comunidade, cujas teorias estão em constante processo de avaliação. Os alunos devem conhecer esta faceta do conhecimento científico, identificando-o como o resultado de interações entre idéias diferentes, como réplica a outros enunciados e também sujeito a novas réplicas. Geralmente, a visão de Ciência que é veiculada na escola é aquela de um conhecimento estático, através da apresentação de teorias acabadas, inquestionáveis.

Considerando que a Ciência apresenta linguagem própria e uma forma particular de ver o mundo, construída e validada socialmente, familiarizar-se com suas práticas pode ser considerado como uma espécie de enculturação (Driver et al., 1994; Cobern e Aikenhead, 1998). Ao falar sobre determinado fenômeno, procurando explicá-lo para os colegas e o professor, discutindo e considerando diferentes pontos de vista, além dos aspectos já citados no parágrafo anterior, o aluno tem a oportunidade de familiarizar-se com o uso de uma linguagem que carrega consigo características da cultura científica (Driver, Newton e Osborne, 1999). Aprender ciências é também apropriar-se desta nova linguagem e é através do espaço para falar que esta apropriação torna-se possível - "aprendemos a falar aprendendo a estruturar enunciados" (Bakhtin, 1979).

Para que possam compreender o papel da linguagem científica, é necessário que os estudantes tenham a oportunidade de experimentar seu uso, ponderando as vantagens de sua utilização em contextos adequados, assim como, adquirindo maior desenvoltura ao lidar com a mesma. Algumas pesquisas têm mostrado que os estudantes adquirem novas formas de falar, próprias do professor, à medida em que participam de discussões nas aulas de ciências (Candela,1993; Scott, 1997). Sutton (1998) chama a atenção para a importância da conscientização dos alunos sobre o papel da linguagem em suas próprias aprendizagens: "Aprendizes deveriam experimentar a linguagem como um meio para a conversação sobre idéias, não apenas para receber a ‘verdade’. Estudantes deveriam re - trabalhar idéias científicas e praticar o uso das mesmas em argumentos e decisões".

A partir desta perspectiva, acreditamos que o espaço para a fala dos alunos e, mais especificamente, para a argumentação em sala de aula é fundamental. Através da argumentação, os estudantes entram em contato com algumas habilidades importantes dentro do processo de construção do conhecimento científico, tais como, reconhecimento entre afirmações contraditórias, identificação de evidências e confronto de evidências com teorias. Segundo Kuhn (1993), a argumentação também pode ser empregada como uma forma de aproximação entre os pensamentos científico e cotidiano, já que também é muito presente no segundo.

Neste trabalho procuramos identificar num episódio extraído de uma aula de conhecimento físico (Carvalho et al., 1998), com crianças na faixa de 8 a 10 anos, as formas de argumentação dos alunos, acompanhando as intervenções da professora e verificando em que medida as características da atividade realizada estimulou a elaboração de argumentos.

 

Argumentação em sala de aula

Quando nos referimos ao estudo da argumentação nas aulas de Ciências, estamos interessados em observar as enunciações elaboradas pelos alunos durante discussões visando a construção de explicações coletivas para determinados fenômenos. Desta forma, nossa interpretação para argumento é bastante semelhante à definição apresentada por Krummheuer (1995 apud Driver et al. 1999), em que este é considerado como o esclarecimento intencional de um raciocínio durante ou após sua elaboração.

Segundo Duschl e Ellenbogen (1999), a argumentação geralmente é reconhecida sob três formas: analítica, dialética e retórica, sendo que as duas primeiras são baseadas na apresentação de evidências, enquanto a última sustenta-se na utilização de técnicas discursivas para a persuasão de uma platéia a partir dos conhecimentos apresentados pela mesma. No contexto da aula de Ciências, consideramos importante o desenvolvimento da argumentação baseada na apresentação de evidências, já que estas são tipicamente valiosas para a comunidade científica. É preciso observar que diferentes comunidades apresentam diferentes formas de argumentos e que, portanto, o contexto em que um argumento é empregado é fundamental para seu julgamento. Driver et al. (1999) apontam algumas formas de argumentos tipicamente importantes para a comunidade científica: o desenvolvimento de simplificações; a postulação de teorias explicativas causais, que gerem novas previsões, e a apresentação de evidências a partir de observações ou experimentações. Por este motivo acreditamos que a argumentação dos alunos deva ser estudada tanto do ponto de vista estrutural, através da identificação de componentes presentes nos enunciados isolados, quanto do ponto de vista da interação entre os locutores, observando a presença de diferentes idéias e a busca de sínteses na enunciação como um todo.

A argumentação em sala de aula tem sido estudada sob diferentes enfoques, compreendendo, por um lado, o estudo do discurso do professor (Russell, 1983; Boulter e Gilbert, 1995), e, por outro, o acompanhamento da construção de argumentos pelos alunos (Richmond e Striley, 1996; Candela, 1997; Jiménez-Aleixandre et al., 1998; Patronis e Spiliotopoulou, 1999; Driver et al., 1999). No segundo caso, vários aspectos têm sido considerados, entre eles, as condições favoráveis à criação de um ambiente estimulante ao desenvolvimento da argumentação, através da identificação de características das atividades de ensino envolvidas, e o estudo das interações professor - alunos.

Jiménez Aleixandre et al. (1998) apontam o papel que atividades planejadas, envolvendo a elaboração de hipóteses, representam na criação de um ambiente estimulante ao desenvolvimento da argumentação. Por outro lado, a forma com que o professor intervém nas discussões dos alunos é fundamental seja qual for o objetivo almejado na realização de uma atividade (Mortimer e Machado, 1997). Aquele pode encorajar os alunos a participarem da discussão da mesma forma que reprimi-los. É necessário que as discussões sejam conduzidas sem a perda do rumo estabelecido, não basta deixar que os alunos falem livremente, é preciso encontrar um equilíbrio entre a livre apresentação de idéias e a atenção às questões já discutidas. Para tanto a presença do professor é fundamental, solicitando esclarecimentos quando necessário, relacionando falas de diferentes alunos e resgatando conceitos esquecidos.

 

Atividades de Conhecimento Físico

As atividades de conhecimento físico propostas por Carvalho et al. (1998) são especialmente elaboradas para que os alunos tenham a oportunidade de resolver problemas de ciências e tomar consciência das variáveis envolvidas nesta solução. Para que tal objetivo seja atingido, as atividades contam com algumas etapas. Inicialmente o professor propõe um problema experimental que deve ser resolvido pelos alunos em pequenos grupos, de 4 a 5 crianças. Sendo atividades destinadas ao ensino de ciência no nível fundamental (faixa etária de 7 a 11 anos), é essencial que possibilitem aos alunos controlar o fenômeno envolvido, produzindo-o quantas vezes julgarem necessário para sua compreensão e também variando suas ações sobre os objetos envolvidos (Kamii e Devries, 1986). Além disso, uma de suas principais características é a visibilidade das variáveis, ou seja, os alunos têm a oportunidade de ver o que provoca o fenômeno em questão.

Após a resolução do problema via experimentação, é realizada uma discussão com toda a classe em que, inicialmente, é solicitado às crianças que contem como resolveram o problema e posteriormente por que aquela foi a melhor solução. Desta forma, elas têm a oportunidade de tomar consciência de suas ações, refletindo sobre as mesmas, chegando a construir explicações causais para o fenômeno estudado (Carvalho, 2000). Tais atividades, portanto, devem envolver a criação de um ambiente propício para que as crianças apresentem suas idéias visando a elaboração de uma explicações, o que implica na apresentação de argumentos. É o estudo deste aspecto das atividades de conhecimento físico que é apresentado no presente trabalho.

 

Referenciais Teóricos

Como citado anteriormente, pretendemos fazer uma análise da argumentação dos alunos tanto do ponto de vista estrutural, quanto das interações estabelecidas na discussão geral. Assim, tais enunciações foram analisadas através de dois enfoques sobre o padrão de argumento racional desenvolvido por Toulmin (1958). Além de serem identificados os principais componentes presentes nos argumentos (análise estrutural), foram atribuídos níveis de qualidade para os mesmos de acordo com as interações estabelecidas ao longo de toda discussão. Este último aspecto foi observado através de algumas categorias desenvolvidas por Driver e Newton (1997). A análise do discurso do professor foi baseada no trabalho de Mortimer e Machado (1997), procurando identificar uma alternância entre um padrão avaliativo e um padrão elicitativo em suas interações discursivas com os alunos.

 

Propostas de análise de argumentação baseadas no modelo de Toulmin

Toulmin (1958) desenvolveu um padrão para a análise de argumentos que identifica, além dos elementos básicos que os compõem, as relações entre estes elementos. O esquema de um argumento completo segundo este padrão é apresentado a seguir:

 

 

Os elementos fundamentais de um argumento segundo tal padrão são o dado, a conclusão e a justificativa. É possível apresentar um argumento contando apenas com estes elementos, cuja estrutura básica é: "a partir de um dado D, já que J, então C". Porém, para que um argumento seja completo pode-se especificar em que condições a justificativa apresentada é valida ou não, indicando um ‘peso’ para tal justificativa. Desta forma podem ser acrescentados ao argumento qualificadores modais (Q), ou seja, especificações das condições necessárias para que uma dada justificativa seja válida. Da mesma forma, é possível especificar em que condições a justificativa não é válida ou suficiente para dar suporte à conclusão. Neste caso é apresentada uma refutação (R) da justificativa. Os qualificadores e as refutações dão os limites de atuação de uma determinada justificativa, complementando a ‘ponte’ entre dado e conclusão.

Além dos elementos já citados, a justificativa, que apresenta um caráter hipotético, pode ser apoiada em uma alegação categórica baseada em uma lei, por exemplo. Trata-se de uma alegação que dá suporte à justificativa, denominada "backing" (B) ou conhecimento básico. O "backing" é uma garantia baseada em alguma autoridade, uma lei jurídica ou científica, por exemplo, que fundamenta a justificativa.

O modelo de Toulmin é uma ferramenta poderosa para a compreensão do papel da argumentação no pensamento científico. Além de mostrar o papel das evidências na elaboração de afirmações, relacionando dados e conclusões através de justificativas de caráter hipotético, também realça as limitações de uma dada teoria, bem como sua sustentação em outras teorias. O uso de qualificadores ou de refutações indica uma compreensão clara do papel dos modelos na ciência e a capacidade de ponderar diante de diferentes teoria a partir das evidências apresentadas por cada uma delas. Um modelo, por exemplo, pode ser útil para uma situação específica, porém substituído por outro mais abrangente em outras circunstâncias. Se os alunos puderem entrar em contato com argumentos completos, prestando atenção nestas sutilezas, possivelmente estarão compreendendo uma importante faceta do conhecimento científico.

 

Categorias desenvolvidas por Driver e Newton

As categorias apresentadas na tabela 1 foram elaboradas dentro de uma proposta de trabalho visando a criação de atividades voltadas para o incentivo de habilidades de argumentação entre os alunos a partir da discussão de temas relacionados ao ensino de ciências. Os autores basearam-se no padrão de Toulmin, considerando o papel do desenvolvimento de habilidades de argumentação para a enculturação em ciências, compreendendo entre outros a construção coletiva do conhecimento científico.

Os níveis atribuídos em tais categorias são baseados na complexidade dos argumentos utilizados, assim como na interação entre diferentes idéias. O uso de qualificadores ou refutações (nível 3) só é necessário quando há afirmações competindo (nível 2); um argumento que não sofre nenhum questionamento pode ser incompleto (nível 1). Fazer julgamento integrando diferentes argumentos (nível 4) indica uma compreensão elevada da natureza do conhecimento científico. Quando os alunos buscam uma síntese numa discussão sobre determinado fenômeno ou tema relacionado à ciência, estão buscando modelos explicativos mais abrangentes, o que passa necessariamente pela elaboração de argumentos mais completos.

 

Tabela 1 - Categorias desenvolvidas por Driver e Newton para a análise da argumentação dos alunos a partir do modelo de argumento de Toulmin
 
Tipo de Argumento Nível
Afirmação isolada sem justificativa 0
Afirmações competindo sem justificativas 0
Afirmação isolada com justificativa 1
Afirmações competindo com justificativas 2
Afirmações competindo com justificativas e qualificadores 3
Afirmações competindo com justificativas respondendo por refutação 3
Fazer julgamento integrando diferentes argumentos 4
Uma dimensão do modelo de Toulmin é desconsiderada nesta classificação; as justificativas empregadas pelos alunos não são hierarquizadas em hipotéticas ou conhecimentos básicos, qualquer tipo de garantia apresentada para sustentar uma afirmação é válido. Assim, além de procurarmos classificar os argumentos dos alunos a partir destas categorias, identificamos também os componentes dos mesmos de acordo com a proposta de Jiménez Aleixandre et al (1998), apresentada na próxima seção.

 

Componentes do argumento segundo Jiménez Aleixandre et al. (1998)

A proposta dos autores é a identificação de todos os componentes do argumento racional de Toulmin nas falas dos alunos, especificando os diferentes tipos de dados, afirmações ou enunciados que podem compor argumentos numa aula de ciências. Os demais componentes do argumento são interpretados como no modelo original. É importante notar que, diferentemente das categorias de Driver e Newton, o papel do conhecimento básico aqui é levado em consideração, há uma diferenciação entre a utilização de uma justificativa simples e a busca de embasamentos para a mesma em alguma lei específica. Os componentes detalhados são apresentados na tabela 2.

Tabela 2 – Detalhamento de alguns componentes do modelo de argumento de Toulmin proposto por Jiménez e Aleixandre et al (1998).
 
Dados
 

Fatos aos quais são feitas referências como base para uma conclusão 

Dado fornecido
Dado empírico
Dado hipotético
Enunciados
As hipóteses e as conclusões são afirmações cuja validez se deseja estabelecer. Hipótese 

Conclusão

A oposição é um enunciado que questiona a validez de outro. Oposição
 

 Proposta de análise do discurso do professor

De acordo com Lotman (1988 apud Mortimer e Machado, 1997) um texto, escrito ou falado, pode ter duas funções: transmitir significados ou gerar novos. A função de transmissão implica na existência de um código comum entre transmissor e receptor, qualquer diferença de interpretação pode resultar numa falha no sistema de comunicação. No contexto escolar esta função é muito comum, há vários momentos em que o professor faz explanações, porém também pode ocorrer em alguns diálogos. Um padrão discursivo muito comum na sala de aula é o IRF (Edward e Mercer, 1987 apud Mortimer e Machado 1997) - o professor inicia o diálogo (I), os alunos respondem (R) e o primeiro dá um feedback (F). Quando o professor faz perguntas aos alunos exigindo fidelidade a significados já compartilhados pela classe, ou seja, perguntas com respostas bem definidas, este padrão é denominado avaliativo.

A função de transmissão ou de reforço de um texto também pode ser associada a um "discurso de autoridade", dentro da teoria da enunciação de Bakhtin (1993). Segundo o autor, apesar de toda enunciação apresentar uma intertextualidade, caracterizada pelas diversas significações (plurilingüismos) já atribuídas, através de outras enunciações, a seu tema, num "discurso de autoridade" somente a voz do locutor aparece explicitamente. Neste caso, assim como no padrão IRF avaliativo, é exigida uma fidelidade aos significados apresentados pelo locutor, sendo proibida a apropriação livre das palavras.

Quando a função do texto é a geração de significados, a diversidade de interpretações para o tema em questão é bem vinda. O dialogismo entre locutor e interlocutor, assim como entre o locutor e os diversos significados já atribuídos ao tema de sua enunciação é explícito. A participação ativa dos interlocutores é valorizada pelo locutor, deixando transparecer em sua fala múltiplas vozes. Isto pode ser identificado, por exemplo, quando o locutor utiliza-se de algum significado ou modo de articular idéias já utilizado pelo interlocutor para enriquecer seu enunciado. Este tipo de enunciado é denominado por Bakhtin como "internamente persuasivo", já que coloca um grande peso na voz do ouvinte. O padrão IRF num texto visando a geração de novos significados é elicitativo, ou seja, o professor inicia o diálogo, o aluno responde e, ao invés de avaliar a resposta do aluno, o professor procura estimulá-lo a acrescentar novas idéias à discussão, o que pode ser feito através de uma nova pergunta.

Mortimer e Machado identificaram na fala do professor uma alternância entre um "discurso persuasivo" e um "discurso de autoridade" durante uma aula visando mudança conceitual. Esta alternância mostrou-se importante para auxiliar os alunos na identificação e superação de conflitos cognitivos. Nossa intenção foi experimentar esta classificação em nossas observações. Para tanto, procuramos identificar em primeiro lugar os padrões discursivos IRF e, a partir daí, classificá-los dentro de uma tendência autoritária ou internamente persuasiva, de acordo com a exigência ou não de fidelidade pelo professor.

Metodologia de Pesquisa

Como o foco de nossa pesquisa é a análise do discurso oral, tanto de alunos quanto de professor, nosso instrumento de coleta de dados foi a observação, através do registro de todas as etapas de realização de uma atividade de conhecimento físico e posterior transcrição. A partir das falas transcritas foi selecionado o episódio analisado, considerando como momento privilegiado para a argumentação dos alunos a fase de discussão iniciada após a solução prática do problema proposto.

 

Descrição do Episódio Analisado

O episódio analisado corresponde à segunda parte de uma aula de Ciências sobre conhecimento físico - fase de descrição de como o problema foi resolvido e busca de uma explicação para o fenômeno envolvido. A aula foi realizada com alunos do Ensino Fundamental, correspondendo à antiga segunda série do primeiro grau, da Escola de Aplicação da Universidade de São Paulo. Os alunos, na faixa etária de 8 a 10 anos, não haviam entrado em contato com o conteúdo envolvido na atividade anteriormente. Os dados foram coletados através de gravação em vídeo de toda aula, compreendendo desde o registro da resolução do problema por um dos grupos de alunos até a discussão final com a sala toda. O procedimento de filmagem de aulas é bastante comum na Escola de Aplicação, assim a presença de uma câmera de vídeo foi ignorada pelos alunos durante a realização da atividade. A análise foi feita a partir da transcrição das falas dos alunos e da professora referentes à discussão da sala toda no final da atividade.

A atividade de conhecimento físico realizada nesta aula foi baseada na observação da variação do alcance de um jato em função da altura de uma coluna de água. Os alunos receberam o seguinte material (figura 2):

 O problema proposto nesta aula foi que os alunos mantivessem o pequeno pote sempre cheio de água. Porém só era permitido acrescentar água no tubo de plástico transparente.

Figura 2 – Aparato experimental utilizado na atividade de conhecimento físico relacionada ao estudo da pressão.

 

 Critérios para a Análise de Dados

Como apresentado anteriormente, foram empregados diferentes referenciais para a análise dos dados e alguns detalhes da forma com que tais referenciais foram utilizados merecem esclarecimento. Os argumentos dos alunos foram observados de duas formas: uma análise estrutural, inspirada no modelo de Toulmin e na adaptação de Jiménez-Aleixandre et al., foi feita através da identificação de componentes presentes nos argumentos isolados de cada indivíduo. Por outro lado, as categorias de Driver e Newton foram empregadas para uma análise geral da argumentação durante toda a discussão.

Para observar a postura do professor, inicialmente foi identificada a predominância de um padrão IRF ao longo de todo episódio, que posteriormente foi classificado dentro de duas tendências, de acordo com o feedback do professor: elicitativa ou avaliativa. É importante considerar que este diálogo triádico nem sempre aparece de uma forma exata, em muitas situações o feedback do professor confunde-se com uma nova iniciação ou diferentes alunos respondem entre uma iniciação do professor e seu feedback.

 

Análise de Dados

A seguir apresentamos o episódio analisado exemplificando as principais formas de argumentação dos alunos. Ao lado de cada turno de fala são apresentados comentários sobre os argumentos. Os momentos de transição entre a predominância de uma tendência elicitativa ou avaliativa no padrão IRF também são destacados. Os números indicam a seqüência das falas.

Após os alunos terem resolvido o problema proposto, começou a fase de reflexão sobre o que foi feito. A professora inicia esta fase solicitando aos alunos que contem como resolveram o problema.

1. P: “Vocês fizeram o trabalho, a experiência, tá. Agora eu quero saber como é que vocês conseguiram sempre deixar o potinho pequeno com água, apenas jogando água no tubo grande? Como é que vocês conseguiram fazer isto? ...” 
2. A5: “A gente pegou os copos ... Assim quando saísse água pelo tubinho a gente colocava pra encher. Quando diminuía a gente colocava, aí enchia o copinho, o negocinho, depois saía de novo. Aí, depois o A6 foi lá, encheu do copo dele quando o A17 colocava água pra poder encher o copo. Depois o A6 jogou, foi no tubinho, depois fui eu, aí foi o A17 colocou água pra mim ... é no tubinho pra mim, é ... e depois eu joguei. 
3. “P: Muito bem. E você A6, como é que você fez?” 
Padrão IRF elicitativo 
4. A6: “Bom, a gente, né, a gente catou, a gente foi enchendo, né. Aí, aí a gente via que não dava pra encher quando chegava no 100ml. Aí, aí quando a gente viu que quando chegava no 90 enchia o tubinho pequeno.”  Dado empírico
5. P: “Ah, então você usou ... Do tubo grande você usou então o que? Uma ...” 
6. A6: “Um copo?” (respondendo em voz baixa, depois de ter hesitado) 
7. P: “Uma medida que tinha lá?” 
8. A6: “É, medida.” (juntamente com outros alunos) 
9. P: “Anran. E agora, quem é que vai? A8? A7? A7 vai falar.” 
Padrão IRF avaliativo 
10. A7: “É...” 
11. P: “Só que eu quero ouvir todo mundo falando, hein!” 
Padrão IRF elicitativo 
12. A7: “Quando enche até a boca vai fazendo mais força pra entrar no copinho que tá mais longe do tubo mais grande. E ... aí ... não pode encher tudo porque o ... o canudinho que tem no ... tubo grande tá, tá em cima é ... do ... do primeiro negócio lá. Daí não podia, não podia mais... é ... não podia mais encher porque tinha água sobrando no tubo.” 
13. P: “Anran. E agora?” 
14. A8: “Eu”. 
15. P: “Você A8.” 
Afirmação   com justificativa 
16. A8: “ É, às vezes tinha ... Não era sempre da medida que nem o A6 falou. Tinha ... Às vezes a água tava sem pressão, a gente colocava na mesma medida não caía lá. A gente tinha que jogar água direto pra fazer pressão.” 
17. P: “Olha, vocês estão ouvindo o que a A8 falou? Eu vou ... Só que eu acho que tem gente que não tá ouvindo muito bem, tá atrapalhando os coleguinhas. A A8 falou uma coisa que eu queria que vocês ... A8 você falou ... eu queria que vo ... Você falou da fala do A6?...” 
 Afirmação com justificativa 
18. A8: “Que num podia sempre colocar na medida porque, às vezes tava sem  pressão no meio do tubo, aí jogava até na mesma medida, só que não caía dentro do tubinho, tinha que fazer bastante pressão, tinha que jogar água direto.” 
19. P: “Tinha que fazer bastante pressão... 
20. A8: “Pra água chegar lá.” 
21. P: “Pra chegar ... pra deixar o copinho ...” 
22. A8: “Cheio.” 
23. P: “O copinho sempre cheio?”   (A aluna confirma balançando a cabeça) 
Afirmação com justificativa citando dado empírico 

Na seqüência acima observamos que o discurso da professora apresentou um padrão elicitativo durante a maior parte do tempo, com exceção dos turnos 5 a 8, em que procurou ajudar o aluno a resgatar o conceito de medida que, provavelmente, já haviam estudado anteriormente. Nesta fase da aula a professora espera que os alunos reflitam sobre suas ações para a geração de novas idéias, daí a predominância do discurso elicitativo.

No turno 2 o aluno descreve como realizou a experiência, indicando uma grande cooperação entre os componentes de seu grupo. No turno 4, outro aluno aponta um dado empírico que julga importante na solução do problema proposto. O aluno 7 apresenta a primeira afirmação com justificativa, relacionando a quantidade de água com o alcance do jato. Apesar de sua fala ser um pouco confusa, A7 busca uma justificativa para o mesmo fato observado por A6, sem citá-lo explicitamente, atribuindo o conceito de força em sua explicação. Até aí parece haver uma concordância sobre a importância do controle do nível de água para a solução do problema.

A fala da aluna A8 no turno 16 deve ser analisada com cuidado. Quando a aluna afirma que nem sempre o nível da água determina a solução do problema, está se opondo a um dado apresentado por A6, mas não fica claro qual a sua posição em relação à hipótese defendida até o momento, a relação entre alcance do jato e a altura da coluna de água. Desta forma sua fala não pode ser classificada como refutação, apesar de ter apresentado um contra – exemplo para confirmar sua oposição. Trata-se apenas de uma oposição referente à validade de um dado empírico. Através da atribuição de um novo conceito, a pressão, a aluna acrescenta novas idéias à discussão sem abalar a importância das explicações anteriores.

Outro aspecto importante desta seqüência é que dois conceitos físicos foram citados pelos alunos. Apesar dos significados dos conceitos de força e de pressão apresentados não estarem muito definidos e provavelmente serem diferentes daqueles considerados dentro da Física, o aparecimento de tais palavras sugere o esforço dos alunos em buscar uma explicação para o fenômeno estudado. Esta atribuição de grandezas físicas à realidade é característica do final da fase de discussão deste tipo de atividade. Embora não exista uma regra de comportamento, nas aulas de conhecimento físico os alunos costumam seguir uma certa seqüência de atitudes que são guiadas pelo professor, passando lentamente de uma fase de descrição de suas ações para outra fase de elaboração de explicações causais. É interessante notar que logo no início da discussão, muito antes da professora perguntar o porquê da solução encontrada para o problema, os alunos já apresentaram afirmações bastante elaboradas, espontaneamente, o que confirma uma necessidade de buscarem explicações para o que fizeram, assim como argumentos para convencer os colegas e a professora (Candela, 1997).
 
 

24. P: “Quem mais quer falar como é que fez? A9?” 
25. A9: “A gente fez assim, é ... cada hora um ia jogando um pouquinho de água e quando tava numa distância maior do ... da medida, daquele tubinho e jogava, jogava mais água com maior ...  com maior é ... mais rápido a água, e quando tava mais perto jogava mais devagar, e jogava menos água.” 
26. P: “No tubo grande?” (a aluna confirma) 
Dado empírico
27. P: “Anran. E olha só, e o quê que ... Acabou A9? E olha só, o quê que aconteceu ... Vocês colocaram ... Quando vocês foram fazendo a experiência, vocês foram colocando água no potinho próximo ao tubo maior, depois  um pouco mais distante e ... e agora quem é que gostaria de lembrar de um momento que não conseguiu colocar água no potinho? Por mais que tentasse ele não conseguia ficar cheio. 
... 

35. A1, conta pra gente quando foi que vocês conseguiram, não conseguiram. Como é que foi? 
36. A1: “... bem aqui na ponta da vasilha, o outro bem aqui. Aí a gente jogava água até a ponta do tubinho, só que batia no tubinho pequeno daqui, não entrava.” 
37. P: “Não conseguiu entrar, e vocês tentaram, né? O quê vocês tentaram, que eu vi vocês fazendo? O quê que vocês tentaram fazer?” 
38. A2: “Nós colocamos água no tubinho branco, é ... branco ...” 
39. P: “É o transparente, né? Ahn, fala. 
40. A2: “... chegar até lá. Quando nós fizemos isto...” 
41. P: “Como é que vocês fizeram pra aumentar?” 

Padrão IRF elicitativo 
42. A1: "A gente tentou colocando as mãos assim (uma em cima da outra formando um tubo), só que não deu. Aí o Mateus, ele teve a idéia de levantar o tubo. Aí a gente levantou o tubo e chegou lá.” 
43. P: “Ah, vocês levantaram o suporte e tudo, e a água conseguiu ...” 
44. A1: “não, sem o suporte, só levantamos o tubinho e ficamos segurando. Daí jogava água e ... e conse...” 
45. P: “Chegava com muita força? ... Como é que é? Vocês repararam como é que chegava? Chegava mais rápido? Demorava pra chegar a água?” 
46. A1: “Demorava um pouquinho.” 
Apresentação de uma hipótese e dado empírico 
47. A3: “Muita água no tubo maior.” 
48. P: “Explica melhor A3, pra seus amigos.” 
Dado empírico 
49. A3: “É que tinha a ver com o nível da água do tubo maior pra ver se chegava ou ultrapassava o menorzinho.” 
50. P: “Ahn. E o que é o nível que você tá contando?” 
51. A3: “É o ... É aqueles números que tem no tubo maior.” 
52. P: “Ah tá. Então é mais ou menos o que A6 lembrou. Muito bom. E agora, quem vai? A10? A11! Conta A11." 
 Justificativa 
 

Na seqüência acima, a relação entre nível de água e distância atingida continua sendo apontada pelos alunos. No turno 25, a aluna A9 apresenta mais um dado empírico exemplificando esta relação. No turno 27, a professora coloca uma nova questão, procurando retomar algumas atitudes dos alunos durante a realização da parte experimental que evidenciam que estes já estavam trabalhando com tal hipótese. A aluna A1 descreve a tentativa de seu grupo de aumentar a altura do tubo para que com um maior nível de água o alcance do jato fosse maior. Os alunos deste grupo estabeleceram outra relação a partir desta hipótese, imaginando que se levantassem o tubo, ao invés de aumentar a altura da coluna de água, o alcance também aumentaria, o que realmente foi constatado. Porém, ao levantar o tubo os alunos associaram as evidências de um fenômeno com a hipótese de outro. A professora procurou inserir a variável tempo na discussão, talvez para mostrar aos alunos a diferença entre os dois fenômenos, porém isto não foi levado adiante. No turno 49, o aluno A3 apresenta pela primeira vez uma afirmação clara sobre esta relação.

A cooperação dentro dos grupos continua sendo citada pelos alunos (turnos 25 e 42). A professora parece contribuir para este clima, além de respeitar o tempo de fala das crianças (turno 27), procura fazer relações entre as diferentes afirmações, assim como complementá-las (turnos 52 e 39, respectivamente).
 

57. P: “...  E quem mais quer falar? Bom ... Você quer falar A4?” 
58. A4: “É sobre o ........... que a gente ia fazer, não era a água que sai com força, era o ar que entrava dentro do tubo, empurrava pra baixo e que ia pro outro potinho.” 
59. P: “Isso! Vocês ouviram? ... O A4 ... Acho que o A4 ...” 
Afirmação com justificativa 
60. A4: “E se tapasse em cima não, não caía mais água.” 
61. P: “Isso. O A4 começou a entrar numa pergunta que eu vou fazer agora. ... A4, você vai repetir isso em cima da minha pergunta, tá bom? ... Olha só, por que é então, A4; por que é então, segunda série, que vocês conseguiam deixar, jogando água no tubo maior, no tubo transparente, vocês conseguiam sempre deixar o potinho cheio de água? Por que é que vocês conseguiam fazer isso?” 
62. A12: “Porque ...” 
63. P: “Por que? Vamos só começar pelo A4, que o A4 começou a falar. Vamos agora explicar o porquê que vocês conseguiram.” 
64. A4: “É ... é que ... quando o copinho tava longe a gente tapava assim, soltava, tapava de novo, soltava, tapava, que ia aos pouquinhos acertando no ... no outro.” 
65. P: “Certo. Então ... Tá certo ... Vamos ver a A8, então. Por que é, A8, que você conseguia?” 
Dado empírico justificando a afirmação 
66. A8: “A gente conseguia porque a gente tava sempre colocando água. Se a ... quando uma vez esvaziou tudo o pote a gente perdeu a pressão da água, e a gente atrasou porque a gente tava querendo encher o copo pra ir colocando e a gente não tava conseguindo, a água tava baixando cada vez mais. Aí a gente teve que começar acelerar pra até transbordar. Aí quando a gente colocou num canto e o outro no outro a gente teve que bater um pouco a mão e às vezes transbordava o tubo ... do ...” 
67. P: Tá certo A8 ... E você A6, por que?” 
68. A6: “Eu vou falar um pouco diferente professora.” 
69. P: “Ahn.” 
Afirmação com justificativa 
70. A6: “É por causa que... Se a gente tapar a ponta do tubo a água não vai sair porque não entra ar lá dentro pra ela poder sair. Então se a gente deixar a ... assim aberto, o ar, ele entra e se mistura com a água pra ela poder sair da, do tubo.”  Afirmação com justificativa 
71. P: “Estão vendo o que o A6 falou? Muito bem A6 ... Espera um pouquinho. Calma. Ó A6, o A2 vai continuar a sua idéia.” Hipótese
72. A2: “O ar, ele se mistura com a água e dá mais pressão pra água sair, porque se tampasse não ia entrar ar e não ia sair a água por causa que ela ia estar sem pressão.”  Afirmação com justificativa juntando duas idéias: a importância da presença de ar e necessidade de pressão 
 
Nos turnos 58 e 60 o aluno A4 acrescenta uma nova variável à discussão, a presença de ar, apresentando um dado empírico que justifica sua conclusão. A partir daí, outros colegas começam a fornecer justificativas em apoio, enquanto idéias já discutidas também continuam a ser defendidas. Na fala 66, a aluna 8 continua defendendo sua idéia sobre a necessidade de uma pressão para que o jato chegue ao alvo. O aluno 2 incorpora em sua explicação tanto a fala de A4 quanto a fala de A6, justificando a saída da água através da presença do ar e também de uma "pressão". É importante observar que os alunos apresentam o conceito de pressão de formas variadas, o aluno A2, por exemplo, cita a pressão como o resultado de uma mistura entre ar e água, que talvez esteja relacionado às suas observações cotidianas da presença de gases nas garrafas de refrigerante. Como já citado anteriormente os conceitos são empregados espontaneamente pelos alunos na busca de uma explicação para o problema, porém não há uma especificação detalhada de seus significados, que por não terem sido estudados antes da discussão costumam diferir dos considerados dentro da Física.

Até aqui, a predominância de um padrão IRF elicitativo indica uma aceitação das diferentes idéias dos alunos por parte da professora. Além disso, a cooperação entre as crianças continua sendo incentivada para a formulação de argumentos (turno 71). Quando a professora muda o tipo de questão, passando de uma requisição de como os alunos resolveram para o porquê das soluções apresentadas, espera-se que estes caminhem para a elaboração de uma explicação causal, incentivando-se assim a geração argumentos mais completos.
 

73. P: “A pressão ... Ahn ... E como é que a gente viu, então, essa pressão que vocês? ... Por que  é que tem essa pressão? Como é que vocês percebiam essa pressão? 
 (ninguém se manifesta) 
74. P: “Ahn ... Por que A16? Hein? A1? É a A1 que vai falar? Porque tinha pressão?” 
75. A1: “A pressão, ela ... Quando a gente jogava água, a água ela levanta e aí tinha uns números escritos, assim no tubinho, e aí tinha a pressão da água cada vez que ela ia subindo.” 
76. P: “A pressão ...” 
77. A1: “Ia abaixando.” 
78. P: “... a pressão, ela ... Quando a pressão aumentava?” 
(A gravação é interrompida.) 
79. P: “... mais devagarzinho.” 
Afirmação com justificativa relacionando a pressão com a quantidade de água 
80. A1: “Quando colocava a água de pouquinho em pouquinho, aí a água ia saindo só de pouquinho.” 
81. P: “Certo ... A11 vai ... Agora só... A11, vamos pegar aqui, só um pouquinho antes da A11. A13, eu queria que você falasse um pouquinho da sua idéia que você quer falar agora. Vamos A13.” 
 Dado empírico relacionado à vazão 
82. A13: “A gente tentava colocar depressa assim a água pra tentar chegar até lá, mas, às vezes, não dava, então .... aí a gente foi mais um pouquinho assim e deu pra chegar até lá. A gente percebeu que quanto mais a gente ia colocando mais água descia, então a gente tinha que colocar bastante pra ... num ... pra alcançar até lá.” 
(A gravação é interrompida.) 
83. A11: “A gente queria inventar outro, a gente queria pôr mais perto...” 
84. P: “Mais perto...” 
85. A11: “... do tubinho.” 
86. P: “O potinho...” 
87. A11: “... do tubinho maior.” 
88. P: “... próximo ao tubo. Ahn.” 
89. A11: “Mas a gente ...” 
90. P: “Aí a professora foi lá e pôs mais próximo. Ahn, e daí o que aconteceu A11 ?” 
Dado empírico relacionado à vazão 
91. A11: “Aí a gente tava pondo, tinha que pôr de pouquinho porque se não a água passava do tubinho menor. E aí não dava pra encher o tubinho inteiro.” 
92. P: “Tá vendo que a A11 falou? Então A11 dis... Então o que aconteceu... Por quê  que a água ... Quando o potinho estava mais próximo ao tubo maior, ao tubo, por que a água saía mais devagarzinho? Como é que vocês faziam pra chegar ao copinho? O quê que vocês tinham que fazer?” 
93. A11: “Tinha que pôr é ... um pouquinho de água e ir jogando devagar.” 
94. P: “Jogando devagar e pondo um pouquinho de água. É A17, foi assim que aconteceu?” 
95. A(?): “Professora, professora.” 
96. P: “Ahn? Certo. A6.” 
Dado empírico relacionado à vazão
97. A6: “Era a mesma coisa ... Eu ia falar ... Eu vou catar uma idéia da A13. Ela falou ... Eu ... É.... A água, quando a gente põe todo o tubinho, no tubinho todo, ela vai mais próximo, mais rápido.” 
98. P: “Quando ... Como é que é A6? Sabe o que é? Tá um pouquinho de barulho junto. (...)” 
Dado empírico apoiando turno 82
99. A6: “A... Quando a gente enche o, aquele tubinho branco, todo vem mais pressão dentro da água pra ela poder atingir mais próximo ao tubinho que está longe.” 
100. P:  “Isso. Como é que você vê esta pressão? Quer dizer, como é que mostra que existe esta pressão, A6? Como é que a gente vê que tem essa pressão que o A6 falou, pra conseguir alcançar o potinho de água? Como é que a gente via essa pressão? O que acontecia?” 


Ninguém se manifesta. 

Afirmação com justificativa relacionando pressão, nível de água e alcance 
 

Na seqüência acima, através de um padrão do discurso elicitativo, a professora procura levar os alunos a uma explicação causal para a pressão citada por eles. A aluna A1 estabelece uma relação entre pressão e nível de água, porém em seguida afirma que a pressão diminui com o aumento de água (turnos 75 e 77) não correspondendo à expectativa da professora. Apesar disso, o padrão elicitativo é mantido e para tentar explorar o assunto de outra forma a professora inverte a pergunta (turno 78).

O principal tema da discussão era a variação do alcance do jato de água com a variação do nível de água até o turno 80, em que a aluna faz uma referência à variação da vazão de água de acordo com o nível. Este tema já havia sido citado sem que fosse levado adiante no turno 25. A partir do turno 80, vários alunos manifestam-se apresentando dados relacionados ao tema até que o aluno A6 apresenta, no turno 97, uma relação entre nível de água e vazão e, no turno 99, uma relação entre nível de água, pressão e alcance. É importante notar este aluno cita explicitamente o emprego de uma idéia da colega, evidenciando mais uma vez uma cooperação na construção de argumentos.

Observamos que afirmações e dados que inicialmente apareciam isolados nas falas dos alunos vão aos poucos sendo relacionados por eles numa tendência de integração. Apesar disso, as explicações ainda são muito confusas estando longe da elaboração de uma síntese de idéias.
 

105. P: “Quando a pressão era maior, quando a pressão era menor? Quando a gente via isso? A19, A20, eu queria que vocês falassem. Quando a gente via isso? Eu queria todo mundo falando. Todo mundo pensando sobre o problema. Hein? Ahn? Olha, mas são sempre os mesmos falando, eu queria outros, queria a A21... “ 
... 
(Silêncio) 
106.  P: “Vou voltar a falar. Olha só, vocês falaram pra mim, né. A22? ... Vocês estão contando pra mim que ... O quê que aumentava? Que era? Por quê que a água chegava, a gente conseguia fazer a água num certo nível do tubo, nós conseguíamos fazer chegar no potezinho, deixá-lo sempre cheio. Como é que a gente conseguia isso?” 
Silêncio. 
107. P: “Como gente? A gente já falou! Como é que a gente conseguia isso?” 
108. A8: “Enchendo até o nível direto.” 
109. A11: “Enchendo o copinho, enchendo de água.” 
110. P: “Enchendo e deixando sempre no mesmo?...” 
111. A11: “Quantidade.” 
112. P: “Na mesma?...” 
113. A(?): “No mesmo nível.” 
114. P: ”No mesmo nível. Muito bem. Agora eu queria saber por que acontece isso? Porque?” 
Silêncio. 
115. P: “Vocês já falaram várias vezes. Porque? Porque? Por que A14?” 
116. A14: “.......................... a pressão é igual, é ...” 
117. P: “Existe uma pressão? E como é que você med ... Como é que era essa pressão? ... Você via essa pressão ... Quando essa pressão era maior, quando essa pressão era menor?” 
118. A(?): “Pelo nível d’água.” 
Padrão IRF avaliativo
119. P: Pelo nível da água?! Vamos ver o 15  aqui. Qual ... Como  é que acontecia? Hein, A15? Ah, agora ele ficou com vergonha. Mas vamos lá A15.” 
120. A15: “O que?” 
121. P: “O que você ia falar pra mim? Você começou a falar.” 
122. A15: “Eu falei que quando a água fic... quando a água ia numa distância menor era maior.” 
123. P: Quando a água ia numa ... Isso. E quando a água ia numa distância maior quê que você tinha que fazer?” 
124. A15: “Tinha que esperar um pouquinho pra não ultrapassar e colocava mais.” 
125. P: “Colocava ... Mas você tinha que colocar no tubo mais água ou menos água? Pra ir numa distância maior quando o potinho tava mais longe.” 
126. A15: “Mais água.” 
127. P: “Mais água. Isso. E a água, então, ia mais devagar ou com mais força?” 
128. A(?): “Mais devagar.” 
129. P: “Ahn?” 
130. A15: “Não reparei.” 
(Alguém fala alguma coisa.) 
131. P: “Ahn?” 
132. A(?): “Mais devagar.” 
133. P: “Mais devagar, quando a gente ... Quando ela tava mais distante, a água ia mais devagar? Não, A3? Como é que ia?” 
134. A3: “Mais forte.” 
135. P: “Ia mais forte. Ia mais forte, né? Quando é ...” 
136. A3: “Porque a pressão aumentava.” 
Padrão IRF elicitativo 
137. P: “Porque a pressão aumentava. Isso. E quando é que ela ia mais devagar, a água?”  Justificativa 
138. A3: “Quando a ... o nível da água abaixava e assim a pressão não pegava muita força, ela não ia tão longe.” 
139. P: “Isso.” 
140. A10: “Pegava baixinho.” 
141. P: “Ahn?” 
142. A10: “Pegava assim baixinho e ia diminuindo mais a força.” 
143. P: “Ia diminuindo. Certo.” 
Afirmação com justificativa relacionando nível de água, pressão e alcance
 

A partir do turno 100, as perguntas da professora tornam-se um pouco confusas e os alunos param de participar. O discurso torna-se avaliativo no turno 106, quando a professora procura retomar tudo que já foi discutido para que os alunos voltem a participar e possam buscar uma síntese. No turno 138, A3 apresenta uma relação entre pressão, nível de água e alcance confirmando uma tendência de integração das diversas idéias, porém ainda mistura os conceitos de forma confusa.

 

Conclusões

A classificação das argumentações não foi fácil, a fala dos alunos na maior parte do tempo era extremamente confusa, não ficava claro se um aluno estava se dirigindo à fala do outro ou não. O turno 16, por exemplo, uma oposição acompanhada de um contra – exemplo, poderia ser classificado como refutação, não fosse a sutileza de que a aluna se opunha ao dado apresentado pelo colega e não à hipótese que resultava deste dado. Foi necessária uma análise exaustiva das enunciações, procurando identificar os principais aspectos da experiência a que estavam se referindo em cada momento, para a atribuição de um nível de qualidade para as argumentações.

Os alunos fizeram um amplo uso de dados empíricos, sendo que nenhuma teoria havia sido oferecida previamente para que pudessem fazer relações a conhecimentos básicos. Considerando a faixa etária das crianças e a ausência de qualquer contato formal anterior com o tema estudado, o número de afirmações com justificativa obtido foi elevado. A atividade de conhecimento físico pôde estimular a argumentação dos alunos. Além de apresentarem muitas afirmações com justificativas, relacionando-as aos dados obtidos, os alunos elaboraram hipóteses a partir de suas conclusões (turno 42) e o problema proposto estimulou-os não apenas a solucioná-lo, mas também a tentar variações (turno 83). Da mesma forma, a predominância de um padrão IRF elicitativo contribuiu para a apresentação de diversas idéias por parte dos alunos. O incentivo a uma atitude de cooperação esteve presente em muitas das falas da professora (turnos 17, 27, 52, 71), em que esta, não só pedia aos alunos que ouvissem os colegas, como também procurava respeitar o tempo de resposta de cada um (turno 27). Além disso, através do padrão elicitativo, a professora relacionou falas semelhantes, retomou na discussão as ações dos alunos durante a fase experimental e re - elaborou questões, propiciando aos mesmos uma maior reflexão sobre os dados apresentados.

A atribuição de conceitos nas explicações, logo no início da discussão, já denunciava o empenho dos alunos em buscar justificativas. Inicialmente, vários aspectos do problema estudado foram sendo apresentados de forma isolada, numa espécie de conversação cumulativa, segundo classificação de Mercer (1997). No transcorrer da discussão, tais aspectos, que não eram competitivos, mas sim complementares, foram sendo incorporados nas falas de diferentes alunos, havendo pequenas sínteses. Observamos que as crianças estavam atentas para o que os colegas falavam, assim como eram incentivadas a isso por parte da professora (turno 71).

Em um estudo anterior sobre a argumentação (Capecchi e Carvalho, 2000), a partir de outra atividade de conhecimento físico, com crianças na faixa etária de 9 a 11 anos, encontramos um resultado semelhante. Porém naquele caso, após a discussão do problema resolvido e a formulação conjunta por toda a turma de uma explicação para o fenômeno envolvido, a discussão se estendeu para o cotidiano. Enquanto estavam presas ao problema resolvido em aula, as argumentações permaneceram no nível 1, embora vários aspectos do fenômeno fossem levantados pelos alunos, suas falas eram complementares, como no episódio analisado neste trabalho. Quando a discussão partiu para uma aplicação das conclusões obtidas na discussão para o cotidiano, o quadro mudou. Afirmações competitivas apareceram, incluindo uma refutação.

As atividades de conhecimento físico envolvidas nestes estudos apresentam como principal característica um direcionamento da atenção dos alunos para as variáveis relevantes do fenômeno estudado. Tendo sido desenvolvidas com o objetivo inicial de atender ao ensino de crianças pequenas, estas atividades não visam a geração de conflitos cognitivos. Uma oportunidade rica para a elaboração de hipóteses e a experimentação das mesmas é oferecida aos alunos, porém a solução do problema é única e as variáveis envolvidas são visíveis de modo que os alunos possam observá-las sem a possibilidade de dúvidas. Desta forma, no caso em que a discussão final fica presa apenas ao problema realizado é difícil ou praticamente impossível que opiniões contrárias surjam entre os alunos. O máximo que pode acontecer é uma evolução das explicações através da contribuição de diferentes falas, porém um argumento completo, com refutações ou qualificadores é muito raro.

Embora o padrão discursivo predominante em aula tenha sido o elicitativo, nos momentos em que algum conceito já estudado precisava ser retomado e também no final da aula em que havia uma necessidade de sistematização das idéias levantadas o padrão avaliativo prevaleceu. Este fato vai de encontro às observações de Mortimer e Machado (1997), que apontam a alternância de padrões IRF em sala de aula de acordo com os objetivos da discussão. O questionamento da professora, mesmo quando solicitando apenas uma descrição da realização da atividade, não só proporcionou a elaboração de argumentos por parte dos alunos, como permitiu que uma variedade de idéias fosse apresentada.

Neste episódio, o espaço para a argumentação revelou-se como uma oportunidade para o incentivo à cooperação entre os alunos, incluindo ao mesmo tempo o respeito às diferentes explicações e a autoconfiança para posicionamentos contrários aos dos colegas.

 

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