DISCURSOS DE PROFESSORES DE CIÊNCIAS SOBRE LEITURA[1]
(Science teacher's discourse about reading)
 

Inez Barcellos de Andrade
Programa de Pós-graduação Educação em Ciências e Saúde, NUTES/UFRJ
CEFET Campos - UNIVERSO

Isabel Martins
Programa de Pós-graduação Educação em Ciências e Saúde, NUTES/UFRJ
 
 

Resumo

        Neste trabalho, partimos do pressuposto que os professores atuam como mediadores das práticas escolares de leitura e problematizamos suas práticas, sentidos e representações sobre leitura. Investigamos os sentidos que um grupo de professores de Física, Química e Biologia, que atuam em uma escola federal de ensino médio e técnico, atribuem à leitura. Seguindo um quadro teórico-metodológico identificado como a análise do discurso de linha francesa, consideramos que sentidos, conceitos e concepções de leitura são construídos historicamente, através de discursos produzindo efeitos de sentidos que determinam práticas ideológicas. Nossos resultados mostram que, para esse grupo de professores, não existiram, na sua formação, inicial e continuada, oportunidades de refletir sobre o papel da leitura no ensino e na aprendizagem de ciências. Parece haver também uma associação entre o tipo de discurso e o modo de ler, na qual aos textos científicos são atribuídos sentidos únicos e a leitura adquire um caráter de busca e assimilação da informação.
Palavras-chave: Leitura; Análise do discurso francesa; Professores de ciências
 
 

Abstract

        In this research we start from the assumption that teachers act as mediators of reading practices in school and problematise their practices, meanings and representations of reading. We have investigated meanings constructed by a group of teachers of Physics, Chemistry and Biology, working at a federal technical school. Having French discourse analysis as our theoretical-methodological framework, we considered that meanings, concepts and conceptions of reading are built historically through discourses, which produce meanings that determine ideological practices. Our results show that, for that group of teachers, there were no opportunities during either initial training or on-going education for reflecting upon the role of reading in science teaching and learning. Moreover, there seems to be an association between the type of discourse and modes of reading, so that unique meanings are attributed to scientific texts and their reading are linked to search and assimilation of information.
Keywords: Reading; French discourse analysis; science teachers
 
 

1. Relações entre leitura e ensino de ciências

        É crescente o interesse de pesquisadores do campo da Educação em Ciências nas relações entre linguagem, leitura e ensino. Segundo relatos de Almeida et al (2001, 2000, 1998), ao longo das últimas décadas, cresceu o número de  trabalhos que relacionam a aprendizagem de ciência com a leitura e compreensão de textos científicos. Entre eles encontramos estudos que se preocupam com a estrutura lingüística dos textos, que caracterizam as representações de professores e de estudantes sobre textos relacionados ao discurso científico, que analisam o texto e os contextos de utilização de livros didáticos e que sugerem propostas sobre a leitura como estratégia de ensino.

        Nestes estudos, a leitura surge como um conceito fundamental na análise das interações entre textos e sujeitos e é vista não somente como um meio de organizar os conceitos científicos mas também de construir, amparar, organizar e ampliar as interações sociais entre os professores, seus alunos e a comunidade escolar. (SILVA, 2002, p.72). Sendo assim, atividades de leitura poderiam contribuir para diminuir o distanciamento entre o aluno e o conhecimento científico-tecnológico que muitas vezes,  reflete e reforça uma falta de motivação para seu aprendizado.

        Além disso, a formação do sujeito-leitor passa a ser considerada como um dos objetivos do ensino de ciências (RICON e ALMEIDA 1991):

Bom leitor, o estudante continuará mais tarde, já fora da escola, a buscar informações necessárias à vida de um cidadão, a checar notícias, a estudar, a se aprofundar num tema, ou simplesmente, a se dedicar à leitura pelo prazer de ler. (p.9).
        Outro importante objetivo para o ensino de ciências segundo Wellington apud Silva (2002) é ensinar os alunos a olharem crítica, céptica, porém construtivamente para a ciência, na medida que
(...) um dos objetivos da educação formal é certamente o de capacitar futuros cidadãos a darem sentido e examinarem criticamente os materiais relacionados à ciência que eles encontrarão para ler ao longo de suas vidas após cessar a educação formal. (p.370)
        Finalmente, encontramos nas diretrizes curriculares oficiais (BRASIL, 2000), recomendações no sentido de estimular atividades com textos. Embora nas Diretrizes Curriculares para as áreas de ciências da natureza, matemática e suas tecnologias não apareçam orientações específicas quanto aos materiais de leitura a serem utilizados, na área de Linguagens há recomendações para analisar, interpretar e aplicar os recursos expressivos das linguagens, relacionando textos com seus contextos, mediante a natureza, função, organização, estrutura das manifestações, de acordo com as condições de produção e recepção. (BRASIL, 1998) Embora não haja menção à palavra leitura no texto das Diretrizes relativo às propostas curriculares, subentende-se que esses processos, a saber análise, interpretação, relação de textos com seus contextos etc., podem se dar através da leitura. Nesse sentido, ler, nesse estágio escolar, continua a ser atividade básica para todas as áreas de saber.

        As considerações acima nos permitem estabelecer, portanto, relações entre leitura e ensino de ciências. Neste trabalho pretendemos explorar algumas destas relações e suas conseqüências para o ensino-aprendizagem de ciências. Mais especificamente estudaremos aspectos necessários ao entendimento do papel dos professores como formadores de leitores e mediadores de leitura no espaço escolar, onde se constituem e se constroem sentidos e práticas de leitura.
 
 

2. Objetivos e quadro teórico-metodológico

        Este trabalho tem como objetivo investigar os sentidos que um grupo de professores de Física, Química e Biologia, que atuam em uma escola federal de nível médio e técnico, atribuem à leitura. Neste estudo consideramos que os professores atuam como mediadores das práticas escolares de leitura, instituindo sentidos e modos de ler. Ao problematizar as práticas e representações sobre leitura do professor, pretendemos contribuir para o entendimento do processo de constituição de leitores, já que acreditamos que a forma como os professores concebem e lidam com a leitura é relevante para formação do seu aluno leitor; que aquilo que eles (os professores) lêem tem papel relevante na relação educador/leitor/aluno; e que as leituras dos professores interferem no momento de estimular o aluno a realizar a sua própria leitura. Um pressuposto fundamental de nossa investigação é que esses sentidos, conceitos e concepções de leitura são construídos historicamente, através de discursos produzindo efeitos de sentidos que determinam práticas ideológicas.

        Neste trabalho, utilizamos como dispositivo teórico a Análise do Discurso (AD) proposta por Michel Pêcheux. Esta opção teórico-metodológica se caracteriza por uma perspectiva que procura descrever e analisar os sentidos e suas condições de produção, ou seja, busca explicitar, no discurso, a determinação histórica dos processos de significação. Trata-se de uma teoria crítica que apresenta uma concepção de história não como uma somatória de dados, mas como resultante de fatores sociais que reclamam sentidos, produzem e redimensionam novos sentidos, valores e comportamentos entre os homens, sendo a linguagem, o processo discursivo, seu elemento constitutivo. A história assim é produzida através de um processo coletivo de interação, interlocução, novos sentidos, novos significados que vão sendo produzidos, contrapondo-se aos velhos e redimensionando os novos. O homem, ao falar, materializa sua história, a história do seu grupo social.  Em outras palavras, há uma relação necessária entre a linguagem e o contexto de sua produção. Assim, a linguagem, através dos processos de interação e interlocução, é concebida como elemento fundamental na constituição e desenvolvimento do homem. O homem, ao falar, se filia a redes de sentidos e isso não é aprendido, é realizado através da ideologia e do inconsciente. Essas filiações se dão através de gestos de interpretação na relação da língua com a história. (PÊCHEUX, 1997)

        Assim, a linguagem para a AD é produto do trabalho social e histórico dos homens num processo de interação social/verbal, mediação que age e transforma. É através dela que o homem estabelece uma relação permanente com a realidade natural e social. Concebemos aqui, tal como Orlandi (1996b) o discurso como o local onde as práticas sociais são materializadas na linguagem, uma vez que o discurso dispõe de formas de apropriação pelo indivíduo falante, do universo da língua, implicando a participação do sujeito na linguagem. Nesta relação, linguagem e sociedade se constituem mutuamente num processo conflituoso e contraditório. Desta forma, a linguagem deixa de ser considerada apenas como “meio de comunicação”, enquanto instrumento utilizado com o objetivo de comunicar e transmitir informações, passando a ser considerada como mediação, como processo de produção de sentidos.
Em resumo, para a AD, o discurso é um objeto histórico-social ideológico e a sua historicidade se dá através de sua materialidade, que é lingüística. O seu objetivo é detectar, através das marcas inscritas no discurso, o seu processo histórico social e os efeitos de sentido aí presentes. Para compreender o modo de funcionamento, os princípios de organização e as formas de produção social do sentido é preciso compreender o processo de produção dos discursos: a situação, o contexto e os interlocutores envolvidos.

        A diversidade dos discursos produzidos é resultante das relações de força dos grupos em confronto que lutam pela legitimidade de seus discursos. Nessa perspectiva, os discursos são construídos num processo coletivo-dialógico, apropriados, reificados e rearticulados por aqueles que detêm o poder, transformando-os em espaços de produção estáveis, sem contradições ou significados múltiplos. Confronta-se a univocidade lógica da história e a literalidade dos sentidos. (ROURE, 1996) A linguagem, enquanto produção de sentidos, cristaliza sentidos, mas também transforma.
Assim, este estudo pretende também contribuir para o entendimento dos sentidos que professores constroem para a leitura mas também para a desconstrução de discursos que, reificados, tornam-se verdades, construindo um imaginário que o professor não lê, que nas aulas de ciências o professor não utiliza atividades com leitura com seus alunos, que ele não seria um formador de leitores.
 

3. O estudo empírico

        O estudo empírico se realizou em duas etapas e envolveu dez entrevistas individuais com professores de física, química e biologia de uma escola federal de Ensino Médio e Técnico no norte do Estado do Rio de Janeiro.

        Em uma primeira etapa realizamos um estudo exploratório através de entrevista individual semi-estruturada com quatro professores de ciências de física, química e biologia do ensino médio buscando uma aproximação com o objeto de estudo para que pudéssemos delinear com mais clareza as questões norteadoras da pesquisa. Buscamos identificar o perfil dos profissionais no que diz respeito à informação e tipo de suporte que utiliza, como costuma fazer para manter-se atualizado; tipos de textos lidos e modos que utiliza para aproximação de um texto; experiência do uso de textos em sala de aula; além da sua visão sobre a biblioteca e a relação com a leitura. Em uma análise preliminar verificamos a necessidade de reformular o roteiro de entrevista para dar um enfoque mais direcionado para a questão da leitura, considerando suas representações sobre leitura e leitor.

        Com o roteiro de entrevista semi-estruturado reelaborado, realizamos, então outras seis entrevistas na mesma escola federal onde os professores (dois de física, dois de química e dois de biologia) lecionam e a pesquisadora atua como bibliotecária. As entrevistas tiveram a duração de, aproximadamente, duas horas cada uma e foram posteriormente transcritas para possibilitar a análise do material textual. As entrevistas aconteceram no espaço escolar (na sala de aula, na coordenação de curso, no laboratório ou na biblioteca), o que configura o contexto imediato que constitui os discursos analisados nesta pesquisa.
Os seis professores entrevistados na segunda etapa possuíam um perfil homogêneo no que diz respeito a sua formação: possuem formação superior em alguma área técnica. Apenas um deles cursou a Licenciatura (em Física). Todos exercem unicamente a atividade docente e possuem de 10 a 25 anos de experiência no magistério.  Nossa investigação foi organizada a partir de duas questões principais:

        Como o professor percebe a sua atuação no processo de leitura?

        Quais e como são os modos de leitura utilizados pelo professor?

        Estas perguntas foram desdobradas em várias outras no desenvolvimento das  entrevistas. Procuramos conduzir a entrevista em quatro grandes blocos. Inicialmente pedimos ao professor que se identificasse, que falasse de sua formação, tempo de atuação como docente e outras atividades exercidas, disciplinas que leciona. Perguntamos também acerca de suas idéias sobre o que significa ensinar ciência. O segundo bloco tratava sobre leitura, sua importância e papel. No terceiro bloco perguntamos sobre os modos de leitura efetivados pelo leitor, a descrição de sua formação como leitor, como a leitura faz parte do seu cotidiano, sobre a importância atribuída à leitura na formação. No quarto bloco questionamos suas leituras com ênfase na atuação docente, para preparação de aulas, em atividades com alunos, sobre que imagem de aluno leitor ele possui ao trabalhar com leitura e sua opinião sobre como os alunos percebem atividades de leitura. Apresentamos também trechos de falas de professores descrevendo atividades de leitura  em suas salas de aula (oriundos das entrevistas realizadas na primeira etapa) e pedimos que os entrevistandos as comentassem. A entrevista encerrava-se com uma pergunta acerca da importância atribuída pelo professor à biblioteca e sobre sua relação com atividades de leitura.
 

4. Procedimentos de análise

        Uma primeira leitura das transcrições das seis entrevistas resultou num primeiro conjunto de dados. Ao utilizar o referencial da AD temos que o objeto de análise é o texto, não importando sua extensão. Segundo Orlandi (1996):

Enquanto unidade pragmática, que se constitui na interlocução, não importa a extensão do texto: pode ser uma palavra, um sintagma, um conjunto de frases (escrito ou oral), o que importa é que funciona como unidade de significação em relação á situação.”  (p.139)
        Na operacionalização da análise, a AD trabalha com a noção de recorte, sendo estes realizados na situação de interlocução, tendo em vista as suas condições de produção. O recorte é uma unidade discursiva. Por unidade discursiva, entendemos fragmentos correlacionados de linguagem – e – situação. Assim, um recorte é um fragmento da situação discursiva. (ORLANDI, 1996, p.139)

        Para AD, a delimitação, o recorte dos discursos escolhidos, só se realiza durante a própria análise. Em relação à constituição do corpus discursivo, este se dá concebendo as condições de sua produção. No nosso caso optamos por reunir esses recortes sob três aspectos, embora algumas questões da entrevista pudessem ser enquadradas em mais de um aspecto. São eles: modos de leitura, sentidos da leitura e as imagens de professor leitor. Para efeito de ilustração de nossos procedimentos de análise neste trabalho apresentamos brevemente cada um destes aspectos. A seguir, apresentamos a síntese dos resultados seguida de uma discussão acerca de suas implicações para a educação em ciências. Visando a uma melhor identificação dos professores de ciências, quanto a disciplina de atuação, optamos pela codificação Q1 e Q2 (Química), F3 e F4 (Física), B5 e B6 (Biologia).
 

4.1 Modos de leitura do professor

        Na dinâmica do processo de leitura estão incluídos vários elementos. Um deles, a relação entre os interlocutores, constitui um dos componentes do contexto. Outro, igualmente importante, refere-se aos modos de leitura possíveis, propostos ou pressupostos. Estes modos indicam diferentes formas de relação dos leitores com o texto. São os elementos em torno dos quais são organizadas as leituras. É também parte integrante deste processo a interação que se estabelece entre o autor e o leitor em sua relação como sujeitos. (ORLANDI, 1999)  Buscamos assim, compreender a forma como o professor de ciências se representa no processo de leitura, considerando as suas condições de produção, isto é, o contexto no qual se ela dá e os seus objetivos.
 
 

4.1.1 A busca do sentido no texto

        Um primeiro grupo de fragmentos discursivos descreve atividades de leitura nas quais o texto é considerado como unidade semântica cujo sentido deve ser reconhecido pelo leitor.  O modo de leitura referenciado aqui é a busca da compreensão dos dados referenciais do texto conforme mostrado nos recortes a seguir.
 

E aí quando eu estava na faculdade eu já entrei com uma visão de que ... quando você entra na faculdade o que voce tem que estar visando não é aquela prova, não é aquela nota e sim... a... o processo final dos cinco anos... ou seja eu  tenho que estar no final do 5o. ano com ... o que a gente fala hoje... com habilidades e competências suficientes pra poder exercer, né? O meu papel dentro da ... então eu tenho que ter capacidade ... não é simplesmente eu tirar uma nota , tirar um 10... tirar...é eu realmente eu assimilar alguma coisa ... que eu vi que... para eu assimilar não bastava simplesmente eu assistir a aula e decorar alguma coisa que eu anotava  no caderno ... eu tinha que ter um conhecimento mais profundo... então eu sempre tive essa visão de que boa parte desse conhecimento ele ter que ser conquistado onde? Nos livros.//(B5:36)
Não é tudo mais boa parte estaria em alguma... em algum./ E aí vem essa coisa da busca, sempre buscando uma  fonte. Por que? Porque os livros eles não são completos. Então a gente tem que estar sempre buscando um livro aqui um livro ali pra você poder ter uma formação mais...(B5:40)


        O professor aqui relaciona as leituras com a sua formação acadêmica, com as aulas freqüentadas e assistidas. Demonstra uma valorização do livro, enquanto instrumento para transmissão do conhecimento, que corresponde à valorização que este veículo possui na sociedade contemporânea letrada. No entanto, refere-se à incompletude presente, tanto nas aulas como nos livros, ao afirmar que é preciso estabelecer uma relação entre eles para que se dê “uma formação mais...” completa. A sua experiência de modo de leitura, que busca o conhecimento através da leitura, como assimilação, conquistada de forma autônoma poderia ser considerada, apesar da busca em variadas fontes, uma leitura parafrástica, já que demonstra procurar um só sentido para o que lê. Sua tarefa seria procurar os sentidos do texto, como se estes fossem fixos e independentes de qualquer condição de produção de sentido por parte do leitor.
 

Então. O filósofo Pietro Ubaldi eu gosto muito de ler. Não só ler, mas estudar mesmo. Eu... no livro dele eu estudo. Não leio apenas. Eu... volto ao parágrafo, faço anotação no livro de frases que eu não consegui entender, algumas observações eu coloco... (Q1:26)


         Na fala acima o professor parece fazer uma distinção entre ler e estudar. Na distinção entre ler e estudar percebemos o deslize do dizer, da palavra que fala com outras e remete a efeitos de sentidos que se deslocam. Ler, nesse caso, seria decifrar o código lingüístico. Estudar iria além disso, seria tentar entender o que o autor quis dizer, rever, buscar a relação do texto com seu referente, ao procurar entender o que o texto diz de determinado assunto. No equivoco o professor restringe o sentido de leitura a decifração dos vocábulos, ao domínio da língua e ao se referir a estudo ele amplia esse significado, na sua relação de leitor com o texto e na busca de entendimento do que o autor disse.

        Um outro ponto ressaltado diz respeito a tipologia dos discursos. Estes seriam constitutivos dos sentidos produzidos e estariam relacionados a uma determinada concepção de linguagem distinta. É o tipo de discurso que recorta o contexto de situação e estabelece o domínio da significação do que se diz. (ORLANDI, 1996, p.230)  Os modos de interação do leitor com o texto estariam, assim relacionados com a tipologia do discurso, conforme apontamos nas falas abaixo.
 

Revistas. Revistas científicas me atraem muito. Revistas científicas me atraem muito. Agora revistas assim... é... mais amenas, ou seja, só de curiosidades, de política, de comportamento não me atraem tanto assim não. Revistas mais... é... no sentido... interessante, né? Revista é  mais científica mesmo. É que eu tenho maior... maior atração. (Q1:48)
(...) Eu gosto muito de leitura no sentido da pesquisa, da pesquisa ser até histórica mesmo na...na ... no sentido da coisa. (Q1:58)
((...)) revistas técnicas especializadas. É são textos de produção tecnológica boa...e são textos que voce, né? pode fazer uma interação sem medo de estar lendo alguma coisa incorreta ali, alguma coisa de colocações indevidas (Q2:24)


        As revistas científicas são publicações que divulgam o conhecimento científico produzido. Os professores de ciências se referem a essas publicações, como veículos de saber legítimo que possui um status elevado. No contexto escolar, principalmente nas ciências, as informações que circulam são originárias do conhecimento científico produzido por pesquisadores. O professor se refere a esses textos como expressando conhecimentos “verdadeiros” (pode fazer uma interação sem medo de estar lendo alguma coisa incorreta ali). Isto pode revelar uma soberania desse conhecimento, da sua objetividade e veracidade, fruto de uma ideologia que permeia a produção do conhecimento científico. (SILVEIRA, 1990). Nesse caso, o professor eleva o status do discurso científico, delineando um modo de leitura no qual o percurso de significação do texto é previamente determinado.

        Já nas falas abaixo, apesar da não especificação da tipologia do discurso, o modo de ler utilizado também diria respeito à apropriação do conteúdo referencial do texto. A característica mais comum desse modo de leitura é a possibilidade de reprodução das informações ou dados dos textos através de resumos, anotações, etc. Busca-se recuperar o sentido do texto. É uma forma tradicional de compreensão da linguagem no qual ela é associada a um instrumento do pensamento, a uma forma de comunicação e transmissão de informações e de conhecimentos, como se o texto fosse transparente, passível apenas de uma forma de significação. Por isso, a leitura esta relacionada à compreensão ou apreensão de um sentido prévio. (ZAPPONE, 2001). Assim, o leitor é considerado proficiente quando é capaz de aprender e reter tal significado.
 

Voce dá uma mesma questão o aluno desenvolve uma questão de uma maneira e de outra, então isso não é claro, né? O que erra e o que acerta. O que erra é porque realmente não conseguiu entender o que estava lendo e o que acerta é que conseguiu realmente entender (F4:120)
((...)) teve uma vez que eu fiz um trabalho de uma disciplina chamada instrumentação e controle, era sobre válvulas solenóides. O trabalho foi todo manuscrito, feito à mão. ((...)) Mas o professor  gostou do meu trabalho, por quê? Porque eu fui na fonte, na fonte direta. Consegui tirar aquilo que o professor queria é...é...aquilo que o professor queria. ((...)) (Q1:58)


        Destacamos a seguir um outro modo de leitura que também considera a existência de um sentido prévio no texto, na medida que relaciona leitura mais exclusivamente com aquisição de conhecimentos. Este modo pressupõe que a atividade de leitura dependeria exclusivamente do próprio texto, que seria responsável por apresentar o máximo de informações com o máximo de clareza. (PENTEADO, 1977) Ao leitor caberia apenas a tarefa de procurar os sentidos dos textos, como se estes fossem fixos e independentes de qualquer condição de produção de sentido por parte do leitor. Essa concepção considera o leitor como alguém que apenas coopera ao recuperar o sentido que está contido na forma do texto.
 

E ai eu sentava ali o pegava o livro e lia, né? duas, tres vezes por dia, o livro de química, de biologia... e aí eu fui assimilando aqueles conhecimentos  em cima de física, química e biologia. (B5:36)

Aí eu peguei mandei fazer uma leitura sobre determinado capítulo que era mais teórico, né? E dentro... dentro daquilo ali eu joguei algumas perguntas, mas era uma parte teórica ((...)) (F4:96)


4.1.2 Quando os sentidos são outros

        Algumas falas se afastam da percepção de leitura como formas de assimilação de conteúdos veiculados por textos e passa a apresentar outros modos de leitura que rompem com a idéia do sentido único e prévio do texto e que deve ser reconhecido pelo leitor.
 

((...)) Leitura de  jornal eu gosto muito.Eu gosto muito. Gosto muito de ler mesmo. (Q1:36)
((...)) Na questão do jornal. Na questão da re...da...do...do melhor jornal que eu gosto de...que eu acho...eu gostava muito do Jornal do Brasil... eu achei que o Jornal do Brasil ficou meio assim...meio, meio pobre, com poucos artigos.. Agora, o jornal Folha de São Paulo é espetacular...é...sobre o ponto de vista dos artigos. Tem bons artigos  políticos, bons artigos econômicos e tem bons artigos científicos também. Ele é um jornal muito opinativo. Mas como eu não acredito que existe neutralidade, não sei de quem que a Folha de São Paulo está à serviço, mas não acredito que existe neutralidade não. Os meios de comunicação eu tenho a impressão que eles sejam  tão neutros não. Tem alguma coisa por trás. Mas aí também não pode ficar pensando nisso se não a gente não lê jornal nenhum. (Q1:40)
Eu acho que a leitura do jornal dá para... é... é... uma leitura que você vai fazendo do mundo a cada dia, né? (Q1:42)
((...)) o aluno ele tem que criar respostas...então é...eles a partir daquele texto eles montam uma situação para que... como que o aluno resolveria aquela...aquela situação. Como num artigo que eu vi que tinha um carro...um caminhão tanque que derramou um...ácido sulfúrico na estrada e como que uma pessoa que não conhecesse tanto química poderia resolver esse problema crucial que é neutralizar esse ácido sulfúrico que esta derramado na estrada. Então um texto muito bom onde o aluno ao lê-lo, ao interpretar o texto e daí suas conclusões ou criar uma solução para aquele problema. (Q1:70)


        Nessas falas o professor se refere a uma leitura comparativa, isto é, a uma relação do texto com outros textos. Relaciona essas leituras com os acontecimentos do mundo, o dia-a-dia. Pretende estar atualizado e integrado com a realidade. Foram os trechos que mais se aproximaram da leitura polissêmica, que se define pela atribuição de múltiplos sentidos ao texto. O que caracteriza esse tipo de leitura é o estabelecimento de relações entre o texto em questão e conhecimento extra-texto (conhecimento do mundo, do jogo de poder, de outros textos, etc). Isto é identificado tanto na situação da sua própria leitura quanto em situações de atividade de leitura com aluno em sala de aula.

        Um outro exemplo que parece se aproximar da leitura polissêmica é aquele no qual o professor F3 apresenta uma visão que pressupõe uma crítica à estrutura hegemônica da sociedade e contesta formas de dominação estabelecidas. Seria uma demonstração da passagem do leitor não critico para o leitor crítico. F3 menciona Paulo Freire, provavelmente em função do caráter libertário que este representa, já que valoriza o conhecimento de mundo do leitor. A leitura, nesse caso, é uma forma de conhecimento de mundo e emancipação.
 

((...)) Eu na verdade... é...é ... eu gosto de ler , muito... é...é...as vezes você vai e ...e... você não aceita aquilo que esta escrito.
Ai, tipo... Paulo Freire falava, né? Educar dói, né? De vez enquanto você não aceita aquela verdade que é apresentada e você, as vezes, não tem nem como contradizer, nem criticar, mas você não aceita, pronto e acabado. Ta acabado.(F3:50)
         Dentro, ainda, dos textos analisados encontramos também recortes nos quais foi possível estabelecer relações com a abordagem de leitura denominada cognitivo-processual de leitura. Nessa perspectiva a leitura se constitui em uma forma de interação envolvendo leitor/texto/autor, sendo que, de forma específica esta interação se dá entre o leitor e o texto (KLEIMAN, 1997; KATO apud ZAPPONE, 2001). Para isso, o leitor precisa acionar seu conhecimento prévio, formular hipóteses, estabelecer objetivos para  leitura, além de acionar os princípios e regras que tem internalizados para desvendar os aspectos cotextuais (propriamente lingüísticos) do texto. Realizando essas atividades, o leitor poderá compreender o sentido do texto e, conseqüentemente, interagir com seu autor.
Trata-se de uma concepção de leitura que tem como ponto central a noção de interação, bastante ausente nos discursos dos professores sobre leitura. No exemplo abaixo, o elo com a abordagem cognitivo-processual reside na invocação do conhecimento lingüístico e enciclopédico como um elemento importante para a compreensão em leitura:
 
((...)) o aluno, muitas vezes, ele entra numa ciência, numa nova linguagem sem entender a linguagem básica que é o português. Essa é a primeira dificuldade. Segundo, ele entra naquela linguagem sem conhecer ela e achando que é português. Na realidade não é português é uma outra linguagem. ((...)) Ele não sabe que primeiramente ele tem que identificar os conceitos...ter ciência desses conceitos para depois trabalhar.E ai tem uma pratica interessante que voce pode fazer com uma turma que é o seguinte: voce pega um texto, né? Da sua materia e pede para o aluno ler e grifar todas as palavras que ele não reconhece, com o dicionário do lado, e ele... ele primeiro faz uma primeira linguagem e...e interpreta aquilo, escreve, né? Faz um resuminho.  (B5:96)
((...)) se eu leio muito eu tenho muita informação guardada aqui (aponta para a cabeça). Se eu receber informação nova eu vou comparar com essas informações que eu já tenho gravada. ((...)) (B5:114)


        A relação do texto com o para quem se lê é um outro modo de leitura, onde se busca o que é mais significativo neste texto para o leitor, no caso, o aluno. O professor aqui lê pensando no aluno.
 

A minha leitura... é....eu tenho que ler o jornal todo dia. Isso é fundamental.  Ao menos um, um jornal. Eu lendo eu tenho um pouquinho de crítica em relação a isso que esta sendo apresentado. ...E o importante é... é...  leituras,  livros, né? ((...)) Só que eu vou somando para minhas aulas. Eu vou somando para minhas aulas essas leituras. Agora eu comecei ler a Folha de São Paulo para trazer...eu estou lendo mais a Folha de São Paulo para trazer artigo para os meus alunos. Porque eu gosto de discutir o dia a dia deles.... (F3:64)

 ((...)) O aluno de repente lá na sala ele te pergunta uma coisa que saiu há poucos dias ai... ai alguma noticia ai na Internet, mesmo que essa notícia não tenha assim valor científico, mas ele te pergunta. Voce não tem nem como discutir ou discordar, né? Porque, poxa, a gente já não tem tempo realmente e se eu for só ficar pensando que eu não tenho tempo, que eu não tenho tempo e não ler nada ... ai eu to frito, né? (B6:52)


         Nessa perspectiva, o professor é um agente que procura “insumos” para trabalhar a sua leitura e a leitura de seus alunos. Busca recursos em várias instâncias: jornais, revistas, Internet, etc e com a ajuda deles se posiciona e elabora sua aula. Em B6 destacamos um modo de leitura em que objetivamente se busca, confronto e comparação das informações contidas no texto. De acordo com essas falas, a leitura na escola seria trabalhada de acordo com aquilo que para o professor é importante, acontecendo de forma assistemática. Além disso, o professor, mesmo inconscientemente, ao selecionar determinados tipos de textos participa de mecanismos de valorização dos mesmos. Na realidade social do aluno circulam textos diversificados que vão dos jornais, revistas, histórias em quadrinhos, bulas de remédios, outdoors, cartazes e muitos outros que têm sido valorizados na escola buscando uma maior integração escola e sociedade. Os professores de ciência em seu discurso mostram que incluem, em suas práticas de leitura, o contato com esses textos que fazem parte do uso público da linguagem.
O modo de leitura em que se busca a relação do texto com outros textos foi bastante referenciado pelos professores, quando eles se referem a sua própria leitura, ao buscar informações, conhecimento para si próprio e para a sua atividade profissional, enquanto professor e cidadão, não para trabalhar com o aluno. A compreensão da leitura estaria associada à apreensão de um sentido prévio, considerada por Orlandi (1996) como leitura parafrástica. A leitura parafrástica se caracteriza pelo reconhecimento do sentido dado pelo autor é considerada como leitura assimilativa, enquanto que a polissêmica seria uma leitura com alta capacidade individual de imaginação (criativa). (ORLANDI, 1996)
 

E ai eu sentava ali, pegava o livro e lia, né? duas, três vezes por dia, o livro de química, de biologia... e aí eu fui assimilando aqueles conhecimentos  em cima de física, química e biologia. (B5:36)

Voce dá uma mesma questão o aluno desenvolve uma questão de uma maneira e de outra, então isso não é claro, né? O que erra e o que acerta. O que erra é porque realmente não conseguiu entender o que estava lendo e o que acerta é que conseguiu realmente entender (F4:120)


        No entanto, a leitura parafrástica predomina no discurso dos professores. Filiam-se a uma forma de compreensão de leitura que esta associada a apreensão de um sentido prévio.

        No processo de significação, no contexto da leitura escolar, é necessário considerar ainda que há leituras autorizadas para um texto. Existem dois fatores para que estes sentidos se estabeleçam: i) os sentidos se sedimentam de acordo com as condições em que são produzidos; e ii) dada a relação entre os textos, o conjunto dessas relações indica como o texto deve ser lido (ORLANDI, 1999)

        Isto é particularmente presente no contexto dos discursos consolidados que se organizam em torno de sentidos unívocos, como pode ser o caso das ciências naturais e de práticas reguladoras, certificadoras que ocorrem na escola, em particular em cursos de formação técnica.

        A forma como a leitura é trabalhada na escola, na qual a linguagem é tratada como decodificação que busca recuperar as idéias do autor parece ser ainda a mais freqüente para os professores entrevistados e pode estar relacionada com suas experiências como leitores ao longo de seu período de escolarização que no casos dos professores entrevistados, correspondem a cursos de formação de graduação (somente um dos professores possui formação de licenciatura).

        Podemos considerar que a maioria dos modos de leitura relatados estão associados a uma concepção estruturalista, cujo sentido deve ser reconhecido pelo leitor, constituído basicamente por sua referencialidade, tendo um significado específico que precisa ser recuperado pelo leitor no momento da leitura. (PENTEADO, 1977).

        Essa tendência de busca do sentido único para o texto no universo dos professores foi justificado por Zappone (2001) como sendo influenciado pelos fatores que se seguem: i) pela pequena difusão das abordagens acadêmicas de leitura, ii) pelo pouco contato ou familiaridade com textos que tratam da questão da leitura, iii) pela ausência de disciplinas voltadas para a leitura nos cursos onde o professor se gradua. Isto parece ser o caso dos professores de ciências entrevistados neste estudo se considerarmos sua história de formação em cursos eminentemente técnicos, a ausência de discursos sobre leitura nos seus cursos de formação (engenharia, veterinária, zootecnia etc), sua história de atuação profissional no ensino técnico e a inexistência de oportunidade de discussão e problematização do papel da leitura no ensino, no seu cotidiano escolar.

        No entanto, mesmo tendo um modo de ler dominante no qual procura-se o sentido único do texto, é possível perceber outros modos de leitura no discurso dos professores, que, por vezes, rompem com essa univocidade e produzem novos processos de significação, diferentes sentidos. Contudo, esses modos ditos diferentes, em geral não se relacionam a leituras feitas na escola ou para escola, elas sempre se remetem a leituras para outros fins.
 
 

4.2 Sentido da leitura

        Na tentativa de compreender o sentido que o professor atribui para leitura partimos do pressuposto que o discurso do professor estaria atravessado por um conjunto de imagens de leitura que “influenciariam” os sentidos por ele atribuídos à leitura.  Essas imagens de leitura poderiam ser derivadas de pesquisas acadêmicas, imagens de leitura nascidas do “senso comum”, veiculadas pela mídia e pela família e aquelas que circulam no ambiente escolar constituindo assim, um imaginário social relativo à leitura. Em meio a esses diferentes grupos de imagens, o professor de ciências definiria o sentido que atribui para leitura. Esses sentidos aparecem no discurso dos professores e estão presentes na memória constitutiva de sua história de vida. Percebe-se, assim o quanto as práticas sociais são importantes na formação dessa memória e na filiação de sentidos que o professor incorpora.

        Em nossas análises percebemos que eram recorrentes nas falas dos professores, referências ao ambiente de sua formação e sua influência nos sentidos atribuídos por eles à leitura. Um outro sentido aparece na fala dos professores ao se referirem às finalidades da leitura. Por exemplo: a atividade de leitura teria um caráter pragmático que levaria o homem a melhorar a sua condição humana, como algo sempre positivo.
 
 

4.2.1 Diferentes ambientes de formação e posição do sujeito leitor

        Uma das marcas da leitura enquanto prática social pode ser vista se considerarmos os espaços nos quais se dá a formação do leitor. Muitas vezes, eles parecem ter influência no sentido atribuído à leitura. Nos recortes abaixo temos três posicionamentos diferentes em relação aos espaços onde se dá a formação de leitor dos professores de ciências: no ambiente familiar, na escola como aluno e como profissional. Poderíamos colocar os três posicionamentos como : a) uma posição em que o leitor é constituído na família, através da mobilização familiar para inserção no mundo dos textos; b) uma posição que é na escola que se percebe o sentido da leitura já que é ela que prepara leitores, favorecendo sua formação e, finalmente c) o ambiente de trabalho suscita a atividade de leitura, tornando o professor um leitor pela necessidade e compromisso com o aprender para ensinar e com a formação de leitores. Percebemos que o professor se referia a ambientes específicos de formação como leitor, sem necessariamente estabelecer uma relação entre eles. Entendemos, no entanto que essas experiências com leituras em diferentes espaços estariam em interação, constituindo o individuo na sua formação como leitor. Observando os procedimentos de outras pessoas, realizando leitura ou participando de eventos de leitura, aprende-se o que pode ser considerado leitura.

        Na verdade, o sentido de leitura é constituído através de uma história social diversificada de aquisição e de inserção no universo da escrita nas várias instâncias da qual o homem participa. Procuramos, portanto, em nossas análises destacar a natureza dessas possíveis relações.
 
 

4.2.1.1 Na família

 
Olha ... é ... eu acho que foi da criação. Da maneira como a gente foi criado. O pai e a mãe lá em casa eles obrigavam a gente ... a gente ler. ((...))  Então, a gente foi criado... nós fomos criados lá em casa...papai, por exemplo, ele dava ... dava muito presente pra gente em livros, coleção. Enciclopédia ele comprava muito. Ele forçava a gente... a gente... qualquer assunto pesquisar na ... na enciclopédia...lá em casa tinha a enciclopédia ... que era o dicionário Formar. Não sei se você conhece?  (Q1:30)

 ((...)) eu tive um irmão que ele era autodidata, né? Ele lia muito, gostava de ler. Só que ele não tinha paciência comigo (Risos). (B6:16)
((...)) Mas ele lia muito e... eu ouvia ele lendo assim e normalmente lia também, né? Só que as vezes é... é o tipo de leitura dele...ele gostava muito de leitura de eletricidade, de física.  (B6:18)
((...)) Eu gostava do que ele fazia, eu gostava vendo ele ler, da inteligência que pra ele tinha, quer dizer, então eu fui procurando seguir ali e fazer, fazendo esse tipo de leitura (B6:22)


        Nas falas acima o gosto pela leitura é atribuído à formação do hábito desde a infância, através da mobilização familiar para aquisição de competências, disposições e crenças relacionada a usos de textos. No primeiro caso, percebemos que são atitudes que revelam uma valorização dos textos, principalmente como fonte de informação  e de procedimentos para interagir come eles próprio do universo escolar. No segundo caso é na interação com o outro,  através da observação e participação em situações de leitura de um modo mais espontâneo e menos relacionado ao universo escolar que o individuo constrói o sentido do que é ler.

        Na memória desses professores a participação da família, embora percebida de maneiras diferentes é considerada importante para sua formação de leitor. Em ambos os casos a importância da leitura esta relacionada ao desenvolvimento do homem, em vir a ser alguém.
 

Eu gostava do que ele fazia, eu gostava vendo ele ler, da inteligência que pra ele tinha, quer dizer, então eu fui procurando seguir ali e fazer, fazendo esse tipo de leitura (B6:22)


        No interior do grupo familiar os professores, através da vivência de uma rede de práticas, adquirem o conjunto de gestos e habilidades que caracterizam um leitor. Desse modo a “herança” - ou o aprendizado pela familiaridade ou pela “virtude do exemplo” – constitui uma das principais estratégias dos grupos familiares para sua reprodução. (BATISTA, 1998).  De acordo com François de Singly (apud BATISTA, 1998), em se tratando de leitura, a herança ou a transmissão intergeracional é um dos principais fatores responsáveis pela criação do gosto ou da necessidade de leitura: “investimentos temporais, culturais, afetivos na leitura variam de acordo com os investimentos operados nessa prática pelos pais.”

        Nesse caso, o esforço ou trabalho para aquisição das competências e habilidades de leitura se realiza por meio de experiências e da apropriação da leitura e se dá de modo menos controlado socialmente, não tão preso à vínculos institucionais como aqueles típicos do ambiente escolar.
 
 

4.2.1.2 Na escola como aluno

 
((...)) essa coisa em casa de ... lá em casa não foi realmente educado   ... apesar de ter biblioteca, Barsa, né? Sempre teve recurso em termos de leitura muito grande. Meu pai sempre leu muito... é..., mas ... essa coisa da rotina de você ter ali ou o pai ou a mãe sempre com o livrinho debaixo do braço...ou mesmo de incentivando a gente...a um período ... a voce sempre um período, por exemplo...a... a todo dia você sentar ali para ver alguma coisa... a gente não teve isso. Tanto meu pai quanto a minha sempre trabalharam e...e... principalmente meu pai não tinha muito tempo, né? pra ... pra fazer esse trabalho e então isso não ... então isso... isso não foi trabalhado na infância. E...que eu lembro mesmo ... foi de repente  na faculdade ... aonde... quando eu entrei na faculdade eu  já tinha...alias, não. Minto...é... no período de vestibular ...né? Aonde eu a... a ...a estudar ...eu perdi o primeiro ano e eu comecei a estudar mesmo antes de entrar no cursinho... eu comecei a estudar por conta própria e ai eu comecei a estudar só o que me interessava: química e biologia. (B5: 34)


        Na fala do professor a percepção da necessidade de ler se dá no ambiente escolar. Em espaços onde a leitura é a forma privilegiada de obtenção do conhecimento. Atribui as experiências de leitura na escola um sentido bastante pragmático, nesse caso, o objetivo é passar no vestibular.

        O interessante neste discurso é constatar que o professor admite que o processo de inserção na leitura foi tardio, isto é, só ocorreu no período do vestibular. Apesar de não dito, o professor considera que esse não deveria ser o modo de formação do leitor. Na análise do não dito, do subentendido, consideramos na fala do professor a sua colocação de que a sua formação como leitor não foi iniciada na infância e que nesse período é que deveria ter ocorrido “um trabalho” com a leitura. Além disso, ele menciona que o fato de ter tido acesso a biblioteca e ter tido o pai como exemplo não foram suficientes para que ele se tornasse leitor.

        O não dito na fala do professor, de que a formação do leitor deveria ocorrer na família, aponta para uma concepção da importância da participação desta no processo. O professor marca sua posição ao mostrar que apesar de não ter tido essa iniciação que julga ideal, ele busca através de iniciativa e esforços próprios sua formação como leitor.
 
 

4.2.1.3 Na escola como professor
 

        Uma outra situação encontrada é o professor que ao atuar como profissional percebe a necessidade de sua formação em leitura para se efetive sua participação no ambiente escolar.
 

((...)) Mal eu cheguei nessa escola eu me sentia assim ... as vezes, uma pessoa deslocada no meio das outras, né? Porque eu via as pessoas conversando sobre certos assuntos que eu não sabia o que que era aquilo. Eu não tinha, não tinha aquele hábito de leitura para ter em minha própria formação. Depois que eu comecei a verificar que eu precisava ter esse hábito de leitura para poder participar de conversa, para eu participar, para dar a minha opinião, etc. Então... ...Então, através da leitura. (F3:38)
O ambiente fez com que eu  ... eu não tinha aquele hábito de leitura quando eu era criança, mas o ambiente que eu comecei a freqüentar  me incentivou a leitura, né? Eu precisava começar a ler. (F3:44)


        Para o professor acima a percepção do sentido de ler se dá quando ele passa a conviver com professores. Nesse momento ele passa a conceber o ler como necessidade. Ler passa a ter um sentido de compreensão do próprio ‘’ser professor’’ e das possibilidades de participação, posicionamento, atuação e realização de escolhas. O professor reconhece a ausência de experiências com leituras, tanto nos ambientes escolares quanto nos familiares, na sua formação como leitor.

              Eu não tinha, não tinha aquele hábito de leitura para ter em minha própria formação. (F3:38)

        Esses discursos explicitam um leitor que se constituiu através do seu próprio esforço, na idade adulta, e por necessidade. Tal constatação é relatada como ocorrida em dois momentos: para prestar vestibular e, posteriormente no ambiente profissional, já como professor. Percebemos que tanto para o professor F3 quanto para B5, o fato de que a sua formação como leitor ter ocorrido na família é citado como um lamento, pressupondo que esse deveria ser o espaço onde o sujeito estaria sendo iniciado na atividade de leitura.
 

Tanto meu pai quanto a minha sempre trabalharam e...e... principalmente meu pai não tinha muito tempo, né? pra ... pra fazer esse trabalho e então isso não ... então isso... isso não foi trabalhado na infância ((...)) (B5: 34)

... eu não tinha aquele hábito de leitura quando eu era criança (F3:44)


4.2.1.4 Efeitos do ambiente no sentido da leitura

        Independente dos espaços onde a percepção para a leitura se dá, estão presentes nos discursos veiculados sobre leitura sentidos relacionados a necessidades pragmáticas e a  importância, no que diz respeito, por exemplo a escolarização e inserção em grupos sociais. No ambiente familiar e na escola nota-se a valorização da leitura para escolarização e desenvolvimento do homem. Na escola como professor os efeitos de sentido apontam para uma leitura – sobrevivência.
Segundo Corte (1998) a leitura enquanto prática individual e social possui esse caráter eminentemente pragmático, relacionados ao desenvolvimento do homem, ao desenvolvimento da linguagem e da personalidade, à escolarização, ao autodesenvolvimento contínuo, ao desenvolvimento da própria habilidade de leitura, ao controle do próprio saber, à sobrevivência, ao crescimento econômico, ao exercício da cidadania, à libertação e como defesa. A análise das falas dos professores participantes desse estudo sugere que esta defesa é incorporada independente do espaço no qual tenha se dado a sua formação. Percebemos, assim que o professor marca no seu discurso sempre esse aspecto pragmático da leitura e que os espaços onde se dá a sua formação como leitor estão relacionados com as interações das quais ele participa e com os efeitos de sentido que ele incorpora como sujeito histórico-social.
 

4.2.2 Para que ler?

        Outros sentidos relacionados a importância da leitura foram trazidos pelos professores de ciências, fruto de uma memória discursiva. Ele é interpelado por vários discursos sobre leitura (teorias de leitura, revistas, jornais, televisão, catálogo de editoras, Parâmetros Curriculares Nacionais, etc) que passam a constituir os efeitos de sentido para o que considera finalidade da leitura, importante para construção do leitor. Ao efetuarmos a análise na perspectiva discursiva, partimos do princípio que o discurso dos professores não se dá de forma solitária, individual, mas de forma social, tendo em vista a sua interpelação pela história, pelo ideológico. Ele materializa no seu discurso a formação ideológica dos grupos aos quais ele se relaciona.

        Como diz Pêcheux (1990)

as coisas-a-saber..são sempre tomadas em redes de memória dando lugar a filiações identificadoras e não a aprendizagens por interação: a transparência não é uma “interação”, e as filiações históricas nas quais se inscrevem os indivíduos não são “máquinas de aprender. (p.12)
        Sendo assim, os recortes abaixo buscam representar os sentidos de leitura trazidos pelos professores de ciências e que parecem estar sempre relacionados a uma função, a um pragmatismo que visa alcançar algo sempre positivo, seja para melhorar a sua condição humana ou como forma de contribuir para sua prática docente.

        O primeiro deles se relaciona à possibilidade de transformação como pessoa, possibilitando a sua mudança, inserção social, status social
 

((...)) Depois que eu comecei a verificar que eu precisava ter esse hábito de leitura para poder participar de conversa, para eu participar, para dar a minha opinião, etc. Então... ...Então, através da leitura. (F3:38)
((...)) Eu precisava começar a ler.  (F3:44)
Hoje a gente não tem mais tempo pra ler (Risos). Eu creio ser um pouco diferente, né? É mais voltado mesmo  para uma transformação minha, por causa daquela parte de... de tão técnico, né? de eu tentar é... é... primeiro me transformar, né? Para poder me transformar e aplicar um pouco mais a essa parte de formação de aluno, de pessoas. ((...)) E pra gente trabalhar... eu acho,  e bem nesse aspecto a gente  tem que se transformar, porque a gente tem que sofrer essa mudança, voce tem que absorver isso e ai como é que a gente faz isso? É lendo, né? Fazendo curso... (B6:44)


        A leitura é entendida como uma prática observada em sua relação com o social podendo levar o leitor a uma mudança e promover seu desenvolvimento, intelectual, social, lingüístico, ideológico, cultural e até mesmo econômico. A leitura proporcionaria condições para transformação, ou seja, para torna-lo alguém com idéias e posicionamentos diferentes daqueles que possuía anteriormente.

        A leitura seria um modo de iluminar o leitor, de transforma-lo em alguém com conhecimentos sobre a vida, sobre os outros e sobre os acontecimentos. Nesse caso, apropriar-se dos textos é transforma-la em textos próprios, é assumi-los como seu, incorporando novas idéias e modificando posicionamentos. Com esse conhecimento e iluminado pelo saber dos textos, o professor leitor teria possibilidade para ascender  social, cultural e até economicamente.

        Para o professor a realização de práticas de leitura lhe possibilita uma inserção no mundo dos textos, particularmente da cultura do impresso. Além disso, a leitura lhe possibilita desempenhar, plenamente, seu papel de formador de alunos e de contribuir, de modo positivo, para sua inserção no mundo da cultura escrita. (BATISTA, 1998).

        A leitura conduziria à transformação de comportamento, à emancipação e a uma melhoria significativa de qualidade de interação social e de vida, em outras palavras, a leitura teria sobre o leitor um poder transformador de suas práticas sociais. Ler faria parte de suas necessidades e seria uma das formas utilizadas por ele para construir sentido para realidade e para o estar no mundo.
 
 

4.2.2.1 Compreensão de mundo, obtenção do conhecimento

 
((...)) Então papai motiva muito isso, né? Na gente... essa vontade de querer ver. Ele achava que a gente lendo, a gente ia se expressar melhor no mundo, ia compreender melhor o mundo que a gente estava vivendo. (Q1:34)
((...)) Você conhece várias ... vários tipos... você consegue executar vários tipos de relações do homem com o mundo, né? A partir  da... da leitura que se faz do mundo... (Q1:68)

 É fundamental a leitura pelo seguinte: porque só com a leitura acho que a pessoa passa a desenvolver a interpretação, né? Interpretar um texto e tudo o mais. (F4:26)


         A leitura como compreensão de mundo tem importância na medida que liberta o homem, dando-lhe condições para não se alienar, refletir sobre sua condição humana, relacionar-se e poder transformar a si próprio e seu meio.

        Esse seria um dos pressupostos básicos da perspectiva político-diagnóstica preconizada por Paulo Freire (1988) e Ezequiel Theodoro da Silva (2000). Freire afirma que, antes de se tornar um leitor da palavra escrita, se tornara um leitor do mundo à sua volta, da realidade a ele circundante. Sendo assim, a leitura do mundo influencia a leitura da palavra e esta por sua vez influencia aquela. As idéias de Freire tem peso relevante no meio acadêmico e escolar e se tornaram base de muitos trabalhos e pesquisas no campo da educação. Estas são acolhidas não só por seu conteúdo político, mas pelo peso de sua trajetória como educador e pensador da sociedade.

        Concomitantemente à divulgação das idéias de Freire, também as formulações de Silva ganham espaço e divulgação. O ponto de partida das investigações de Silva também é a escola e a questão da leitura.
 

((...))É  um dos principais pontos de obtenção de conhecimento.  (B5:20)

((...)) a gente se dedica mais a leitura dentro da área da gente, procurando aprimorar, procurando conhecer, fazendo estágio, fazendo curso... o tempo todo, se não for melhor, pelo menos ta junto deles, né? (B6:14)
 

        A imagem de leitura também presente na fala dos professores aponta para a leitura como uma prática que tornaria o leitor alguém “melhor”, pois ler seria um caminho para sabedoria, para o aprendizado de si e do mundo. Ler transformaria, necessariamente o leitor em um individuo mais “culto” e “sábio”.

        No discurso dos professores ao falarem de leitura de mundo; compreensão de mundo; relações do homem com o mundo; interpretar...tudo o mais; procurando aprimorar, procurando conhecer percebemos regionalizações do interdiscurso com as concepções da linha político-diagnóstica, preconizada por Freire e Silva que valoriza o conhecimento de mundo do leitor, a leitura como forma de conhecimento de mundo e emancipação.

        Os dizeres dos professores partem de “palavras que falam com outras palavras” (ORLANDI, 2001, p. 43) porque seu discurso se delineia na relação com outros: dizeres presentes e dizeres que se alojam na memória.

        Assim, pode-se acreditar que esses autores, embora não tendo sido citados têm forte influência sobre a compreensão de leitura dos professores,  apresentadas por meio de interdiscursos que marcam sua filiação a uma formação discursiva que determina o que pode e deve ser dito.

        Essas filiações de sentidos vêm pela memória desses sujeitos a partir de outros dizeres:

em muitas vozes, no jogo da língua que vai-se historicizando aqui e ali, indiferentemente, mas marcada pela ideologia e pelas posições relativas ao poder – traz em sua materialidade os efeitos que atingem esses sujeitos apesar de suas vontades. O dizer não é propriedade particular. As palavras não são só nossas. Elas significam pela história e pela língua. O que é dito em outro lugar também significa nas “nossas” palavras. (ORLANDI, 2001, p.32)
        Nesse caso o sujeito ao dizer, pensa que sabe o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o modo pelo qual os sentidos se constituem nele. Embora se realize no sujeito, os sentidos apenas se representam como originando-se nele: eles são determinados pela maneira como o sujeito se inscreve na língua e na história e é por isso que significam e não pela sua vontade.

        É nesse sentido que compreendemos a relação entre a fala dos professores e a concepção de leitura defendida por Silva (1985):

Em essência, a leitura caracteriza-se como um dos processos que possibilita a participação do homem na vida em sociedade, em termos de compreensão do presente e do passado e em termos de possibilidade de transformação sociocultural futura. E, por ser um instrumento de aquisição, transformação e produção do conhecimento, a leitura, se acionada de forma crítica e reflexiva dentro ou fora da escola, levanta-se como um trabalho de combate à alienação, capaz de facilitar às pessoas e aos grupos sociais a realização da liberdade nas diferentes dimensões da vida.
        Por isso mesmo, considerando as contradições presentes em nossa sociedade, “uma concepção de leitura não pode deixar de incluir movimentos da consciência, voltados ao questionamento, à conscientização e à libertação”. (SILVA, 1985, p.24)
 
 

4.2.2.2 Fruição

        Uma outra imagem de leitura que também foi percebida no discurso dos professores de ciências é aquela que associa leitura ao prazer, ao deleite  à vivência de experiências imaginárias, diferentes da realidade do cotidiano do leitor.
 

((...)) o que era  pra dar conta de ler pra escola  não me interessava não. Eu lia, lia mas não... eu gostava mesmo dessa parte espírita mesmo. Eram os livros que eu mais me identificava mesmo. (F4:52)

Mas assim quando eu estou de férias eu esqueço leitura química e só leio é... é... coisas assim mais espiritualizadas. Eu gosto muito leituras assim... que elevam mesmo o pensamento. ((...))  (Q1:24)


        A leitura seria, assim, uma forma de transposição para outra realidade , diferente daquela relacionada a atividade profissional. Os professores se referem a outros gêneros de textos e a outros contextos de leitura quando falam do prazer que podem extrair de um texto. Ler  associar-se-ia ao entretenimento. Esse é um sentido atribuído a leitura no qual a boa leitura seria aquela que pudesse dar prazer ao seu leitor e levá-lo a mundos desconhecidos, que permitissem o exercício da imaginação.  Gatti apud Batista (1998) relata pesquisas sobre docentes e suas relações com a leitura que indicam que suas leituras para o prazer revelam uma distância em relação à cultura tida como legítima, cuja transmissão lhes seria delegada.
 

((...)) E o importante é... é...  leituras,  livros, né? Não livros, as vezes, é... que coloca... é ... por exemplo, a nível de mestrado, você não... você tem que ler esse livro. Lêeee.... eu gosto não. Eu gosto de escolher, gosto de ficar a vontade. Leio dois, três, quatro livros, mas eu gosto... e ao mesmo tempo. Eu gosto de ler. Esse que eu escolhi. Não foi uma imposição de ninguém...eu gosto de leituras assim. Porque no momento em eu estou ... é... com vontade de ler isso. Só que eu vou somando para minhas aulas. Eu vou somando para minhas aulas essas leituras. (F3:64)


        Ler por prazer sem o compromisso da obrigação, do interesse e do esforço e da disciplina e da rotina escolares, seria um bem em si mesmo. O desejo e a fruição, o espaço para liberdade estaria relacionado ao direito de parar de ler, de saltar partes, de escolher, de negar uma leitura que seria controlada e controladora.

        Geraldi (apud OLIVEIRA, 2001) sugere que algumas leituras na escola, não incentivam a leitura tipo fruição, privilegiando um tipo de leitura mecânica, existiria um predomínio de busca de informações no qual os papéis de locutor/interlocutor não se efetivam. Estas leituras podem ter deixado nos professores marcas que tornam a leitura na escola como algo desagradável, não prazeroso, que é feito por obrigação, cujo objetivo principal é buscar responder às questões estabelecidas pelo professor. Essas práticas de leitura presentes na memória desses professores passam a constituir sua postura frente ao texto separando a leitura por prazer da leitura efetivada na escola.
 
 

4.2.2.3 Língua e linguagem

 
Eu não tenho muito hábito de ler, mas eu passei a perceber que quando voce adquire o hábito de ler voce melhora ... todo o seu vocabulário, né?  a sua maneira de falar... é... e eu passei a ler mais um pouco agora. (F4:42)
Porque eu devo ... acho que  hoje eu ainda falo um pouquinho melhor, (Risos) justamente por isso entendeu? pela leitura, porque se eu ficasse só na parte cientifica, só nos livros físicos, né? Só tratando daquilo ali eu vi que eu era meio restrito em termos de... em termos de vocabulário. (F4:50)


        Apesar de não dito, é possível subentender que o professor aqui refere-se à linguagem científica como limitada em termos de vocabulário ao considerar as necessidades para comunicação no cotidiano. As diferenças entre linguagem cientifica e linguagem cotidiana têm sido objeto de discussão na literatura de educação em ciências. (HALLYDAY, MARTIN, 1993;  MORTIMER, 1998). De fato, a linguagem científica possui características próprias, diferentes da linguagem comum, que foram historicamente estabelecidas ao longo do desenvolvimento da ciência. Candela (apud MACHADO, 1999) aponta que o discurso científico possui uma certa organização, uma certa maneira de falar, argumentar, analisar, observar e validar conhecimentos.

        Para o professor F4 essas diferenças parecem estar ligadas ao vocabulário específico e seu contexto de utilização. Ele percebe a especificidade da linguagem científica, principalmente em termos de vocabulário.
 

((...)) Eu tenho uma filha que me puxou inclusive. Esta fazendo ate direito. Ela sempre gostou de ler. Lê muito. Por conta disso ela tem até um vocabulário... Porque eu acho que a leitura faz você ter um vocabulário maior. (Q1:66)
((...)) Faz você raciocinar melhor. Você argumentar melhor. Você conhece várias ... vários tipos... você consegue executar vários tipos de relações do homem com o mundo, né? A partir  da... da leitura que se faz do mundo... (Q1:68)
         O sentido de leitura aqui seria uma atividade para ampliar a habilidade lexical, nesse caso, tornar-se leitor significa ter adquirido o conjunto de competências e esquemas de percepção e apreciação do código lingüístico. Este sentido estaria relacionado a linguagem, principalmente na sua dimensão comunicativa.
 A leitura seria um modo de conhecer a língua, seu uso e, assim, a possibilidade de ampliar o vocabulário, adquirindo os meios para uma melhor argumentação na comunicação.
 
 

4.2.3 Significando os sentidos da leitura

        Essas imagens de leitura são bastante positivas, evidenciando uma prática social de grande valor, já que é vista como meio de capacitação, aprimoramento e transformação do leitor, sobretudo por ser um meio de acesso à informação e atualização. A leitura pode ser considerada como prática social já que ler faria parte das necessidades cotidianas do homem e seria uma das formas utilizadas por ele para construir um sentido para realidade e para o estar no mundo. Seria ainda um instrumento por meio do qual o professor buscaria conhecimentos e informações, seja como indivíduo, como cidadão ou profissional. Esses efeitos de sentido vem através dos discursos significando a leitura de modo idealizado, enfatizando sua importância.

        A análise na perspectiva discursiva suscita considerarmos as condições imediatas de produção da entrevista, isto é, a situação de interlocução ocorrida entre o pesquisador e os professores de ciências. Um fator relevante foi que grande parte dos recortes apresentados foram produzidos a partir de um conjunto de perguntas que tratavam da importância e do papel da leitura que influenciariam os efeitos de sentido que reforçavam aspectos da sua importância, do seu papel.

        Considerando ainda as condições de produção do discurso é necessário levarmos em conta as determinações históricas que condicionam o sentido de leitura desses professores e que estão relacionadas, por exemplo com o contexto da própria escola, no qual a escrita e a leitura são valorizadas e com o contexto da mídia no qual circulam informações sobre leitura. Em meio a essas interações o professor de ciências elabora e constrói os sentidos de leitura. Percebemos a partir dessas análises o quanto o termo leitura é polissêmico. Entre os vários sentidos atribuídos à leitura por esses professores poderíamos apontar: maneira de “ver” as coisas, leitura de mundo; aprendizagem escolar, formal de ler e escrever; meio para transformação; forma de obtenção de conhecimento etc.
 
 

4.3 As imagens de professor leitor

        A discussão deste aspecto nos remete a compreender o lugar social do qual o sujeito fala e a discutir algumas das formações imaginárias que perpassam seu
discurso. Buscamos nos textos produzidos, a partir da situação de interlocução, elementos que nos apontassem essas imagens de leitor e encontramos nos discursos aspectos que nos pareceram importantes, tais como: a falta de tempo para leitura, o lugar do professor na interação com alunos e textos em sala de aula, o papel do professor na formação de leitores e a percepção do aluno como alguém que não lê. É importante ressaltar, mais uma vez aqui nessa análise que os sentidos produzidos não são unívocos e nem devem ser tomados como tais.
 
 

4.3.1 Leitores sem tempo para ler

 
Eu...o... agora o interessante por motivo assim de dar assim muitas aulas eu não tenho quase tempo de ler. Então, eu leio muito nas férias. Durante o período de trabalho, assim ... a leitura é mais leitura mesmo voltada para ... para  o .... para o meu métier  mesmo que é aqui. Mas nas férias não, nas ferias não, eu leio 4, 5 livros. Eu passo na praia eu gosto muito de ler. (Q1:28)
Olha, eu gosto muito de ler.  O problema é... que mais me incomoda é a falta de tempo para ler.((...)) (Q1:54)


        Nas falas acima o professor aponta para a questão da falta de tempo para ler. As atribuições do professor lhe deixam pouco tempo para a leitura. Apesar de não dito, o professor coloca que existe um déficit que possui duplo sentido: falta-lhe tempo e o que ele lê não é suficiente. As duas situações parecem estar associadas a um incômodo.

        Nos estudos de ROLLA (1995) sobre o professor leitor ela conclui que “o ritmo acelerado do trabalho transforma os momentos de isolamento individual que exige a leitura, em espaços que ocorrem no período das férias.” Esse déficit de leitura nas suas vidas é relatado como um lamento, um desejo de chegar a um estágio de leitura que seja mais satisfatório. Na verdade, a falta de tempo é uma justificativa encontrada por ele para explicar a sua postura de leitor, que ele próprio não considera ideal e que possivelmente foi construída a partir de um imaginário que pode estar relacionado a: i) uma imagem que o professor possui de si mesmo, enquanto profissional que precisa e deve estar sempre buscando conhecimento e atualização através da leitura e ii) as condições de produção imediatas do discurso na situação de entrevista onde o professor estaria produzindo imagens de para quem ele fala, nesse caso, a pesquisadora/entrevistadora que é bibliotecária e atua na mesma instituição de ensino dos professores. O bibliotecário seria alguém “autorizado”, “responsável”, “guardião” dos livros e “promotor” da leitura.
 
 

4.3.2 Interações no espaço escolar
 

4.3.2.1 O professor, os alunos e o texto

        Na sua fala, o professor Q1 se refere ao o espaço da sala de aula como um lugar de troca, de “socialização do conhecimento”. Ele não se vê como alguém detentor do saber cuja missão é transmitir o conhecimento numa relação assimétrica. Percebe-se como um mediador entre o conhecimento e o aluno e considera que seu compromisso é ajudar os alunos a alcançar esse conhecimento. Esta fala se relaciona a uma concepção de ensino que parece estar ligada às práticas que o professor assume com os seus alunos, que se caracterizam por valorizar a voz do aluno e vê-los como produtores de sentido, ou seja, indivíduos que, dentro e fora das aulas estabelecem conexões com diferentes culturas, entre elas as culturas científica e tecnológica.

        Quando o professor considera a aula uma “troca” ele destaca a dimensão coletiva desta construção, constitutivamente marcada por diferenças. Destaca o papel mediador do outro na construção do conhecimento a ser compartilhado pelos participantes. Qualifica também esta mediação como ativa e possuidora de intencionalidade que se remete à possibilidade de que os alunos venham a considerar interpretações plurais,  abrangentes, complementares, mas que guardem relação entre si e com os conhecimentos científicos.

((...)) Eu tenho a impressão que ...  que vale a pena... vale a pena eu como professor tentar ... nas minhas aulas...é...produzir uma socialização maior na sala de aula...para que não haja tantas diferenças ... Eu acho que a aula é uma troca, né? ... a aula tem que ser construída...é...em valores éticos, de respeito...tanto da parte do ... do aluno com o outro colega ou do professor com o aluno...do aluno com o professor. ((...)) O professor deve procurar o máximo...mesmo que a partir de um texto um aluno ... um aluno tenha uma idéia...isso é ótimo...eu não vejo problema nenhum você ter idéias diferentes, mas essas idéias tem que ser construídas com qualidade. Acho que a qualidade tem que ser atingida por todos. ... ((...)) Eu acho que é bom ter idéias heterogêneas... é lógico que não pode ser ... não pode ser uma idéia incoerente, né? Idéias incoerentes não. Idéias que ... que sejam diferenciadas mas que estejam dentro da coerência no texto que ele esta interpretando...entendeu? ... por exemplo, uma questão ... uma questão que é discursiva onde o aluno tem que elaborar as idéias eu coloco do lado assim...oh...eu coloco assim: ele tem que atacar esse ponto, esse outro ponto, esse outro ponto...eu vou enumerando os pontos que ele vai tem que atacar no texto... ((...))(Q1, 122:126)


4.3.2.2 O professor e o conhecimento científico

        O professor B6 se revela como alguém comprometido com a transmissão do conhecimento científico que ele próprio qualifica como situado histórica e socialmente. Esta fala nos permite discutir um outro tipo de interação, isto é, a do professor de ciências com o conhecimento científico.

        Orlandi (1996) tem trabalhado o conceito de leitura como atividade cultural que leva mais em conta a interação do sujeito com o texto, do que propriamente o dizer do autor e isto é possível porque o texto é passível de interpretação. A questão da paráfrase e polissemia, enfatizada pela autora, seria característica da própria natureza da linguagem que possibilita a multiplicidade de sentidos. No entanto, os sentidos são sedimentados historicamente. Dependendo da época em que o texto foi escrito alguns sentidos ganham força em relação aos outros num processo que depende do contexto histórico daquele momento, mas nunca estão fechados para outras interpretações.

        A partir dessa perspectiva teórica entendemos que para o professor, dependendo dos objetivos da atividade em questão, os alunos podem “ler” atribuindo outros sentidos. No entanto, sempre existirão sentidos que precisam ser apreendidos pelos alunos naquele momento. E aí esta o seu compromisso.
 

Porque apesar da biologia não ser matemática, mas a gente hoje tem verdades que poderão ser mentiras amanhã, mas hoje ela é verdade, então não tem como você interpretar de outra maneira a não ser que você esteja fazendo um trabalho onde você esteja tentando demonstrar alguma coisa. Se o pessoal diz que a célula tem membrana citoplasmática, citoplasma e núcleo, né? Então você vai ter uma coisa que não pode fugir de membrana plasmática, citoplasma e núcleo. (B6:104)
4.3.2.3 O professor e os discursos que perpassam o espaço escolar

        Em outras situações, conforme apresentamos nas falas abaixo, os professores demonstraram sua intenção de deslocar-se do texto propriamente dito, para o estudo de determinados conteúdos com os quais ele possa estabelecer alguma forma de relação com o cotidiano do aluno. Ele se coloca como alguém que mostra, que estabelece elos, contextualiza e por meio disso promove entendimentos. No seu discurso estão presentes outros discursos. Durante a análise pudemos perceber em suas falas elementos do interdiscurso (o já dito) retomado e re-significado das Diretrizes Curriculares que orienta um trabalho interdisciplinar, contextualizado que o professor incorpora em sua prática.
 

Porque eu acho que em física, eu acho que a gente tem que ter um critério. Tem que ter um critério. Você não... não mostrar as comprovações científicas, não ficar rodeando muito não. Mostrar, ser mesmo direto. Tem que ser direto na física. E tem que ter critérios, né? Mostrar para ele as interpretações físicas das unidades que são apresentadas, para serem discutidas, para ele entender aquilo...levar para contextualização, levar para parte da física o dia dele... dele...na casa dele...onde ele esta passeando...né? Se eu estou falando de pressão, eu tenho que falar da caixa d’água. Ta o negócio lá o tempo todo e não tem jeito. Então, eu tenho que fazer esse elo de ligação para ver se ele entende um pouco mais. (F3:88)


        De forma geral, vimos que as ações do professor F3, seja em relação à seleção do material de leitura, seja em relação à seleção das atividades de leitura ou mesmo à adoção de uma postura ou sentido de leitura resultam de um conjunto de fatores e influências que se delineiam de acordo com os conhecimentos de leitura a que o professor está exposto. No entanto, pode-se notar que  o professor se sente dono de um dizer que lhe é próprio, como se não fosse passivo de nenhum processo de interpelação ideológica. A análise do seu discurso revela que esta noção de autonomia e a unidade de sujeito são, na verdade, efeitos ideológicos as que os sujeitos estão submetidos. Nas palavras de Orlandi:

Podemos observar, dessa forma, os efeitos da ideologia: ela produz a aparência da unidade do sujeito e da transparência do sentido. Estes efeitos, por sua vez, funcionam como “evidencias” que, na realidade, são produzidas pela ideologia. Torna-los  como uma realidade e ficar submerso na ideologia, na construção, enquanto evidencias. (ORLANDI, 1999, p. 32)


4.3.2.4 Ser ou não ser formador de leitores?
 

Aí, ai...o adolescente não gosta de ler. Por que? Ele não foi, né? Desde pequenininho orientado, no lado de leitura. O adolescente não gosta de ler. Não gosta. O adolescente não gosta de consenso. Ele gosta sempre da ousadia.(F3:140)
Eu boto ele  pra fazer é... e ele gosta...(F3:142)
Ele entende. Ele gosta (F3:144)


        Esse professor parece possuir uma imagem de si como elemento responsável por promover o hábito de leitura nos alunos, para um público que vê na leitura uma atividade pouco prazerosa ou agradável. O leitor escolar caracteriza-se como um não-leitor na visão do professor. Por isto, o professor se vê como mediador, entre textos e leitores, e entende que de sua atuação depende ou não a adesão do aluno a esta atividade. Essa visão de que o professor, independente da disciplina que venha a lecionar, é um professor de leitura é apontada por Silva (1998; 2000, p.33): “Todo professor por adotar um livro ou mesmo por produzir ou selecionar seus textos, transforma-se, necessariamente, num co-responsável pelo ensino e encaminhamento da leitura.”

        Podemos considerar, assim que a leitura é uma “exigência” que está presente nas disciplinas acadêmicas oferecidas pela escola e, por isso mesmo, os respectivos professores são, implícita ou explicitamente, orientadores de leitura. Na escola o professor de ciências utiliza a leitura como parte das atividades desenvolvidas com os alunos até mesmo porque

“no espaço escolar os trabalhos vinculados à construção do conhecimento e ao binômio ensino-aprendizagem caminham através de textos escritos. (...) Na grande  maioria de nossas escolas, em que pese a existência de outras linguagens (imagéticas, sonoras, mímicas etc), é esse o padrão preponderante de circulação/promoção do saber. (SILVA, 1998, p.123)
        No entanto, com exceção da fala de F3, não encontramos nenhuma marca nos discursos dos professores que participaram desse estudo, que indique que o professor se vê também como um professor de leitura ou como alguém responsável por formar o hábito de leitura no aluno. Apesar de utilizar atividades de leitura em suas aulas o professor não considera que seja sua atribuição formar leitores, o seu papel seria introduzir o aluno aos conteúdos da sua disciplina especifica e promover relações entre esses conteúdos e o cotidiano do aluno.
 

4.3.2.5 Por que o aluno não lê?

 
E uma das grandes dificuldades do aluno do ensino médio é ler e não entender o que esta lendo, vamos supor, num determinado enunciado ele não saber tirar a essência do que o enunciado esta pedindo, então esse é um caso de interpretação que só a leitura, só o tempo é que faz o aluno adquirir esse hábito de ler de ...ou essa compreensão de conseguir  analisar um texto e desenvolver esse texto. E isso é que é o grande problema da física. Muitas vezes o aluno lê duas, três, quatro vezes o mesmo enunciado de uma questão e não sabe tirar dali o que que o enunciado esta pedindo ou não ter prática de interpretação. (F4:26)

Olha, eu... Olha. Ele acha muito enfadonho se você mandar ler um livro em casa ...Entendeu? Você fala assim: “Vou marcar uma prova tal nesse livro paradidático”. Se você der um livro paradi...ele acha aquilo enjoado. ((...)). (Q1:98)
É. Então...Ai a gente tem que ver o por que que esse aluno argumenta mal... não é? A gente vê...o porque que ele argumenta mal. Ele argumenta mal porque ele não gosta de ler. Por que que ele não gosta de ler? Por que que ele não sente curiosidade em ... em ler...não é? (Q1:140)

Por isso que a gente acha que a gente deveria trabalhar mais textos em sala de aula, textos da física mesmo, né? Porque falta vocabulário, né?... científico também isso talvez dificulte ele interpretar o texto (F4:32)

Na realidade... na realidade o nível do aluno que esta chegando no ensino médio é um...um nível é...que taria...que teria mais facilidade de entender uma leitura de ensino fundamental, né? E o aluno de 3o. grau taria...teria mais facilidade de entender uma leitura de ...de ensino médio (B5:82)


        Esse conjunto de recortes aponta para um leitor escolar que na visão desses professores caracteriza-se como um não-leitor. Talvez, por isso eles se vejam como mediadores. Encontramos em algumas falas a posição de que a sua atuação é que vai contribuir para adesão do aluno a esta atividade.

        Inicialmente, vimos que os professores consideram que os alunos teriam dificuldades de identificar e apreender as idéias contidas no texto e conseqüentemente não entenderiam as questões elaboradas por ele. No entanto, essas dificuldades de entendimento do enunciado de determinadas questões propostas pelos professores, poderiam ser consideradas como conseqüência da própria ênfase dada por eles mesmos para a referencialidade e para a literalidade do texto. Este procedimento transforma a leitura em reconhecimento de um certo tipo de informação. A conseqüência para o aluno é que ele deve atribuir um sentido único para o texto.

        Um outro aspecto considerado no discurso de Q1 seria uma imagem de leitor  fortemente marcada no contexto escolar que o aluno seria avesso à leitura e que só a realizaria em condições de pressão, por obrigação. No entanto, após atividades de leitura desenvolvidas aderem a essa prática.

        A questão do vocabulário e da linguagem seria um outro fator percebido pelos professores que distanciaria o aluno da prática de leitura, tornando-o um não-leitor. O aluno não tem familiaridade com os termos, não conhece seu significado. No entanto, os professores desconsideram que a linguagem científica é representada principalmente pelo uso da metalinguagem e até mesmo a questão da compreensão da linguagem cotidiana na sua relação com a linguagem científica. Esse processo não aparece como sendo problemático no discurso dos professores. Os alunos já viriam com essa compreensão, percebemos o apagamento da questão da linguagem científica no que diz respeito à sua epistemologia, a natureza do conhecimento científico e a problematização desse universo não ser familiar aos alunos.

        Essas imagens de leitor no contexto escolar levariam o professor a assumir determinadas posições em suas práticas em atividades com leitura. Uma delas, seria não se sentir como alguém responsável pela formação desses leitores, delegando essa tarefa para outros professores. Esses discursos cristalizados impedem um outro entendimento da questão. Discursos dessa natureza retiram do sujeito a possibilidade de mudança. É importante ressaltar aqui que os efeitos de sentidos de tais discursos são fundamentais no processo de manutenção dessas imagens.



5. Os efeitos de sentido dos discursos

        Nossas análises revelam que os sentidos de leitura apresentados pelos professores de ciências que participaram deste estudo estão relacionados à importância desta atividade, apontando para sua constituição como leitores no que diz respeito à sua transformação, à sua inserção social, à obtenção de conhecimento,  à compreensão de mundo e ao domínio do código lingüístico. A leitura teria ainda, a função de proporcionar o prazer, através da fruição no caso de textos que não estão ligados à atividade docente.

        O ambiente teria também uma relação com os sentidos atribuídos pelo professor à leitura. Assim, no contexto de referências ao ambiente familiar e ao ambiente escolar, seja no papel de aluno ou de docente, ele revela a importância da leitura como fundamental para seu desenvolvimento e atuação na sociedade e, em particular, na sua vida profissional.

        Já os modos de leitura utilizados por esses professores, em sua grande maioria, buscam identificar o sentido do texto, ou seja, o que o autor quis dizer. Referências a este modo de ler são particularmente recorrentes quando o professor se refere à leitura de textos científicos em geral e a sua leitura no ambiente escolar. No entanto, foi possível perceber nos discursos dos professores outro modo de leitura, que admite a atribuição de diferentes sentidos para um mesmo texto por meio de interdiscursos. Isto ocorreu, mais freqüentemente, no contexto de uma discussão acerca de outros tipos de texto, tais como reportagens de jornais e literatura religiosa. De forma geral a tipologia do discurso, os objetivos da leitura, o contexto onde este se dá, ou seja, as condições de produção determinariam, em grande parte, tanto o caráter parafrástico quanto o polissêmico da leitura.

        Foi possível observar como os discursos desses professores  foram constituídos heterogeneamente a partir de uma pluralidade de experiências e interações. Além disso, percebemos que os professores entrevistados possuem uma visão idealizada de leitura quando, em suas falas, reforçam seu papel como algo que elevaria a sua condição humana e promoveria mudança. Embora o professor valorize a leitura critica, a ampliação da visão de mundo, o papel do cotidiano na atribuição de sentidos aos conceitos científicos etc. predominam, tanto nas suas próprias leituras quanto nas atividades de leitura propostas em sala de aula, o modo de leitura que busca o dizer do autor, a sua referência.

        Na verdade, o processo de construção do sentido de leitura e de leitor é resultado de efeitos de sentido de uma história já construída. A partir de um imaginário de leitura e de leitor construídos em um processo de interação e diálogo entre indivíduos, os professores retificam e cristalizam alguns sentidos tais como o sentido único, a leitura idealizada etc.

        A imagem que a maioria dos professores possuem deles mesmos é a de um mediador que através da interação irá estabelecer a relação entre textos e alunos. No entanto, esses mesmos professores não se vêem como formadores de leitores. Apesar de valorizarem a utilização de textos com seus alunos, os professores descrevem grandes dificuldades que estes possuem com a leitura e a interpretação e os consideram como não-leitores. Estas representações são constitutivas da prática pedagógica do professor, das suas escolhas por atividades de leitura mais ou menos diretivas.

        Os professores operam como se seu discurso tivesse origem neles mesmos, não levando em conta que esse discurso foi construído a partir de imagens e relações de força e poder existentes na sociedade. Percebemos que eles se sentem donos de um dizer que lhes é próprio, como se não fossem passíveis de nenhum processo de interpelação ideológica. Fica bastante evidente no texto que o professor de ciências não se vê como sujeito interpelado pela ideologia, como alguém que repete discursos sobre leitura, sem refletir sobre eles.



6. Considerações finais

        Um nível de contribuição deste trabalho para o campo da educação em ciências diz respeito à compreensão das imagens de leitura e dos modos de ler do professor de ciências, relacionadas as suas práticas. Nossos estudos demonstraram que existem relações entre as condições às quais o professor esta submetido e seus modos de leitura. Nossas conclusões se somam e reforçam estudos sobre a leitura de professores.

        Nas pesquisas de Batista (1998) sobre a (não) leitura docente, ele conclui que os professores são leitores e que as suas características como leitores não podem ser interpretadas apenas como resultados de processos de exclusão. Do mesmo modo, em nossas análises percebemos que os professores de ciências são leitores e que os sentidos por eles atribuídos à leitura, seus modos de ler e as imagens que possuem de si foram se constituindo ao longo de suas experiências e interações determinadas.

        A tipologia do discurso parece ser um fator determinante, tanto nos sentidos que o professor dá a leitura quanto nos modos de ler, ou seja, na interação com textos relacionados ao discurso científico, por exemplo, livros didáticos de ciências e artigos de periódicos científicos especializados. Nestes casos existiria a predominância da leitura parafrástica que busca um sentido único para o texto.

        Parece haver assim uma associação entre o tipo de discurso e o modo de ler, na qual aos textos científicos são atribuídos sentidos únicos e a leitura adquire um caráter de busca e assimilação da informação.

        É interessante destacar que a leitura desses textos se dá, essencialmente em contextos e ambientes de formação deste professor de ciências (cursos de graduação e atualização) e de atuação profissional (na escola de ensino médio e técnico).

        Os resultados revelaram também que, para esse grupo de professores, não existiram, na sua formação inicial, oportunidades de refletir sobre o papel da leitura no ensino e na aprendizagem de ciências. Da mesma forma, ao longo de sua atuação profissional isso não ocorreu. Isto é revelado no não dito nos discursos dos professores, caracterizado pela ausência de relatos sobre essas experiências relacionadas à leitura.

        As conseqüências dessa lacuna podem estar relacionadas a cristalização de visões reducionistas de linguagem, de leitura e a dificuldades destes professores de incorporar uma variedade de práticas de leitura em suas aulas. Esta visão reduzida traria em última instância impedimentos no entendimento dos conceitos científicos e das idéias em ciências. Isto aponta para necessidade de rever ações de formação inicial e continuada que incluam discussões sobre leitura. Seria necessário levar em consideração a complexidade de significação do que é ler, ou seja, incluir aspectos como a posição do sujeito leitor no processo de atribuição de sentidos, da leitura como uma forma de se situar no mundo, da interação do sujeito com o texto, levando  em conta elementos textuais e co-textuais e os aspectos histórico-sociais nos quais situam-se os textos, o autor e o leitor.

        Essas análises nos permitiram compreender alguns sentidos, imagens e modos de leitura de professores de ciências que atuam na escola e utilizam a leitura como parte das atividades que visam a promover a aprendizagem de ciências. Entendemos assim que a leitura seria um meio de organizar os conceitos científicos, além de organizar e ampliar as interações sociais entre os professores e seus alunos.

        Finalmente, um aspecto que não podemos deixar de considerar é a especificidade dos sujeitos da pesquisa no que diz respeito à sua formação. De fato, nossas discussões possuem esse caráter mais geral e nem sempre destacam aspectos específicos que dizem respeito às disciplinas científicas, suas epistemologias, seu ensino e as características de formação do professor de ciências (inicial e continuada). Isto pode estar relacionado ao contexto das expectativas dos professores, na situação de entrevista, com relação aos interesses, motivações, objetivos e ao lugar social da entrevistadora (que atua como bibliotecária na instituição onde os professores entrevistados lecionam). Em outras palavras, não podemos deixar de ignorar que existe uma historia de interação entre a pesquisadora e os entrevistados anterior à entrevista no qual cabem papéis sociais definidos no contexto institucional onde essas entrevistas se deram.
É importante ressaltar que essa pesquisa não teve a pretensão de responder às perguntas propostas de forma exaustiva. Na verdade, a investigação representou uma aproximação da pesquisadora com o campo teórico da análise do discurso e de leitura e um exercício de análise. O conjunto de dados que constituiu o ‘’corpus’’ discursivo das análises é também dependente da história do pesquisador. Além disso, na medida que respondíamos algumas indagações outras surgiram. Destacamos aqui algumas delas: Como se manifestam no discurso dos professores de ciências as marcas relacionadas com a sua formação inicial, no que diz respeito a experiências com leitura? Como se diferenciaria em relação à leitura a formação dos professores que passam por cursos de licenciatura em ciências daqueles professores formados em cursos técnicos ou de bacharelado? Como se configuram as atividades de leitura com textos em aulas de ciências?   Quais são os modos de leitura utilizados pelos alunos com textos científicos?

        Gostaríamos ainda de registrar que trabalhar com AD nos mostrou o quanto a linguagem pode ser múltipla, incompleta e contraditória e que os sentidos produzidos aqui não são únicos e completos e que outros sentidos e significados podem ser atribuídos a essas descrições e interpretações. Essa perspectiva mostrou-nos uma outra maneira de ‘ler’ e de interpretar, possibilitando-nos o entendimento que o sujeito não tem completa autonomia quanto aos sentidos que se filia, mas que pode transformar, romper com os sentidos estabelecidos produzindo novos significados, principalmente quando passa a compreender que o sentido sempre pode ser outro.

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[1] Este artigo expande e complementa um trabalho apresentado no IX Encontro de Pesquisa em Ensino de Física, Jaboticatubas, MG, 2004. (volta para o texto)
 
 

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