SERÃO AS REGRAS DA TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA APLICÁVEIS AOS CONCEITOS DE FÍSICA MODERNA?
Are the rules for didactical transportation applicable to the concepts of modern physics?

Guilherme Brockington
USP - Instituto de Física/Faculdade de Educação
mercer112@hotmail.com

Maurício Pietrocola
mpietro@usp.br
USP - Faculdade de Educação
 

Resumo

        Este trabalho é parte de uma pesquisa envolvendo proposta de atualização curricular. Os conteúdos de Física Moderna e Contemporânea estão, em geral, ausentes das aulas do Ensino Médio. Neste trabalho nos propomos a analisar os requisitos necessários para a inserção de elementos de Mecânica Quântica nas aulas do Ensino Médio. A análise teórica será feita com base na teoria de “Transposição Didática”, proposto por Yves Chevallard, a partir da qual apontamos alguns elementos que questionam a aplicabilidade de suas regras aos temas desta “nova” Física.
Palavras-chave: Ensino de Física Quântica, Transposição Didática, Física Moderna.
 
 

Abstract

        This study is part of a program to update the teaching curriculum. The subject matter of Modern and Contemporary Physics is generally absent in teaching at the Middle School level. In the study we analyse the requirements for the insertion of elements of Quantum Mechanics in teaching at that level. The analysis is based on the theory of “Didactical Transposition" proposed by Yves Chevallard and from which we point out some elements of his rules which are of questionable relevance to the topics of this "new" Physics
Keywords: Teaching Quantum Physics, Didactical Transposition, Modern Physics.
 

1 - Introdução

        Diversas pesquisas em Ensino de Física apontam para a necessidade da inserção de Física Moderna e Contemporânea (FMC) no Ensino Médio. Os trabalhos decorrentes de quase duas décadas de pesquisas educacionais são suficientes para assegurar a necessidade de atualização dos programas de Física na Educação Média. Entretanto, são poucas as pesquisas relacionadas à implementação de tópicos de teorias modernas e contemporâneas. Professores da escola média e pesquisadores em ensino parecem tatear, movendo-se muito lentamente, como se estivessem no escuro, temendo por demais cada novo passo. Certamente, a cautela na abordagem de FMC no Ensino Médio não é difícil de ser entendida. Os desafios são impostos não apenas pela complexidade intrínseca destes tópicos, como também por uma insegurança inerente a qualquer tentativa de mudança no domínio escolar. Acrescente-se a isso, o sistema de ensino que, na maioria das vezes, dificulta, e até impede, qualquer tipo de inovação. Grande parte dos professores está presa a um cenário pedagógico sem muita flexibilidade, seja por prescrições de conteúdo, horários restritos e especificidades de suas próprias disciplinas. Não é incomum o professor sentir-se cerceado pelas condições que lhe são impostas na escola, como a preocupação exacerbada com o cumprimento do programa ou a pressão por resultados no vestibular. Isso sem levar em conta o tamanho das turmas e a extensão dos currículos[1] .

        Desta forma, cada inovação curricular se torna uma pequena batalha travada entre professores, escola e alunos. Infelizmente, na maioria das vezes, é uma guerra de derrotados, sem qualquer vencedor. Como não se vence uma batalha sem conhecer bem seus “inimigos”, é preciso entender em profundidade os motivos que tornam o ensino tradicional de Física tão refratário às mudanças. Acreditamos que ao compreender melhor como a produção científica migra da comunidade acadêmica para a sala de aula, estaremos mais capacitados para a proposição de alternativas que garantam uma inserção efetiva de conceitos de Física Moderna (FM) no Ensino Médio. Em particular, neste artigo, trataremos especialmente de elementos da Física Quântica.
 
 

2 - A transposição didática

        A idéia de Transposição Didática foi formulada originalmente pelo sociólogo Michel Verret, em 1975. Porém, em 1980, o matemático Yves Chevallard retoma essa idéia e a insere num contexto mais específico, fazendo dela uma teoria e com isso analisando questões importantes no domínio da Didática da Matemática. Em seu trabalho, CHEVALLARD (1991) analisou como o conceito de “distância” nasce no campo da pesquisa em matemática pura e reaparece modificado no contexto do ensino de Matemática. Ele define a Transposição Didática como um instrumento eficiente para analisar o processo através do qual o saber produzido pelos cientistas (o Saber Sábio) se transforma naquele que está contido nos programas e livros didáticos (o Saber a Ensinar) e, principalmente, naquele que realmente aparece nas salas de aula (o Saber Ensinado). CHEVALLARD analisa as modificações que o saber produzido pelo “sábio” (o cientista) sofre até este ser transformado em um objeto de ensino.

        Segundo essa teoria, um conceito ao ser transferido, transposto, de um contexto ao outro, passa por profundas modificações. Ao ser ensinado, todo conceito mantém semelhanças com a idéia originalmente presente em seu contexto da pesquisa, porém adquire outros significados próprios do ambiente escolar qual será alojado. Esse processo de transposição transforma o saber, conferindo-lhe um novo status epistemológico (ASTOLFI, 1995).

        De maneira geral, CHEVALLARD pretende que os conhecimentos (saberes) presentes no ensino não sejam meras simplificações de objetos tirados do contexto de pesquisas com o objetivo de permitir sua apreensão pelos jovens. Trata-se, pois, de “novos” conhecimentos capazes de responder a dois domínios epistemológicos diferentes: ciência e sala de aula.
Em cada época, é necessário que o conhecimento científico escolar esteja fundamentado no conhecimento produzido pelos cientistas, e que esse já tenha sido aceito de uma forma consensual pela comunidade científica. A pesquisa em Física induz a um Ensino de Física que deva, a princípio, ser sua própria imagem e semelhança. A partir disso, idéias, conceitos, teorias são, então, transpostos para os programas escolares e materiais didáticos. No entanto, o conhecimento acadêmico deve ser “adaptado” ao ambiente das salas de aula. Isso pode sugerir a idéia de que o Saber a Ensinar e o Saber Ensinado sejam pouco diferentes daqueles presentes nos laboratórios e grupos de pesquisa. Essa forma de conceber o ensino traz embutida a idéia de simplificação do saber.
 

        “À primeira vista somos levados a interpretar que o saber a ensinar é apenas uma mera “simplificação ou trivialização formal” dos objetos complexos que compõem o repertório do saber sábio”. (ALVES-FILHO, 2000, p.225)


        Para ALVES-FILHO, esta visão simplificada “é equivocada e geradora de interpretações ambíguas nas relações escolares, pois revela o desconhecimento de um processo complexo de transformação do saber.”[2]

        Para o aluno, esta idéia de simplificação do conhecimento transforma-se em um obstáculo ainda maior. A imensa maioria dos conceitos apresentados aos alunos tem pouco (às vezes nenhum) significado para eles. Assim, aquilo que lhes é ensinado difere totalmente do que vivenciam fora da escola. Com isso, raramente conseguem aplicá-los em qualquer outra situação que não sejam aquelas fornecidas dentro da sala de aula. As famosas “condições ideais” só existem nos livros, de maneira que
 

“(..) os exercícios ou problemas jamais tratarão de casos reais, estabelecendo sempre situações ideais. Algumas observações são muito freqüentes ao longo da dinâmica no Ensino Médio, como:
exclua a resistência do ar;
considere o plano perfeitamente liso e sem atrito;
despreze as dimensões do corpo e;
considere o valor de g constante durante o movimento”. (OFUGI, 2001, p.65 )
        É preciso deixar claro que a “simplificação” aqui tratada precisa ser diferenciada da escolha consciente de modelos simplificados, que remetem ao processo de modelagem científica. Certamente, a construção de modelos pela Ciência para a apreensão do real visa transformar situações complexas em situações mais simples, afim de poder tratá-las por meio de teorias disponíveis. Com isso, neste processo, abstrações, simplificações e idealizações são implementadas, sem que, no entanto, os limites e possibilidades de tais opções sejam esquecidas, ficando o modelo condicionado às mesmas. Logo, a modelagem científica é imprescindível para a construção da ciência e, também, para seu ensino[3] . O lançamento oblíquo, por exemplo, é apresentado nos livros didáticos de física na forma de um modelo simplificado. Embora haja comentários sobre a desconsideração da resistência do ar, raramente há menção à variação da aceleração da gravidade e à esfericidade da Terra. Ou seja, trata-se de um modelo adequado ao estudo de lançamentos envolvendo distâncias muito menores que o raio da Terra. Ele permite lidar com a complexidade dos lançamentos nessa ordem de grandeza.  O aspecto “modelador” do saber ensinado é, assim, ocultado do aluno. Os autores desses livros, ao não informarem ao aluno-leitor sobre necessidade da modelagem, impedem a percepção do fazer científico e sugerem que se trata apenas de uma representação simplificada do fenômeno. Assim, nossa crítica é feita no sentido de enfatizar o quanto a transposição dos saberes científicos para a sala de aula induz a uma idéia de simplificação, de que, ao se ensinar Física no Ensino Médio, tem-se apenas um processo onde o cerne é “tornar mais simples” conceitos complicados, algo que difere totalmente das idealizações presentes no processo de modelagem.

        Esta suposta “simplificação” gera, na verdade, um novo saber, com novo estatuto epistemológico, o Saber Escolar.

“O que percebemos é que não existe uma neutralidade na apresentação dos conteúdos, e sim a criação de uma Física Escolar, que embora possua vínculos com a Física Científica, se mostra completamente modificada e transformada”. (OFUGI, 2001, p.68)
        Mais que razoável, é até desejável que ocorra a produção de um novo saber, mesmo com os riscos inerentes ao processo de criação. As motivações e objetivos de se ensinar e aprender ciências são extremamente diferentes daqueles presentes no fazer científico. Há uma mudança de nicho epistemológico, o que implica numa inevitável transformação do conhecimento. Por isso, o Saber Ensinado e o Saber Sábio, embora conectados, são diferentes.

        Um indício da transformação dos saberes (e não uma mera simplificação) na Transposição Didática é a existência de atividades, objetos e áreas de estudo presentes no ensino, sem equivalência com a área de pesquisa em física ou contextualizadas diferentemente desta. Algumas situações de ensino guardam alguma relação com o conhecimento de sua área específica, mas na verdade possuem identidade própria. Elas “existem” apenas como criações didáticas. Neste sentido, OFUGI afirma que

“Boa parte dos exercícios de Cinemática e Termometria, por exemplo, nunca foram objeto de estudo da Física. Não existe nenhum grupo de físicos estudando transformações de escalas termométricas, nem tampouco algum que tenha como objeto de pesquisa o tempo de queda de uma lasca de madeira que se solta de uma ponte [Cálculos como esse ou similar estão presentes em vários livros do Ensino Médio quando o tema MRUV ou Queda-Livre é tratado]”. (OFUGI, 2001, p.67)
        O que dizer do conteúdo escolar associado à associação de resistores e capacitores (circuitos série, paralelo e mistos) presentes na maioria dos livros didáticos? Na forma como são apresentados para o ensino, certamente esses conteúdos nunca foram objeto de pesquisa. Podemos também citar a forma como a cinemática é tratada nos cursos de Física do Ensino Médio. Em que período histórico as condições de ultrapassagem de móveis, o cálculo do tempo de queda em lançamentos verticais, o cálculo do deslocamento necessário para frenagem foram objeto de pesquisa científica? Seria um exercício indevido de associação histórica acreditar que tudo o que compõe o currículo escolar de Física tenha equivalente na esfera do Saber Sábio. Nesse sentido, a Transposição Didática contém Práticas Sociais de Referência como balizadores de saberes escolares.[4]

        As simplificações existem no processo de Transposição Didática. Isso é, muitas vezes é necessário limitar a profundidade conceitual e as linguagens empregadas em algumas situações. Um dos motivos que justificam essa simplificação é decorrente, entre outras, da disponibilidade de tempo (carga horária), dos objetivos do curso, da maturidade dos estudantes etc. As escolhas e adaptações são inevitáveis quando se deve fazer caber três ou quatro séculos de Física em duas ou três aulas semanais ao longo de três anos.

        Desta forma, analisar a evolução do saber que se encontra na sala de aula através da Transposição Didática possibilita uma fundamentação teórica para uma prática pedagógica mais reflexiva e questionadora. Para CHEVALLARD, isso equivale à capacidade, e necessidade constante, do professor exercer uma vigilância epistemológica em seu magistério. A Transposição Didática é para o professor

“[...]uma ferramenta que permite recapacitar, tomar distância, interrogar as evidências, pôr em questão as idéias simples, desprender-se da familiaridade enganosa de seu objeto de estudo. Em uma palavra, é o que lhe permite exercer sua vigilância epistemológica”. (CHEVALLARD, 1991, p.16)


3 - Anatomia da transposição didática

       CHEVALLARD mostra que a forma de relacionamento entre o Saber Ensinado e o Saber Sábio é um dos pontos fundamentais em toda a didática. Estas relações ocorrem dentro de um ambiente que configura um contexto escolar (o Sistema Didático); um pequeno universo que se encontra dentro de um ambiente externo (o Sistema de Ensino). Este último é tido como “algo” mais amplo. O Sistema de Ensino, seria, por exemplo, o sistema educacional e/ou as escolas de um país e, que acabam sempre por influenciar o Sistema Didático .

“O entorno imediato de um sistema didático está constituído inicialmente pelo sistema de ensino, que reúne o conjunto de sistemas didáticos e tem ao seu lado um conjunto diversificado de dispositivos estruturais que permitem o funcionamento didático e que intervem nos diversos níveis”. (CHEVALLARD, 1991, p.27)
        O Sistema de Ensino também se encontra inserido dentro de um contexto ainda mais amplo e complexo, a Sociedade. De maneira geral, poder-se-ia exemplificar a sala de aula como um Sistema Didático, a escola, ou a rede de ensino de uma cidade, como o Sistema de Ensino.

        A mediação entre a sociedade e o Sistema de Ensino é realizada pela noosfera, considerada como o ambiente onde

“se encontram todos aqueles que, tanto ocupam os postos principais do funcionamento didático, se enfrentam com os problemas que surgem do encontro da sociedade e suas exigências; ali se desenvolvem os conflitos; ali se levam a cabo as negociações; ali se amadurecem as soluções”. (CHEVALLARD, 1991, p.28)


        O Sistema de didático sempre foi pensado, na pedagogia tradicional, como binário: composto por apenas dois atores: professor e alunos[5] . Por ser pensado como um sistema contendo apenas seres humanos, analisar os processos de ensino/aprendizagem exclusivamente como fruto das relações humanas limitava tais análise a resultados de natureza sociológica. Desta forma, as falhas e imperfeições humanas eram refletidas no ensino de maneira que os conflitos ali existentes passavam a serem vistos como algo inerente a esse tipo de relações. Porém, para CHEVALLARD, há a necessidade de se inserir o próprio conhecimento como objeto desse sistema, como ator do processo. Com isso, o tratamento sociológico não é suficiente para analisar o Sistema de Ensino, sendo necessário o aporte do conhecimento (o Saber, na terminologia da TD). O saber, assim, torna-se um elemento essencial na relação tida anteriormente como exclusiva entre professor e alunos. Ao fazer isso, CHEVALLARD amplia as possibilidades de análises teóricas desta relação: a epistemologia passa a ser um instrumento poderoso das análises do sistema didático, agora constituído por uma base ternária (professor, aluno, saber).

        A presença do saber, enquanto ator, cria duas novas relações: relação professor-saber e saber-aluno. Assim, para CHEVALLARD, o pensamento e construção do objeto de ensino se configuram sobre uma base ternária. Ou seja, essa manufatura do saber escolar acontece numa relação contendo três elementos: o professor, o aluno e o saber.

 “[...] uma vez que se torna possível falar desse terceiro termo, tão curiosamente esquecido: o saber, pode formular-se uma pergunta que concede à polêmica seu verdadeiro interesse: O que é então aquilo que, no sistema didático, se coloca sob o estandarte de O Saber? O “saber ensinado” que concretamente encontra o observador, que relação estabelece com o que se proclama dele fora desse âmbito? E que relação estabelece então com o “saber sábio”, o dos matemáticos[6]? Quais distâncias existem entre um e outro?”. (CHEVALLARD, 1991, p.15)


        CHEVALLARD mostra que, para entendermos realmente as relações que ocorrem dentro do Sistema de Ensino, deveríamos incluir o saber como elemento fundamental nesse processo. Com isso, acreditamos que ao compreendermos as alterações sofridas pelo saber, desde sua criação na comunidade científica até sua chegada nas salas de aula, seremos mais capazes de dar significado a esses conhecimentos apresentados nas escolas.
 

3.1 - A Noosfera

        Conforme já exposto anteriormente, em sua análise, CHEVALLARD define três esferas ou patamares de saber: Saber Sábio, Saber a Ensinar e Saber Ensinado. Cada uma destas esferas tem seus agentes pertencentes a diferentes grupos sociais, com interesses distintos e que, com regras próprias, influenciam nas mudanças sofridas pelo saber ao longo de seu percurso epistemológico. Porém, ao longo da trajetória sofrida pelo saber (do ambiente científico até à sala de aula) existem fatores externos ao sistema escolar, inseridos em um ambiente mais amplo, onde todas as três esferas coexistem e se influenciam. Nem tudo que chega deste ambiente externo tem reflexo na sala de aula.

        Os agentes reguladores, determinantes para a seleção e, principalmente, para as modificações que o Saber Sábio sofrerá, são os componentes dos bastidores de todas as mudanças, definidos por CHEVALLARD como a noosfera. Nela, encontram-se todos aqueles que, de uma forma ou de outra, influenciam nos rumos do ensino, fazendo com que o Saber Sábio se modifique até chegar às escolas.

        A noosfera é composta, em geral, por cientistas, educadores, professores, políticos, autores de livros didáticos, pais de alunos, entre outros. Cada um destes contribuindo com seus valores, preferências, idéias e objetivos específicos no delineamento dos saberes que chegarão à sala de aula. Cada esfera dos saberes possui seus sub-grupos de atores da noosfera, podendo haver ou não uma sobreposição entre grupos de esferas diferentes.

        Os agentes presentes no processo de mudança e adequação dos saberes são personificados na figura da noosfera. Ela atua como um mediador entre duas instâncias importantes, que são as necessidades e anseios da sociedade e o funcionamento do sistema escolar. Pode-se, então, dizer que

“A noosfera é o centro operacional do processo de transposição, que traduzirá nos fatos a resposta ao desequilíbrio criado e comprovado [entre os ideais e possibilidades dos saberes científicos](expresso pelos matemáticos, pelos pais, pelos professores mesmos). Ali [na noosfera] se produz todo conflito entre sistema e entorno e ali encontra seu lugar privilegiado de expressão. Neste sentido [do conflito de interesses], a noosfera desempenha um papel de obstáculo”. (CHEVALLARD, 1991, p.34)
        Na forma como Chevallard apresenta o papel da Noosfera, deve-se admitir que ela se constitui em local de convergência e debate de interesses diferentes. Os interesses internos da ciência, os ideais de formação dos cidadãos, os objetivos profissionais e de desenvolvimento do indivíduo, entre outros, se encontram nesse espaço de debate, onde os porta-vozes de cada grupo colocam seus argumentos visando a constituição de um consenso.  A importância relativa das ações de cada um desses atores num contexto histórico específico determina a forma final do Saber a Ensinar. Embora inevitável e legítima, a Transposição Didática não é, em si, um obstáculo à qualquer tentativa de modificação do saber escolar. A noosfera, por sua vez, desempenha esse papel de obstáculo a toda e qualquer tentativa de alteração, servindo como lastro que tende a manter o projeto educacional em curso, até que ela própria sofra modificações significativas.
3.2 - As Esferas do Saber

        As esferas de saber, bem como os membros da noosfera que participam de cada um destes domínios, são assim definidos por CHEVALLARD.

i - O Saber Sábio

        Para um conhecimento científico figurar dentre aqueles apresentados aos alunos é necessário que ele possua um balizador, uma fonte de referência produzida pela comunidade científica. O Saber Sábio é, então, aquele que aparece em revistas especializadas, congressos ou periódicos científicos. Este tipo de saber nasce da produção e trabalho de cientistas e intelectuais que, mesmo possuindo diferenças idiossincráticas ou diferentes visões de Ciências, fazem parte de uma mesma comunidade de pesquisa, com perfil epistemológico bem definido.

        Trata-se, assim, de um saber que é desenvolvido por cientistas nos institutos de pesquisas, e que passa pelo julgamento da comunidade científica, com suas normas e regras próprias[7]. Por isso, o Saber Sábio possui especificidades intrínsecas deste ambiente em que ele é gerado.
 

ii - O Saber a Ensinar

        Ao ser transposto para o ambiente escolar, o Saber transforma-se em um outro tipo de saber, passando a integrar novas demandas e ajustando-se a elas. Este saber deverá estar revestido de uma forma didática visando sua apresentação aos alunos. O Saber a Ensinar é, então, o saber que aparece nos programas, livros didáticos e materiais instrucionais.

        A esfera do Saber a Ensinar tem uma composição extremamente diversificada. Esta heterogeneidade pode ser uma fonte de conflitos, visto que seus membros lutam sempre em defesa de seus interesses, que nem sempre estão em sintonia entre si. Podemos considerar como integrantes desta esfera os autores de livros didáticos e divulgação científica, os professores, os especialistas de cada área, todo o staff governamental envolvido com educação e ciências e, até mesmo, a opinião pública.
 
 

iii - O Saber Ensinado

        O saber presente nos livros e programas não, necessariamente, coincide com aquele produzido em sala de aula. Ou seja, quando o professor efetivamente ensina em suas aulas, tendo como base o Saber a Ensinar, ele então produz o Saber Ensinado.

“O fato de o saber a ensinar estar definido em um programa escolar ou em um livro texto não significa que ele seja apresentado aos alunos desta maneira. Assim identifica-se uma segunda Transposição Didática, que transforma o saber a ensinar em “saber ensinado”. (ALVES-FILHO, 2000, p.220)
        Nessa esfera há, portanto, o predomínio de valores didáticos, pois agora a finalidade desta transposição está voltada para o trabalho do professor em sua prática diária. Assim, a “didática entra nessa relação como uma forma de otimizar as conexões do aluno, frente às informações que se deseja repassar”.[8]

        Na esfera do Saber Ensinado todos os seus membros convivem em um mesmo ambiente que é a própria instituição escolar. Fazem parte destes grupos os alunos, proprietários de estabelecimentos de ensino, os supervisores e orientadores educacionais, a comunidade dos pais e, principalmente, os professores. Assim, o professor, desde o instante em que prepara suas aulas, tem que fazer a mediação entre os interesses dos membros desta esfera e os fins didáticos de sua prática.
 
 

4 - A sobrevivência dos saberes

        A Transposição Didática funciona como um instrumento de análise capaz de evidenciar o trajeto de um saber quando ele sai de seu ambiente de origem e chega até a sala de aula. É importante afirmar que nem todos os saberes do domínio do Saber Sábio farão parte do cotidiano escolar. O papel da noosfera na seleção dos saberes é imprescindível. Devem ser levados em conta os múltiplos fatores que influenciam as escolhas. Fatores que vão desde interesses políticos e comerciais, passando pelos anseios de uma sociedade que acredita na escola, até os interesses acadêmicos e pedagógicos inerentes ao magistério e à docência.

        O principal objetivo da noosfera é a otimização do ensino, buscando uma forma eficiente de conduzir o processo de ensino e aprendizagem. Sendo assim, ao se utilizar a Transposição Didática como instrumento de análise, pode-se obter indícios de características relevantes para que um determinado saber esteja presente nos livros didáticos e nas salas de aula. Ou seja, esta análise indica características que, combinadas, definiriam a sobrevivência de um Saber que visa se tornar objeto de ensino. Embora possa ser tentador tomá-las como um lista de atributos necessários ao Saber a Ensinar, deve-se ter em mente que se trata, na verdade, de uma gama de características julgadas em conjunto nas várias etapas do processo de transposição pelos atores envolvidos.

        CHEVALLARD define algumas dessas características. A primeira dela consiste em afirmar que para o Saber Sábio se transformar em Saber a Ensinar ele deve ser Consensual. Ao se ensinar Física professores, pais e alunos não devem ter dúvida se aquilo que é ensinado está correto ou não. Assim, este conteúdo deve ter, pelo menos neste momento, um status de “verdade”, histórica ou de atualidade. Isso indica o porquê de temas mais antigos e tradicionais serem preferidos àqueles ditos de fronteira. No Ensino de Física isso pode ser relacionado ao fato de temas de Astrofísica e Cosmologia, como evolução estelar e Big Bang, poderem até aparecer nos livros didáticos por uma imposição editorial, mas poucos professores tratam de tais assuntos em suas aulas. Contrariamente, cinemática, estática e conteúdos de mecânica clássica em geral são amplamente abordados nas aulas de Física.

        A segunda característica versa sobre relações de pertinência que o Saber Sábio deve possuir para ser transposto. Nesse sentido, Chevalard define dois “tipos” de Atualidade:

        i) Atualidade Moral: Esse saber deve estar adequado à sociedade. A atualidade moral diz respeito a um tipo de conhecimento que possa ser avaliado como importante pela sociedade e necessário à composição curricular. Caso ocorra uma inadequação desse saber, corre-se o risco de a sociedade não o ver como necessário nas escolas. Deve-se ficar claro que a questão aqui é de pertinência e não de valoração per se.

        ii)Atualidade Biológica: O saber deve possuir uma atualidade em relação à ciência praticada. Assim, ensinar ondas eletromagnéticas utilizando-se o éter como suporte material ou termologia usando o calórico como fluído térmico, exceto em uma perspectiva histórica, configura-se como uma inadequação biológica. O mesmo acontece com o ensino de Física Atômica utilizando-se o modelo de Thomson, Rutherford ou mesmo o modelo de Bohr. Na perspectiva dos membros da comunidade científica específica, tais conteúdos seriam considerados inadequados, pois se constituem em modelos ultrapassados. No entanto, essa inadequação, tomada isoladamente, não impede que tais conteúdos sejam alçados à sala de aula como Saberes a Ensinar. Os modelos atômicos de Thomson, Rutherford e Bohr, por exemplo, constituem-se em Saberes a Ensinar, e estão presentes em vários livros didáticos de Física e Química.  Ou seja, embora não tenham atualidade Biológica, congregam outros atributos importantes em termos da sobrevivência dos saberes escolares.[9]

        Outra característica importante nesse contexto é a Operacionalidade: O Saber a Ensinar deve ser Operacional. Um saber que é capaz de gerar exercícios, produzir atividades e tarefas que possibilitem uma avaliação objetiva tem grandes chances de ser transposto. Conteúdos que não conseguem gerar atividades possíveis de serem avaliadas estão fadados a não serem transpostos. Uma seqüência didática considerada boa, (com conteúdos e atividades tidas como interessantes) porém não “operacionalizável” não será adequada à gestão do cotidiano escolar, pois não se consegue fazer os estudantes “trabalharem” com ela. Assim, corre-se o risco de o aluno considerar aquele conteúdo sem importância, desistindo de disponibilizar esforços para aprendê-lo.

        No processo de transposição deve haver Criatividade Didática: Um Saber Sábio deve permitir que haja uma Criatividade Didática, para que seja transposto para o contexto escolar. Isso implica na criação de um saber com identidade própria no contexto escolar. Existem muitas atividades e áreas de estudo que são produzidas para o ensino, mas que não têm equivalente na área de pesquisa, como por exemplo, os exercícios de associação de resistores em circuitos elétricos, as transformações de escalas termométricas, os vasos comunicantes etc. Em situações como essas, cria-se uma situação de ensino que guarda alguma relação com o conhecimento da dimensão sábia, mas na verdade trata-se de um objeto com “identidade didática”. Ele “existe” somente no contexto do ensino, configurando-se assim como fruto de uma criatividade didática. A Cinemática em geral, ensinada na escola, pode ser vista sob esse ponto de vista. Fruto de uma criatividade didática enorme, é resultante de um longo e bem sucedido processo de transposição didática, incorpora aspectos valorizados no processo de ensino: é consensual; possui uma alta operacionalidade e capacidade de avaliação.

        O Saber a Ensinar deve também se submeter aos testes in loco, adquirindo por assim dizer um “selo de qualidade”. Isso é definido por CHEVALLARD como Terapêutica. Existe uma peça fundamental para a sobrevivência dos saberes: os resultados obtidos com sua aplicação em sala de aula. A “experiência”, em termos de uma avaliação, a posteriori e coletiva da área envolvida é fundamental para a manutenção (ou não) dos saberes introduzidos no domínio do ensino. Desse ponto de vista, o conjunto de saberes-a-ensinar presente nos programas escolares é, em determinado momento histórico, a somatória dos sucessos alcançados pela área no processo de transposição. Em poucas palavras, o que dá certo, dentro das características que ressaltamos, se mantém na escola, o que dá errado acaba saindo[10] .

        As categorias acima permitem melhor entender porque as inovações curriculares são raras, podendo indicar motivos que justifiquem o fato de a FMC ainda estar pouco presente nas escolas: Talvez porque ainda não se conseguiu que estes tópicos “dêem certo” no processo de ensino. Com isso, eles continuam nos livros universitários, nas propostas curriculares (PCNs), porém não estão presentes nas salas de aula. Por outro lado, a Cinemática, a tabela periódica e classificação dos seres vivos mantêm-se há tanto tempo no cotidiano escolar, apesar de muitas vezes serem menos significativos para os alunos. Estes conteúdos deram certo no sentido de que estão adaptados às características e necessidades do Sistema de Ensino. No entanto, se isso pode se constituir como uma força nos sentido de manutenção da tradição, há que se considerar que as inadequações desses conteúdos ao projeto atual de cidadania, aos interesses dos estudantes etc funcionam como forças no sentido da inovação. O embate dessas duas forças se dá no âmbito da noosfera, de forma que o futuro poderá informar qual o balanço obtido.

        ASTOLFI[11]  elaborou cinco regras que deveriam ser observadas durante o processo de Transposição Didática, que têm uma ligação direta com as características apresentadas acima. Essas regras permitem melhor descrever a dinâmica de transformação do saber e acabam por complementar a idéia original da sobrevivência dos saberes. Essas regras são:
 

Regra I. Modernizar o saber escolar.

        Os novos saberes que surgem no âmbito das pesquisas científicas e que são utilizados pelas indústrias e novas tecnologias são passíveis de estar contidos nos livros didáticos, criando uma aproximação da produção acadêmica com o que é apresentado na escola.

“A introdução de tópicos como “código de barras, funcionamento de um CD, termômetros óticos, fotocopiadora...”, por exemplo, são os indicativos de uma modernização do saber a ensinar”. (ALVES-FILHO, 2000, p.235).
 A modernização dos saberes escolares é uma necessidade, pois legitima o programa da disciplina, garantindo seu lugar no currículo.
 

Regra II . Atualizar o saber a ensinar

        Ao fazer a revisão de um livro didático deve-se ir além de apenas acrescentar novos saberes. Há a necessidade de se eliminar alguns saberes que, embora corretos, devem ser descartados por  estarem demais banalizados.

“Alguns objetos do saber, com o passar do tempo, se agregam à cultura geral que, de certa forma, passa a dispensar o formalismo escolar. Outros perdem o significado por razões extracurriculares e/ou escolares.[...] Regra que poderia ser entendida como a “luta contra obsolência didática””. (ALVES-FILHO, 2000, p.236).
        Ou seja, a instrução formal pretendida no Sistema de Ensino deve se limitar àquela que não se encontra diluída na cultura da sociedade.[12]
 
 

Regra III. Articular o saber “novo” com o “antigo”

        A introdução de novos saberes deve ser feita de forma articulada com outros saberes já alojados nos programas de ensino. Negar radicalmente um conteúdo já tradicionalmente presente no Sistema de Ensino pode gerar desconfiança por parte dos alunos para tudo aquilo que se deseja seja aprendido por ele na disciplina. Um exemplo dessa articulação do novo com o velho é a introdução do eletromagnetismo sem a negação da eletrostática e da magnetostática[13] . Nos livros e programas de Física, tanto no Ensino Médio como em nível universitário básico, os capítulos destinados ao eletromagnetismo aparecem posteriormente ao estudo da interação entre cargas paradas e das propriedades magnéticas da matéria. O mesmo acontece com a introdução do conceito de campo elétrico em articulação historicamente anacrônica e epistemologicamente incorreta com a força coulombiana. Isso pois, no contexto da eletricidade e do magnetismo, força e campo são conceitos basilares de programas de pesquisa concorrentes. Os programas coulomb/laplaciano (século XVIII/XIX) e faraday/maxwelliano (século XIX) propunham concepções de mundo muito diferentes. As interações elétricas e magnéticas seriam, para os primeiros, resultado da ação de forças à distância, enquanto, para o segundo, conseqüência da ação mediada dos campos.  Os segundo e terceiro quartos do século XIX foram palco para debates acalorados entre esses programas, envolvendo protagonistas como Coulomb, Laplace, Ampèré, Biot, Faraday, Maxwell, Thomson, dentre outros. Nos livros didáticos, Força e Campo são apresentados em seqüência, sem nenhuma alusão a conflitos. Inclusive, a fórmula presente na maioria dos livros   E = F/q, parece indicar que ambos conceitos são manifestação de um mesmo todo teórico.
 

Regra IV. Transformar um saber em exercícios e problemas.

        O Saber Sábio capaz de gerar uma ampla variedade de exercícios e atividades didáticas tem uma maior chance de ser transposto e se tornar Saber a Ensinar. A operacionalização do Saber em atividades para os estudantes é um dos critérios mais importantes para a sua presença na sala de aula. Operacionalidade, nos termos da Transposição Didática, deve ser entendida como uma maneira através da qual uma atividade pode gerar formas de se “lidar” com o sistema de ensino (o sistema didático, em especial). Não é uma característica vinculada apenas ao saber, visto ser fundamental para o gerenciamento do Contrato Didático, estabelecido entre professor-aluno-saber. A operacionalidade é um atributo importante, pois garante a gestão do cotidiano escolar.[14]
 

Regra V. Tornar um conceito mais compreensível.

        A Transposição Didática deve permitir a aprendizagem de conceitos, caso contrário, ela não pode ser legitimada. Isso em grande parte devido à necessidade de gestão do Contrato Didático por parte do professor[15]. Sobre esse ponto, é fundamental que os papéis de professor e aluno possam ser efetivamente cumpridos, resumidamente indicando que ao professor cabe ensinar e ao aluno aprender.

        A partir da exposição acima, pode-se avaliar que a Transposição Didática fornece critérios mínimos para se entender a produção e sobrevivência de saberes no Sistema Didático. A partir dela é possível explicar, em parte, porque em disciplinas com longa tradição, como a Física, os programas se mantêm pouco modificados ao longo de décadas, ou talvez séculos! O “velho” sobreviveu às vicissitudes da sala de aula: produziu atividades capazes de serem realizadas pelos alunos; pôde ser avaliado pelos professores, e a terapêutica confere-lhe a confiança necessária para permanecer. Por outro lado, as necessidades de atualização e modernização dos saberes concorrem no sentido de promover mudanças, que no entanto acabam por raramente ocorrer. Isso porque nas ciências em geral, e na Física em particular, tais necessidades muitas vezes são relativizadas em face de dificuldades internas ao próprio conhecimento, tais como:

        1º - Aproximações: a mecânica newtoniana não é estritamente “moderna”, nos termos acima mencionados, tendo sido suplantada pela relatividade einsteiniana. Porém fornece bons resultados experimentais quando aplicada ao cotidiano, onde as velocidades dos corpos são pequenas quando comparadas à da luz.

        2º - Hermeticidade: pela sua estruturação conceitual, abstração e formulação em linguagem matemática, os conhecimentos presentes nas ciências físicas são poucos assimiláveis pela cultura popular. Ou seja, mesmo conteúdos extremamente “velhos”, como a cinemática, ainda hoje não fazem parte do senso comum dos indivíduos do século XXI.

        Nessa perspectiva, temas dos séculos XVII, XVIII e XIX, como, por exemplo, Cinemática, Termodinâmica e Eletricidade, figuram de forma majestosa nos currículos atuais por terem se adequado ao ambiente escolar. Temos, assim, uma estrutura curricular que tende a se manter, apesar da defasagem que hoje chega a mais de três séculos.
 

5 - Transposição didática: um olhar sobre a Física Moderna

        A discussão sobre atualização nos programas e currículos de Física pode ser encaminhada face à caracterização proposta pela Transposição Didática. Um procedimento poderia ser analisar os conteúdos ligados à Teoria Quântica (foco deste trabalho) a partir da sobrevivência dos saberes acima expostos.

        Inicialmente, não há dúvida de que a maior parte dessa teoria seja consensual no seio da comunidade científica, embora possa haver profundas discordâncias acerca da melhor forma de se interpretar o que ocorre no mundo microscópico[16]. O problema das várias interpretações possíveis na descrição do mundo microscópico tem sido palco para debates acalorados no domínio da filosofia nos últimos 80 anos, mas tais debates são cada vez menos presentes no domínio da ciência ela mesma (ver PESSOA JUNIOR, 2000). Mantendo-se a seleção de conteúdos restrita aos aspectos do formalismo matemático da Teoria Quântica, não há motivos para não considerá-la consensual. Embora possa se discutir, como faremos mais abaixo, sobre a pertinência ou não de transpor para o Ensino Médio estas discussões restritas ao aspecto do arcabouço matemático que a estrutura.

        Em relação aos demais critérios, é indiscutível que ela possui uma atualidade biológica (é a teoria que melhor representa a gama de dados empíricos obtidos nas pesquisas) e, certamente, tem atualidade moral (está na base de todo o progresso científico-tecnológico presente na sociedade moderna). No entanto, o maior problema surge de sua baixa operacionalidade em termos de produção de atividades para os estudantes quando comparada aos conteúdos clássicos. Por um lado, esse problema está ligado a criatividade didática, e por outro lado à terapêutica, ambas ainda por serem construídas, pois as experiências de ensino com a introdução de conteúdos da teoria quântica no sistema de ensino ainda são recentes.

        Em relação à produção de atividades, é importante notar que um saber que sobrevive no Ensino Médio é aquele que pode ser transformado em uma série de exercícios semelhantes, como os que aparecem nos livros didáticos e outros materiais de ensino. No entanto, segundo a Transposição Didática, a operacionalidade deve ser vista em conexão estrita com os processos de desenvolvimento das atividades e de avaliação. As atividades devem ser pensadas de forma a que professor e aluno sejam capazes de ter consenso sobre o que fazer e como avaliar o resultado das atividades propostas. Quando a realização e a avaliação de atividades parecerem “normais” para ambos, configura-se uma situação de pertinência da atividade para com as exigências didático-pedagógicas da sala de aula. Em termos gerais, a operacionalidade:

“é a regra que reflete o maior grau de importância no processo transformador do saber, ao criar uma ligação muito estreita com o processo de avaliação [...] Este procedimento desenvolve uma avaliação “neutra”, pois não há discussão sobre a resposta numérica. A resposta está certa ou errada, não havendo margem para discussões. Além de eliminar dúvidas de julgamento este tipo de exercício é de fácil correção, diminuindo a carga de tarefas do professor”. (ALVES-FILHO, 2000, p.238)


        Em termos das “regras” acima propostas por ASTOLFI, as de número IV e V são aquelas a desafiar a criatividade dos físicos-educadores. A tarefa de gerar compreensão dos conceitos e leis associados à Teoria Quântica é das mais difíceis. Por um lado, boa parte do entendimento desta teoria está relacionada ao domínio de uma linguagem matemática muito sofisticada. As equações de onda, números imaginários, funções de probabilidade, matrizes, etc. não são dominadas amplamente pelos estudantes do Ensino Médio. Por outro lado, a incerteza e a interpretação probabilística são recursos imprescindíveis para representar o mundo microscópico e nem sempre são conceitos fáceis de serem utilizados pelos mesmos estudantes.

        Transpor a Teoria Quântica para a sala de aula do Ensino Médio deve ser vista como uma tarefa das mais complexas, pois de um lado têm-se as exigências epistemológicas inerentes ao campo de conhecimento produzido pela Física Moderna, muito distantes dos padrões de entendimento forjados no mundo cotidiano. Por outro lado, as exigências do domínio escolar não são menores, pois ideologia, necessidades de natureza didática e tradição se entrelaçam na constituição de um domínio particular. Tem-se de fato um problema complexo e com solução não óbvia: como satisfazer a ambos domínios? Será possível manter o rigor conceitual e ao mesmo tempo satisfazer as exigências do sistema didático?

        Em termos práticos, temos observado propostas de ensino divididas em dois grupos:

        i) aquelas que se mantêm mais alinhadas com as exigências conceituais do saber sábio e portanto, mais próximas dos saberes a ensinar presentes nos cursos universitários básicos (MÜLLER, R.; WIESNER, H. 2002; MICHELINI, M. et all. 2000. OSTERMANN, F.; FERREIRA, L. M., CAVALCANTI, C.J.H. 1999. OSTERMANN, F., PUREUR, P., 2005; BARTHEM, R. 2005). O problema nessa tendência é que tais propostas excluem a maioria dos professores de Física e boa parte dos estudantes do Ensino Médio. Seja por falta de domínio conceitual ou do formalismo matemático, o Saber a Ensinar fica restrito a poucos professores, que por sua formação privilegiada em Física, são capazes de ensiná-los no Ensino Médio. A possibilidade de aprendizagem dos estudantes é ainda uma questão em aberto em termos de pesquisa.

        ii) Outras propostas mais próximas das exigências do sistema didático e portanto mais semelhantes ao que vem sendo feito nas aulas de Física da Escola Média. Nessa última tendência, existe a tentativa de se utilizar a mesma estrutura de transposição que transformou a Cinemática, ou a Dinâmica com seus inúmeros problemas de bloquinhos em atividades de ensino. Ela conduz à criação de exercícios similares àqueles desenvolvidos em boa parte dos livros didáticos tradicionais, de forma que se muda apenas o nome dos elementos envolvidos nos exercícios (Por exemplo, ver exercícios: 9, p.297; 13, p.298; 9, p. 320; 1, p. 359; 3, p.365; 11 e 12, p. 382; GASPAR, G. 2000). Assim, um exercício comum que aparece quando se intenciona inserir Física de Partículas nas escolas é, simplesmente, transformá-la em colisões de bolinhas e exigir o cálculo de quantidade de movimento para descrever seu comportamento. Estas bolinhas, agora com nomes excêntricos como elétrons, prótons, nêutrons etc. são na verdade as mesmas bolas de sinuca que antes colidiam numa mesa de bilhar. Ou seja, criar exercícios que trabalhem conceitos de FMC utilizando o mesmo molde, ou o mesmo tipo de operacionalidade existente na FC é “vender vinho velho em garrafa nova”. Assim, apenas troca-se relação F = m a por E = h ?. Vale dizer ainda que outro problema pode acompanhar a produção e aplicação dessas novas atividades; utilizando o mesmo modelo de exercícios corre-se o risco de transformar a FMC em algo tão cansativo, inexpressivo e enfadonho quanto é o ensino da Cinemática em muitos casos. Não se deve imaginar que exercícios deste tipo não tenham nenhum valor, nem que devam estar fora de cursos introdutórios de FMC. Porém, seu valor deve ser atrelado ao que seria possível obter em termos de entendimento do mundo microscópico através deles. Ou seja, as atividades a serem criadas devem cumprir esses quesitos e ainda conseguir abarcar o novo contexto epistemológico definido pelos conhecimentos da FMC.
 

6 – Conclusões

        Do acima exposto, poderia parecer que a discussão sobre a introdução de conteúdos das modernas teorias nos currículos de Física se encaminha para um impasse. No entanto, pode-se contornar esse impasse através da realização de escolhas, que inevitavelmente determinarão direções a serem seguidas na implementação da transposição didática. Isso implicaria em supressão de alguns conteúdos/ênfases em benefícios de outros. Millar (1996), por exemplo, sugere “ensinar menos e melhor”. Assim, parece-nos possível introduzir conteúdos modernos através de uma transposição didática centrada em atividades que tenham uma maior ênfase na argumentação de cunho filosófico, privilegiando o debate e as características mais qualitativas do conhecimento. Essa perspectiva parece capaz de contornar os obstáculos gerados pelas representações probabilísticas e pelo formalismo matemático, inerentes a essa nova teoria. No entanto, tais atividades encontram resistência no ensino tradicional. Como afirma ALVES-FILHO

“De fato, observa-se que os objetos de ensino que permitem a elaboração de exercícios e problemas, são mais valorizados no espaço escolar, em detrimento daqueles que ficam restritos à argumentação teórica”. (Ibid, 2000, p.238)
        De alguma forma, os professores de Física, os autores de livros didáticos, os formuladores de programas curriculares, os dirigentes escolares, os pais de alunos, ou seja, a Noosfera, devem ser capazes de se libertar das regras de sobrevivência que geraram o Saber Escolar tradicional. Ao buscar uma nova “rota” para a transposição didática, estaremos abertos ao estabelecimento de novas “regras” nas quais possa se vislumbrar a acomodação entre os requisitos da ciência com aqueles da sala de aula. Esse novo Saber Escolar deve ser avaliado em termos da motivação que ele gera e de seu sucesso entre os alunos. Porém agora o sucesso deve também ser visto no sentido de entendimento, prazer e significação e não apenas em termos de adaptabilidade.
 
 

8 – Referências

ALVES-FILHO, J.P. Atividades Experimentais: Do Método á Prática Construtivista. Tese de Doutorado, UFSC, Florianópolis, 2000.
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ASTOLFI, J-P e DEVELAY, M. A Didática das Ciências. Papirus. Campinas, 1995.
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[1] Embora pudéssemos iniciar este artigo discutindo aspectos relacionados à perspectiva formadora do currículo (para o trabalho, para a cidadania, etc) preferimos tratar o dilema curricular centrando nossa análise basicamente no que é conhecido como currículo tradicional. Com isso, pretendemos revelar os limites e possibilidades de se alterá-lo, renová-lo, atualizando-o, visando a introdução de temas modernos. Este será o nosso recorte. Nesse sentido, autores que tratam especificamente de currículo não serão tratados. Caso haja interesse nesta discussão por parte dos leitores, os seguintes autores podem ser consultados: Millar e Osborne (1998) e Robin Millar (1996). (volta para o texto)
[2] ALVES-FILHO, 2000, p.225. (volta para o texto)
[3] Para discussões acerca do papel dos modelos na Ciência e no Ensino de Física, ver :PIETROCOLA, 1999. (volta para o texto)
[4] Para mais detalhes sobre tal noção, ver MARTINAND (2003). (volta para o texto)
[5] O aluno aparece aqui como categoria, como um ente da relação. (volta para o texto)
[6]Ou Físico, ou Biológico etc dependendo, obviamente, do saber de referência em questão. (volta para o texto)
[7] Deve-se ressaltar que tais regras e normas são construídas historicamente e devem estar em consenso com a comunidade acadêmica, visto objetivam validar os conhecimentos científicos produzidos. (volta para o texto)
[8] OFUGI, 2001, p.80 (volta para o texto)
[9] Avaliando tais conteúdos exclusivamente do ponto de vista do Saber Sábio, vale dizer que tratam-se de modelos ultrapassados cientificamente, embora capazes de representar, com certo sucesso, situações limitadas. (volta para o texto)
[10] A terapêutica, de certa forma, está ligada com a formação de professores. Contudo, não é de maneira direta. A terapêutica é uma categoria que permite analisar o que funciona e o que não funciona na sala de aula. A formação ambiente do professor está calcada naquilo que ele vivenciou e naquilo que, na sua opinião, funcionou na sala de aula. Podemos, assim, dizer que a formação ambiente é a somatória dos casos de terapêutica positiva.(volta parao texto)
[11] ASTOLFI (1995). (volta para o texto)
[12] Essa regra nem sempre se aplica ao ensino de Física. Muitos dos conteúdos hoje considerados obsoletos, o são, não por sua diluição na cultura popular, mas não desempenharem papel algum no projeto de formação pretendido pela sociedade atual. (volta para o texto)
[13]  Vale dizer que a articulação do novo com o velho neste exemplo, e que aparece em diversos livros didáticos, não é a única. Existem autores que optam por não apresentar o eletromagnetismo associando a eletrostática e a magnetostática, preferindo desarticular o novo do velho. (volta para o texto)
[14] A operacionalidade no ensino de física é geralmente tratada por um senso comum da área, forjado ao longo de décadas de atividades didáticas semelhantes, envolvendo habilidades restritas ao contexto interno do próprio conhecimento. Na transposição tradicional da Física, temos uma herança da influência do positivismo, quando se perde de vista o fenômeno e centra-se na manipulação algébrica. Esta operacionalidade revela características do saber transposto, indicando a ascendência de uma tradição de ensino que teve sucesso no gerenciamento do cotidiano escolar. (volta para o texto)
[15] Ver para isso RICARDO, SLONGO E PIETROCOLA (2003). (volta para o texto)
[16] Como exemplo, podemos citar as discussões ligadas ao paradoxo de EPR, as Desigualdades de Bell ou os experimentos de correlação de fótons. Para maiores discussões ver EINSTEIN, PODOLSKY e ROSEN, 1935; BOHM e AHARONOV, 1957; ASPECT, GRANGIER e ROGER, 1981; BROWN, 1981, 1986; BEAUREGARD, 1982; CHIBENI, 1997; FREIRE JR., 1999.) (volta para o texto)
 
 

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