André Ferrer P. Martins
Departamento de Educação, Centro de Ciências Sociais
Aplicadas, UFRN
Campus Universitário, BR 101, Lagoa Nova
59072-970 Natal, RN, Brasil
aferrer34@yahoo.com.br
Jesuina L. de A. Pacca
Instituto de Física, USP
Caixa Postal 66318
05315-970 São Paulo, SP, Brasil
jesuina@if.usp.br
Resumo
Este trabalho tem como propósito
central compreender aspectos da construção do conceito de
tempo por estudantes do ensino fundamental e médio, a partir do
referencial epistemológico de Gaston Bachelard. O estudo principal
constou da realização de um total de 17 (dezessete) entrevistas
semi-estruturadas. A análise do material permitiu delinear as características
mais marcantes do processo de conceitualização do tempo,
representado por um caminhar no sentido da objetivação e
do racionalismo crescentes. Também foi possível avaliar a
pertinência de nosso referencial teórico na interpretação
desse processo. Particularmente, as noções teóricas
de obstáculo epistemológico e de perfil epistemológico
mostraram-se férteis quando confrontadas com os dados da pesquisa
empírica.
Palavras-chave: tempo, perfil epistemológico e Gaston
Bachelard.
Abstract
The aim of this work is,
based on the epistemology of Gaston Bachelard, to understand aspects of
the construction of the concept of time by elementary and high school students.
The main study consisted of 17 (seventeen) semi-structured interviews.
The data analysis allowed outlining the most distinctive characteristics
of the conceptualisation of time, a process that could be represented as
a movement towards an increasing objectivity and rationalism. It was also
possible to evaluate the relevance of our theoretical framework for the
interpretation of this process. Particularly, the theoretical notions of
epistemological obstacle and epistemological profile were fruitful when
confronted against the empirical data.
Keywords: time, epistemological profile and Gaston Bachelard.
Introdução
O intuito deste trabalho é apresentar os principais resultados de uma Tese de Doutoramento recém defendida junto à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Martins, 2004), cujo objetivo central era compreender aspectos da construção do conceito de tempo por estudantes do ensino fundamental e médio, a partir da epistemologia de Gaston Bachelard.
Nosso estudo partiu da constatação de duas grandes “ausências” na pesquisa em ensino de ciências: por um lado, a de estudos voltados especificamente a aspectos relacionados ao ensino e à aprendizagem do conceito de tempo. Por outro lado, a de trabalhos que se utilizam da epistemologia de Gaston Bachelard como referencial teórico de análise.
No que diz respeito ao tempo, há estudos destinados à compreensão do tempo geológico (p.ex.: Pedrinaci, 1993; Trend, 1998), assim como outros onde o conceito de tempo aparece imbricado com outros conceitos, mas não é o foco principal de atenção (p.ex.: Villani & Pacca, 1987; Ramadas et al., 1986; Mariani & Ogborn, 1991). A principal referência específica acerca do conceito de tempo físico é Proverbio & Lai (1989), que relatam um estudo com crianças de 7 a 11 anos de idade, mostrando que as mais novas estabelecem uma conexão entre “tempo físico” e “tempo meteorológico” ou “clima”, caminhando aos poucos para um conceito mais abstrato de tempo, independente das ações do sujeito ou de fenômenos percebidos por ele. Esse último estudo tem como um de seus suportes teóricos a obra A Noção de Tempo na Criança (Piaget, s/d), fundamental para a compreensão da construção do conceito de tempo por crianças de 5 a 9 anos de idade.
Tendo como ponto de partida os trabalhos elencados acima, a preocupação do nosso estudo foi a de buscar compreender a continuidade do processo de conceitualização do tempo físico, analisando faixas etárias maiores do que aquelas dos trabalhos de Piaget. Nosso foco foram as concepções de estudantes do ensino fundamental e médio acerca do conceito de tempo, na tentativa de identificação de obstáculos à construção desse conceito e à aprendizagem das teorias físicas.
No que diz respeito à epistemologia de Gaston Bachelard, há certamente trabalhos que fazem referência ao seu pensamento, no âmbito da pesquisa em ensino de ciências. No entanto, poucos são aqueles que se utilizam de elementos dessa epistemologia como verdadeiro aporte teórico, ou seja, como um referencial privilegiado de análise. A nosso ver, o pensamento bachelardiano ainda tem muito a contribuir na interpretação de resultados de pesquisa da área[1] , apesar das principais teses epistemológicas desse autor terem sido desenvolvidas há mais de sessenta anos.
Em nosso estudo, fizemos
uso principalmente de duas noções bachelardianas: a de obstáculo
epistemológico e a de perfil epistemológico. Apresentamos
a seguir um breve esboço dessas noções, assim como
o modo pelo qual as aplicamos na questão da construção
do conceito de tempo.
A epistemologia de Gaston Bachelard como referencial teórico
As noções de obstáculo epistemológico e de perfil epistemológico inserem-se no quadro de uma epistemologia que pode ser caracterizada como racionalista, histórica, dialética e descontinuísta. Infelizmente não poderemos aqui desenvolver essa caracterização da epistemologia bachelardiana, que nos fornece um modelo interpretativo do conhecimento científico e de seu progresso.
É justamente ao analisar o progresso do conhecimento científico que Bachelard funda o conceito de obstáculo epistemológico. Para ele, é em termos de obstáculos que o problema do conhecimento deve ser colocado, pois eles surgem inevitavelmente na relação dos sujeitos com os objetos do conhecimento, aparecem no “âmago do próprio ato de conhecer” – são obstáculos epistemológicos. Inerentes tanto ao desenvolvimento histórico da ciência quanto à prática cotidiana da educação, é a superação desses obstáculos que propicia o avanço do conhecimento. Isso vale quer para o sujeito individual quer para o “sujeito coletivo” da ciência.
Bachelard exemplifica a noção de obstáculo em sua obra A Formação do Espírito Científico (Bachelard, 1996). Para ele, são exemplos de obstáculos epistemológicos: a “observação primeira”, que tem a intenção de compreender o real a partir de um “dado” claro e imediato; o “conhecimento geral”, em que a generalização é capaz de imobilizar o pensamento; o “substancialismo”, que leva à atribuição de qualidades diversas e até opostas a uma mesma substância, ou faz corresponder, a toda qualidade, uma substância; o “animismo”, que resulta da aplicação da “intuição da vida” aos mais variados fenômenos. Tais obstáculos, que resultam da própria atividade cognitiva, dificultam a abstração e a construção dos objetos teóricos da ciência.
Se o progresso do conhecimento depende da superação de obstáculos, essa por sua vez nunca é definitiva. Para caracterizar esse progresso a partir dessa perspectiva, Bachelard é levado, então, a estabelecer um pluralismo filosófico. A evolução filosófica do conhecimento é compreendida por ele como um processo que atravessa fases, caminhando no sentido de uma maior coerência racional. Essas fases vão do animismo (ou realismo ingênuo) ao surracionalismo, passando pelo empirismo e pelo racionalismo tradicional. O surracionalismo engloba o que Bachelard chama de racionalismo complexo e de racionalismo dialético. É importante esclarecer, também, que Bachelard utiliza o termo ‘surracionalismo’ numa alusão ao alargamento filosófico proporcionado, principalmente, pela ciência em desenvolvimento no início do século XX. Para ele, a generalização do pensamento é uma característica desse “novo espírito científico”, em que uma mecânica não-newtoniana surge como generalização (apesar da ruptura) da mecânica newtoniana, podendo-se também falar numa lógica não-aristotélica, numa química não-lavoisiana, ou em geometrias não-euclidianas, no mesmo sentido (Bachelard, 1991). O real passa a ser um caso particular do possível. Bachelard cunha o termo ‘surracionalismo’ em analogia com o ‘surrealismo’ da arte, permitindo-se uma certa liberdade de pensamento que ilumine sua discussão epistemológica e esclareça, diferenciando-o, esse novo momento da ciência.
É com base nesse pluralismo
de “doutrinas filosóficas” que se funda a noção de
perfil epistemológico. Isso porque cada uma delas (do realismo ao
surracionalismo) esclareceria apenas uma face de cada conceito particular.
Assim sendo, não podemos classificar os indivíduos de “realistas”
ou “racionalistas”, mas atribuir aos seus pensamentos coeficientes de realismo,
empirismo etc, ou seja, admitir que cada doutrina filosófica encontre
um certo “peso relativo” em cada indivíduo, para cada conceito.
Desse modo, a noção de perfil epistemológico representa,
antes de mais nada, a idéia de que a superação de
um conhecimento anterior e o progresso epistemológico não
implicam no abandono definitivo daquilo que foi superado.
Bachelard salienta que o perfil é algo próprio de cada
sujeito, num certo estágio de sua cultura, e com relação
a um conceito designado. Conseqüentemente, os perfis variam entre
indivíduos (para um mesmo conceito) e conforme o conceito em questão
(para um mesmo sujeito), havendo ainda uma alteração progressiva
desses perfis em função do tempo (história individual).
Na obra A Filosofia do Não (Bachelard, 1991), nosso autor exemplifica
essa idéia traçando os seus próprios perfis referentes
aos conceitos de massa e energia.
Aplicar as noções
bachelardianas de obstáculo epistemológico e de perfil epistemológico
para o conceito de tempo significa, basicamente, deparar-se com as seguintes
questões: qual a natureza dos obstáculos enfrentados pelos
sujeitos na construção desse conceito? É possível
atribuirmos aos indivíduos perfis epistemológicos para o
conceito de tempo, ou ao menos identificarmos em suas concepções
elementos da hierarquia de doutrinas filosóficas bachelardianas?
Estruturando um progresso epistemológico para o conceito
de tempo
A análise das
concepções dos estudantes à luz da epistemologia de
Bachelard – principalmente no que se refere à noção
de perfil – depende de uma caracterização prévia das
diversas doutrinas filosóficas para o conceito de tempo. Em outras
palavras, é necessário identificar quais seriam os elementos
de uma concepção “realista”, “empirista”, “racionalista”
etc de tempo, estruturando a hierarquia de escolas filosóficas e
fornecendo uma visão (não necessariamente a única)
do progresso epistemológico desse conceito. Isso foi realizado,
por nós, a partir de elementos da história da ciência
e da literatura sobre concepções alternativas. Apontamos
brevemente, a seguir, os elementos principais de cada região da
hierarquia bachelardiana (uma visão completa e justificada dessa
caracterização pode ser encontrada em Martins (2004) ou Martins
& Pacca (2004)):
Caracterizado por uma
noção de tempo essencialmente carregada de subjetividade
e marcada pelo egocentrismo; pela associação indevida do
tempo ao esforço físico (quanto maior o esforço para
a realização de uma atividade, mais tempo passa) ou à
distância (um objeto que percorre uma distância maior do que
outro leva necessariamente mais tempo para fazê-lo). O tempo, nesse
estágio, permanece heterogêneo, não sendo aplicável
a todos os objetos e movimentos.
O pensamento realista também pode ser caracterizado pela idéia de passagem desigual das horas, ou seja, pela idéia de que a passagem do tempo depende (varia) de indivíduo para indivíduo. Ele não é ainda um “parâmetro matemático abstrato”, não havendo uma medida unívoca do tempo claramente determinada por algum aparelho.
Também consideramos
como realista a visão que exige a presença de um indivíduo
para que haja a “contagem” do tempo. O conceito de tempo vincula-se assim
a uma espécie de “animismo”, uma vez que sua realidade ontológica
é dependente de um espírito que o marque.
Qualquer que seja o aparelho destinado à marcação do tempo, há sempre uma idéia de repetição presente: seja a de uma unidade que corresponde ao próprio ciclo de um fenômeno físico periódico (p.ex.: em relógios de pêndulo), seja a de uma unidade imposta arbitrariamente sobre o fluxo contínuo e uniforme associados a fenômenos físicos regulares, mas não periódicos (p.ex.: em relógios d’água).
Embora possamos associar
a uma visão empírica certas propriedades do tempo, como linearidade,
continuidade e homogeneidade, o empirismo ainda não as considera
a partir de uma perspectiva de conjunto: o tempo ainda não se insere,
nesse estágio, num corpo de conhecimentos articulado.
O pensamento racionalista
supera e alarga o empirismo, separando o tempo único e comum (que
tem uma “existência em si”, é algo absoluto e independe de
qualquer coisa externa) de sua medida aproximada (que Newton chama de “tempo
relativo” nos Principia...). O relógio já não define
o tempo, apenas o marca.
Procuramos, então, caracterizar o conceito surracionalista de tempo a partir de duas perspectivas: Por um lado, as teorias da relatividade (especial e geral) negam o tempo absoluto newtoniano, fazendo o transcorrer do tempo depender do referencial adotado (as “transformações de Lorentz” substituem as “transformações de Galileu”) e da presença de matéria. Surge o espaço-tempo quadridimensional, não sendo mais possível pensarmos o tempo isoladamente. Por outro lado, a termodinâmica e a mecânica estatística levam a uma nova compreensão do conceito de tempo ao oferecer uma abordagem explicativa (de natureza probabilística) para a irreversibilidade temporal. O que era uma “constatação sem explicação” nos estágios anteriores, agora é um resultado.
Dessa forma, o conceito de tempo que surge com a física mais avançada rompe com a noção de tempo absoluto da mecânica newtoniana, ao mesmo tempo que a alarga (embora ontologicamente o tempo da mecânica clássica seja diferente do tempo relativístico, as “transformações de Lorentz” reduzem-se às “transformações de Galileu” para V<<c, evidenciando uma continuidade no plano estritamente lógico-matemático).
É importante frisar, aqui, que não se trata de “juntar” o conceito de tempo da teoria da relatividade com a perspectiva oferecida pela termodinâmica, mas, antes, de separar essas novas noções – conceitualmente diferentes no campo da física – da noção anterior (de tempo absoluto). Assim, a zona surracionalista, a princípio, poderia dispersar-se num espectro potencialmente amplo. Uma vez que os sujeitos de nossa pesquisa dificilmente manifestam visões que contenham aspectos dessa região, não nos preocuparemos nesse trabalho em aprofundar essa caracterização ou, por exemplo, em diferenciar o racionalismo complexo do racionalismo dialético. Além disso, muitas questões relativas ao tempo permanecem em aberto ainda hoje, o que tornaria essa possível diferenciação ainda mais difícil e controversa. Um possível caminho para pensarmos a diferenciação entre racionalismo complexo e racionalismo dialético deve levar em consideração, a nosso ver, os aspectos quânticos relacionados ao tempo, assim como a perspectiva de um tempo descontínuo colocada por alguns filósofos.
Essa caracterização
das diferentes regiões da hierarquia de escolas filosóficas
bachelardianas, para o conceito de tempo, representa o nosso “instrumento
teórico” de análise, que veio a ser confrontado com os dados
da pesquisa empírica. Esperávamos poder identificar obstáculos
de natureza epistemológica ao desenvolvimento do conceito de tempo
físico, e verificar em que medida pode ser atribuído um perfil
epistemológico para os sujeitos, no tocante a esse conceito.
Metodologia e coleta de dados
Nosso estudo empírico
pode ser dividido em dois momentos: a fase inicial da pesquisa e o estudo
principal.
O propósito da fase inicial era o de realizar um estudo preliminar
(ou piloto) de natureza exploratória, visando o próprio desenvolvimento
posterior do instrumento e da metodologia de coleta de dados. Essa etapa
envolveu uma seqüência de atividades de sala de aula e um conjunto
de 4 entrevistas, e forneceu os elementos e as categorias prévias
de análise que serviram de orientadores para as fases seguintes
da pesquisa[3].
Ainda no terreno da chamada “pesquisa qualitativa”, tal como é caracterizada – em sentido amplo – por uma série de autores (Lüdke & André, 1986; Triviños, 1987; Alves-Mazzotti & Gewandsznajder, 1999), buscamos então definir o instrumento de coleta de dados para o estudo principal. Embora nossa intenção inicial fosse a criação de um questionário, encontramos dificuldades muito grandes nessa via, razão pela qual optamos por reestruturar novas entrevistas, partindo dos elementos de que dispúnhamos.
Diferentemente do estudo exploratório, as novas entrevistas passaram a ter um caráter “semi-estruturado” (conforme discutido por Lüdke & André, 1986, p. 34, e Alves-Mazzotti & Gewandsznajder, 1999, p. 168). As categorias prévias de análise, oriundas da fase inicial da pesquisa, forneceram idéias para a elaboração da “espinha dorsal” do nosso novo instrumento.
Decidimos iniciar as entrevistas com um questionamento a respeito da percepção da passagem desigual das horas em função de atividades pessoais, abrindo espaço a uma discussão de aspectos psicológicos da temporalidade. Esse aspecto, que aparecera fortemente no estudo exploratório, era certamente um primeiro ponto a ser contemplado. A seguir, elaboramos uma questão que caminhava no sentido da objetividade, procurando descobrir quais os tipos de fenômenos que o indivíduo associava à passagem do tempo. Num terceiro momento, optamos por estruturar um núcleo de questões acerca da medida do tempo. A marcação do tempo era algo fundamental a ser explorado, e a nossa intenção inicial era ver até que ponto havia a compreensão de quais elementos eram necessários à confecção de um relógio. Somou-se a isso a idéia de comparar diferentes relógios e investigar o entendimento dos mecanismos de funcionamento envolvidos. (particularmente esse último problema mostrou-se, posteriormente, ser de grande relevância para a análise). Outro bloco de questões tencionava promover uma discussão sobre a natureza do tempo[4] .
Como resultado, obtivemos o “roteiro” (para o entrevistador) que contém as questões centrais da entrevista, e que se encontra no Apêndice A.
O estudo principal constou de três conjuntos de entrevistas, divididos em duas etapas: numa primeira etapa, entrevistamos 6 alunos do último ano do ensino fundamental de uma escola pública municipal. A segunda etapa envolveu 5 alunos do segundo ano do ensino médio de uma escola pública estadual, e 6 alunos da sexta série do ensino fundamental de outra escola pública estadual (11 entrevistados). Somando-se as duas etapas, totalizou-se 17 entrevistas.
A primeira etapa caracterizou-se pela intenção de comparar os dados do estudo exploratório, obtidos junto a alunos do ensino médio, com as falas de alunos de uma faixa etária menor. Esperávamos, com isso: evidenciar aspectos de zonas mais elementares do perfil; tentar compreender a gênese de determinadas concepções sobre o tempo, encontradas no estudo exploratório; verificar a adequação ou não do nosso roteiro de questões. Justificava-se ainda a escolha deste grupo por tratar-se de alunos que haviam tido pouco ou nenhum contato com o ensino formal da física.
A análise das entrevistas desta primeira etapa mostrou-nos que o nosso roteiro de questões, como instrumento orientador das entrevistas, poderia ser considerado satisfatório. Consideramos um mérito desse roteiro o estabelecimento de um sentido privilegiado de abordagem do problema do tempo durante a entrevista (subjetividade ? objetividade), mas que permitia, também, um retorno constante a aspectos anteriores (as questões mais avançadas remetiam-se, de algum modo, às questões iniciais, e esse movimento propiciava a confrontação das visões dos alunos com seus próprios discursos anteriores, enquanto a complexidade dos problemas aumentava).
A comparação dos resultados do estudo exploratório com as entrevistas desta etapa do estudo principal sugeriu-nos fortemente que, na segunda etapa, fosse alargado o conjunto de dados nas “duas direções”, ou seja, que buscássemos entrevistar estudantes de níveis de escolaridade tanto superior quanto inferior ao desta primeira etapa. Para além da questão específica das idades, o que por si justificaria nossa escolha, os estudantes do ensino médio seriam importantes por possuírem algum conhecimento formal de física. Além disso, estas entrevistas com alunos do ensino regular de certo modo “substituiriam” aquelas do estudo exploratório, realizadas com alunos também do ensino médio, mas de um curso supletivo e num outro contexto. Já os alunos da sexta série foram escolhidos pela necessidade que sentimos de nos aproximar ainda mais das idades estudadas por Piaget, talvez para acentuar diferenças que eram apenas vislumbradas nos dados que possuíamos.
A segunda etapa propiciou o alargamento esperado dos dados. Também o roteiro de questões mostrou-se mais uma vez satisfatório para acessar as representações dos alunos, mesmo quando aplicado a faixas etárias diferentes. Embora o tipo e a profundidade das respostas e explicações variem, foi possível a todos compreender as perguntas e avançar na seqüência da entrevista. Como instrumento de coleta de dados, acreditamos que o roteiro cumpriu adequadamente o seu papel.
As duas etapas do estudo principal encontram-se separadas por um período de cerca de seis meses. Entretanto, todas as 17 entrevistas tiveram o seguinte formato: solicitávamos aos estudantes que redigissem (ou desenhassem) em uma folha de papel (em branco) tudo o que relacionavam à palavra “TEMPO”. Em seguida, continuávamos a entrevista partindo da lista elaborada pelo aluno, a quem pedíamos que explicasse o que escrevera ou desenhara. Havia a tentativa, por parte do entrevistador, de seguir o “roteiro”, que não era revelado ao entrevistado. Embora a ordem de abordagem das questões pudesse sofrer pequenas variações, todas eram tratadas durante a entrevista. Cada uma delas durou em média 20-25 minutos. Foram gravadas (fitas K7) e posteriormente transcritas.
Em todos os casos utilizamos pequenas salas cedidas pelas escolas, onde permaneciam apenas o entrevistador e o entrevistado. Cada um dos três conjuntos de entrevistas foi realizado ao longo de um único período escolar (manhã ou tarde), durante o qual os alunos encontravam-se na escola e eram autorizados a deixar a sala de aula para a realização da entrevista. Foi solicitado às três escolas que os estudantes não tivessem acesso a qualquer tipo de informação prévia sobre a entrevista (tema, questões, área de formação profissional do entrevistador etc.). No que se refere à escolha dos alunos, sugerimos que a participação fosse livre, ou seja, que apenas os alunos que manifestassem interesse em participar pudessem ser designados. Nossa única condição foi solicitar um número igual de meninos e meninas, em cada escola[5] .
Finalizadas as duas etapas do estudo principal, podemos sintetizar deste modo o nosso conjunto de dados:
Tabela 1: conjunto de dados do estudo principal
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dos entrevistados |
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Sexta série / ensino fundamental | Pública estadual |
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Oitava série / ensino fundamental | Pública municipal |
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Segundo ano / ensino médio | Pública estadual |
A posteriori, portanto, organizamos os três conjuntos de entrevistas sob a denominação de GRUPO 1, GRUPO 2 e GRUPO 3, procurando privilegiar uma ordem de idades e níveis de escolaridade, em vez da ordem cronológica da realização das próprias entrevistas. Essa será a notação usada daqui em diante.
Em complementação às informações da Tabela 1, identificamos abaixo os sujeitos entrevistados, em função das características de sexo e idade:
Tabela 2: sexo e idade dos sujeitos da pesquisa
Resultados
Apresentaremos nessa seção uma síntese dos principais resultados obtidos a partir da análise das entrevistas. Serão excluídos os dados provenientes da “manifestação livre” dos alunos acerca da palavra “TEMPO” (atividade anterior à entrevista propriamente dita), embora certas alusões a esses dados sejam feitas em certos pontos.
Consideraremos dois momentos:
inicialmente, uma análise descritiva das transcrições
das entrevistas; e, a seguir, o “quadro-resumo”, contendo as categorias
de análise que organizam esse material.
Análise “horizontal” das entrevistas (descrição)
As entrevistas foram divididas
em seis grandes blocos, cada um correspondente a uma ou mais questões
do roteiro[6]
. Analisaremos neste tópico os cinco primeiros blocos[7]
. São eles:
1) O tempo passa mais rápido ou mais devagar, às vezes?
A passagem do tempo varia de pessoa para pessoa?
2) Como você percebe que o tempo passa?
3) Como podemos marcar / medir a passagem do tempo?
4) Discussão sobre os três relógios: como eles
funcionam? Qual é o melhor? Qual é o mais preciso?
5) Existe tempo sem os relógios? E sem o ser humano? Etc.
A comparação entre as entrevistas, para cada um dos blocos, evidenciou o que segue:
Bloco 1: O tempo passa mais rápido ou mais devagar, às vezes? A passagem do tempo varia de pessoa para pessoa?
Há uma grande
uniformidade nas respostas dadas pelos alunos a essa questão. No
geral, todos afirmam de início já terem experimentado a passagem
do tempo de modo desigual, ou seja, de que sentem ou percebem que o tempo
às vezes passa mais rápido, às vezes mais devagar.
A passagem “mais rápida” do tempo é associada a atividades
que entretêm o sujeito ou o mantêm com a “mente ocupada”. Atividades
interessantes, “legais”, fazem com que não nos demos conta da passagem
do tempo, não nos preocupemos em olhar o relógio. Por outro
lado, o tempo passa “mais devagar” quando realizamos atividades menos interessantes,
“chatas”, ou quando estamos apreensivos. O “tempo de espera” é lento,
demorado, e prestar atenção no tempo faz com que ele passe
mais devagar.
Entretanto, a quase totalidade
dos entrevistados afirma que essa diferença no ritmo de passagem
do tempo não é real, mas é fruto de uma sensação,
impressão, ou ilusão do próprio sujeito (“parece que”...
o tempo passa diferente). Esse sentimento, na fala de muitos, seria algo
que vem “da cabeça da gente”, “do cérebro”, ou “do pensamento”.
Dessa forma, a passagem do tempo é considerada como algo passível
de objetivação, no sentido de que todos os indivíduos
teriam acesso a um “tempo único”, que transcorre da mesma maneira
para todos.
Comparando as entrevistas no
que se refere a esse aspecto, notamos diferenças que merecem ser
assinaladas. A passagem de um discurso de natureza mais subjetiva (em que
o “ritmo” da passagem do tempo depende das atividades nas quais o sujeito
encontra-se inserido) para a constatação da existência
de um tempo objetivo e comum não se dá sempre com a mesma
rapidez e facilidade. Enquanto alguns alunos parecem percorrer esse caminho
de modo difícil, refletindo mesmo sobre a questão colocada,
outros quase que imediatamente admitem o caráter “óbvio”
da existência desse tempo objetivo, de modo que poderíamos
afirmar que há diferentes “graus de convicção” e comprometimento
com essa visão mais objetiva.
Embora não seja possível fazer uma separação
rígida, notamos que os alunos do Grupo 1 tendem a executar esse
caminho com mais dificuldade do que os alunos dos outros dois grupos. Em
geral, os mais jovens insistem um pouco mais na passagem desigual das horas,
e precisam refletir melhor até admiti-la como ilusão ou sensação.
Isso pode ser observado a partir de uma comparação entre
duas passagens, a primeira de uma aluna do Grupo 1 e a segunda de uma aluna
do Grupo 3, que se encontra no Apêndice B-1.
Vale a pena afirmar ainda que,
em duas entrevistas em especial (ALI-Grupo 1; e ROD-Grupo 2), encontramos
uma forte resistência à adoção de um tempo objetivo
e único ao longo de toda a entrevista.
Bloco 2: Como você percebe que o tempo passa?
Embora a percepção
da passagem do tempo possa estar associada a um número quase infinito
de fenômenos e acontecimentos, verificamos que não há
uma diversidade muito grande de respostas dadas pelos alunos a essa questão.
A maioria deles afirma perceber que o tempo passa através do movimento
do Sol (existência de dias e noites), do crescimento e envelhecimento
das pessoas (idade, aniversário), e olhando no relógio (passar
das horas). Alguns citam ainda o movimento da Lua e a “mudança do
clima”. Um número menor refere-se a atividades pessoais, como fazer
esporte, ver TV, dormir, brincar, conversar. E uns poucos consideram o
movimento e a ação das pessoas (andar, por exemplo) como
fatores de percepção da passagem do tempo.
É importante assinalar
que a passagem do tempo está sempre associada a uma idéia
de mudança, de variação (embora somente em 4 das 17
entrevistas a palavra ‘mudança’ tenha aparecido explicitamente no
contexto da questão). Essa mudança pode ser algo periódico,
cíclico – como o caso do movimento do Sol – ou algo não-periódico,
como o movimento de uma pessoa e o envelhecimento. Diferente da “manifestação
livre” dos alunos (não analisada aqui), em que praticamente não
houve associações entre o tempo e fenômenos periódicos,
a pergunta desse Bloco propicia o surgimento mais explícito de referências
a fenômenos desse tipo. Cabe apontar que, para certos fenômenos
citados, não nos é permitido, à primeira vista, afirmar
que se trata de algo periódico ou não-periódico para
o indivíduo (como no caso da “mudança de clima”, por exemplo).
Da mesma forma que no Bloco
anterior, também há pequenas diferenças entre as entrevistas,
no que se refere a uma maior ou menor objetivação. Embora
todos estejam falando a respeito da percepção de um tempo
objetivo, alguns fazem referência a fenômenos exteriores, a
mudanças percebidas pelo sujeito no mundo exterior, como o movimento
do Sol, o clima, o passar das horas etc. Já outros preferem referir-se
a atividades pessoais ou fenômenos percebidos pelo sujeito com relação
a ele mesmo.
Não há, no entanto,
diferenças significativas neste Bloco, quando comparamos os três
grupos entre si. As diferenças surgem na comparação
entre entrevistas individuais. Podemos, no máximo, chamar a atenção
para a menor diversidade de fenômenos ou modos pelos quais os membros
do Grupo 1 dizem perceber a passagem do tempo. Diríamos que os sujeitos
desse grupo têm um “repertório mais limitado” de respostas
à questão desse Bloco, do mesmo modo que – nas “manifestações
livres” – eles forneceram o menor número médio de palavras
e frases elementares associadas ao tempo.
Apresentamos no Apêndice B-2 dois trechos ilustrativos
de algumas das visões que surgiram nas entrevistas.
Bloco 3: Como podemos marcar / medir a passagem do tempo?
Esse Bloco e o seguinte
compõem o “núcleo” da entrevista destinado a tratar a questão
empírica, ou seja, a abordar aspectos referentes à medida
do tempo. Num primeiro momento, analisado aqui, a proposta era investigar
as diversas maneiras pelas quais os estudantes acreditavam ser possível
marcar o tempo.
O resultado geral é bastante
fácil de sintetizar: a quase totalidade dos entrevistados faz referência
ao relógio comum como “instrumento de medida” do tempo. Em segundo
lugar, surge o movimento do Sol. São também citados, mas
numa freqüência bem menor, os relógios de água
(clepsidras) ou areia (ampulhetas), e o movimento da Lua. Em boa parte
das entrevistas, as alternativas ao relógio comum aparecem apenas
após intervenção do entrevistador, que questiona explicitamente
o entrevistado acerca de outras possibilidades de marcação
do tempo. Há uma grande uniformidade nas respostas à questão
desse Bloco, quando comparamos os três grupos entre si.
Vários aspectos, no entanto,
merecem destaque em nossa análise. Em primeiro lugar é importante
frisar que, em parte devido a uma pluralidade de significados que podem
ser atribuídos à pergunta formulada, há uma certa
“confusão” inicial em algumas respostas. Nelas, os alunos entendem
que o “como se marca” refere-se à unidade de medida do tempo, e
respondem citando os segundos, minutos, horas, dias, anos etc. Em geral,
após a intervenção do entrevistador, compreendem que
se trata do aparelho de medida, ou seja, de algum instrumento, mecanismo
ou fenômeno que possa ser utilizado para se marcar o tempo. Em outras
entrevistas há de imediato esse entendimento quanto ao propósito
da pergunta.
Um segundo aspecto a destacar
seria o tipo de entendimento que os entrevistados fazem da palavra ‘relógio’.
Quase todos afirmam com facilidade que o Sol pode ser considerado um tipo
de “relógio”, embora poucos já não o considerem assim,
ou ao menos afirmam isso com alguma dificuldade, após refletirem
um pouco mais. O que parece estar por trás desses diferentes significados
atribuídos à palavra é, antes de tudo, um entendimento
do que venha a ser um relógio, ou seja, a própria noção
de relógio não é a mesma para todos os entrevistados.
Para alguns, o relógio comum é uma espécie de “objeto
privilegiado” para a medida do tempo, sem dúvida pela maior familiaridade
que os indivíduos têm com esse objeto, dada sua presença
constante na vida de todos. Para outros, relógio é “tudo
aquilo que é capaz de marcar o tempo”. Isso nos sugere que um maior
entendimento das similaridades existentes entre as diversas formas de marcação
do tempo levaria a uma generalização da idéia de relógio.
A compreensão dos mecanismos envolvidos no funcionamento dos diferentes
tipos de relógios também desempenharia um papel crucial aqui.
E com isso chegamos a um terceiro
aspecto a destacar: se a idéia de relógio pressupõe
a existência de alguma “repetição” (vinculada à
periodicidade presente em si no fenômeno base do funcionamento do
aparelho, ou imposta pela métrica temporal sobre fenômenos
não-periódicos, porém uniformes), a maioria dos alunos
parece estar de acordo com isso. Podemos supor que isso seja verdade pelas
referências explícitas ao Sol e aos relógios comuns
como formas de se marcar o tempo, ao passo que no Bloco anterior havia
referências a outros tipos de fenômenos (envelhecimento etc.),
associados à simples “percepção” da passagem do tempo.
Se tal “percepção” pôde ser associada a eventos que
não se repetem, o mesmo não ocorreu na discussão da
marcação do tempo, que trouxe à tona mais fortemente
as idéias de periodicidade e repetição, as quais praticamente
não haviam aparecido também nas “manifestações
livres” dos estudantes[8]
.
Trechos ilustrativos desse Bloco
encontram-se no Apêndice B-3.
Bloco 4: Discussão sobre os três relógios: como eles funcionam? Qual é o melhor? Qual é o mais preciso?
As explicações
dadas pelos alunos para o funcionamento da ampulheta são bastante
semelhantes. No geral dizem que ela marca o tempo através da areia
que cai, e que o escoamento completo leva um “tempo determinado”. Devemos
virá-la se quisermos marcar novamente esse tempo. Alguns afirmam
de antemão que a ampulheta que estão vendo é “de uma
hora” ou “de meia hora”, mas a maioria não estabelece a princípio
um intervalo. Quanto ao “mecanismo” de queda da areia, dois alunos apresentam
posicionamento a respeito: um diz que é “pela gravidade”, enquanto
outro diz que os grãos de areia fazem força uns nos outros,
sendo este “empurrão” o causador da queda. Um ponto importante a
destacar sobre a ampulheta é que sua análise é “visual”
e imediata, no sentido de que não há um “mecanismo interno”
inacessível à observação, como no caso dos
outros dois relógios.
O mecanismo de funcionamento
do relógio de corda é claramente menos compreendido por parte
dos entrevistados. Cerca da metade deles imagina inicialmente tratar-se
de um relógio movido à pilha ou à bateria. Ao dar-se
conta de que é um relógio à corda, a quase totalidade
dos alunos diz que o movimento dos ponteiros deve-se em algum nível
a um processo “mecânico”, havendo referências a engrenagens,
“rodinhas”, “peças internas” que giram. Poucos tentam explicar o
modo como a corda faz o relógio funcionar, dizendo que ela “fica
junta” ou faz o relógio “ficar carregado”, e depois vai “se soltando”
e movimentando as peças. Já o relógio digital é
explicado quase que exclusivamente por meio de uma alusão à
“bateria”. O mecanismo interno é totalmente desconhecido dos alunos.
Alguns falam em “placas” – como as de computador – ou “chips”, fios internos,
circuitos.
O destaque a ser feito aqui
é que a seqüência ampulheta ? relógio de corda
? relógio digital representa uma crescente complexidade de mecanismos
de funcionamento, acabando por corresponder justamente a uma crescente
ignorância dos alunos acerca desses mecanismos. O relógio
digital é uma verdadeira “caixa-preta”, e o relógio de corda
fica a meio caminho entre esse total desconhecido e a “observação
imediata” que a ampulheta oferece.
O primeiro trecho do Apêndice
B-4 ilustra essa discussão (não há diferenças
significativas entre grupos).
Na seqüência
de análise deste Bloco, encontramos a discussão sobre a “precisão”
dos relógios. Novamente aqui, como no Bloco anterior, a maneira
como a questão é formulada causa geralmente algum “distúrbio”
inicial quanto ao seu propósito real. Isso porque o relógio
“melhor” para se marcar o tempo não é necessariamente o “mais
preciso”, uma vez que os alunos compreendem o “melhor” de várias
formas, quase sempre relacionadas à utilidade: mais “prático”,
mais “fácil de ver”, mais “moderno”, mais “preciso” etc.
Mas, nesse caso, o entendimento
da pergunta é frustrado porque muitos significados são atribuídos
à palavra ‘precisão’. Mesmo aqueles alunos que parecem compreender
o que está em jogo afirmam, muitas vezes, que “todos os relógios
são equivalentes” quanto à precisão, ou então
que o relógio de corda ou a ampulheta são mais precisos.
Alguns alunos parecem ter uma
idéia mais elaborada de precisão ao optarem pelo relógio
digital como “o relógio mais preciso”, afirmando que este é
capaz de fornecer “mais casas decimais”. São alunos dos Grupos 2
ou 3, havendo aqui uma pequena diferença em relação
aos alunos do Grupo 1, que não oferecem em geral esse tipo de argumentação.
Mas isso não significa que haja um entendimento de que uma maior
precisão depende essencialmente de uma maior capacidade do relógio
em replicar um intervalo de tempo definido, ou seja, de sua acuidade (além
de depender de outros parâmetros, como a estabilidade e a reprodutibilidade).
O segundo trecho do Apêndice B-4 é um exemplo de toda essa
discussão.
Chamamos a atenção
para o fato de que uma melhor compreensão do mecanismo dos relógios
seria útil para fundamentar a noção de precisão.
Como vimos na explicação dos três relógios,
não há essa compreensão clara, ficando difícil
para o aluno entender o que exatamente faz com que o digital seja mais
preciso do que a ampulheta. Isso dificulta que ele construa outro significado
para a palavra ‘precisão’ (além de “precisar”, “ser útil
ou necessário”).
Bloco 5: Existe tempo sem os relógios? E sem o ser humano? Etc.
O que encontramos ao comparar
as diversas entrevistas no que se refere a este Bloco é que todos
os alunos admitem a existência do tempo independente dos relógios,
ou seja, o tempo não deixa de existir se todos os relógios
do mundo quebrarem. Também afirmam que seria possível sabermos
disso através do Sol, que “continuaria girando” e sendo responsável
pela presença dos dias e das noites.
A ausência posterior do
Sol não prejudica, tampouco, a existência do tempo. Aqui ainda
há uma grande uniformidade nas respostas, pois a maioria afirma
que as “pessoas continuariam envelhecendo”, e, por isso, haveria um tempo
passando (uns poucos preferem citar o movimento da Lua ou a rotação
da Terra para dizer que o tempo ainda existiria se o Sol apagasse, e dois
entrevistados afirmam que saberíamos da passagem do tempo devido
ao nosso conhecimento anterior de que o tempo passa).
A hipótese do desaparecimento
completo do ser humano já leva a argumentações diferenciadas.
Esse se mostrou ser um momento crucial, um “divisor de águas” para
o posicionamento posterior dos alunos neste Bloco. A maioria ainda continua
a crer que o tempo permanece, ou porque existiriam plantas e animais, ou
porque a Terra continuaria a girar, ou porque o tempo “existe por si”.
O primeiro trecho do Apêndice B-5 é representativo desta visão
dominante exposta até aqui.
O ponto mais importante a ressaltar
é que o tempo, para a maioria, existe independentemente de qualquer
coisa material ou fenômeno, não pode ser “destruído”.
A afirmação de que o tempo continuaria passando é
levada ao extremo, resistindo às diversas hipóteses sucessivas
de “eliminação dos fenômenos” formuladas pelo entrevistador.
O tempo é visto como algo absoluto, abstrato, e separado de sua
“medida”, a qual deixaria de existir em algum momento.
Enquanto essa “hipótese
do absoluto” é marcadamente forte entre os alunos do Grupo 2 (100%
a manifestam), uma menor parte dos entrevistados não parece concordar
facilmente com a realidade desse “tempo abstrato”. Nas entrevistas do Grupo
1, notamos que essa idéia também está presente, mas
com menos força e convicção do que nos demais grupos,
havendo uma hesitação maior em sua defesa. Um terço
dos entrevistados desse grupo (dois alunos) preferem negar essa hipótese.
O segundo trecho do Apêndice B-5 exemplifica a visão de um
aluno que vincula a passagem do tempo à presença do relógio,
do Sol ou dos seres humanos (um aluno do Grupo 3 também vinculou
o tempo à existência da vida).
O quadro-resumo
As categorias de análise
estabelecidas para as primeiras entrevistas realizadas (ainda no âmbito
da fase inicial da pesquisa) foram revisitadas após a finalização
do estudo principal. A análise do conjunto maior de entrevistas
levou-nos – como já era esperado – a promover alterações
naquela organização, na tentativa de aprimorá-la enquanto
elemento síntese do conjunto de categorias que acreditamos descreverem
adequadamente os nossos dados.
Chegamos com isso a uma nova
estrutura, representada abaixo:
Quadro-resumo: categorias de análise das entrevistas
Esse quadro (como o próprio
nome já indica) pretende ser um resumo do material coletado junto
aos estudantes por meio de nossas entrevistas. Nesse sentido, ele propõe
uma síntese esquematizada daquilo que foi apresentado na seção
anterior, e deve ser considerado um passo na interpretação
dos resultados à luz do referencial bachelardiano.
A parte esquerda do quadro (Dimensão
1) busca dar conta dos diferentes elementos evocados pelos entrevistados
no que se refere tanto à percepção quanto à
mensuração da passagem do tempo. Denotamo-la por “processos
temporais”, porque o que está em jogo aqui não é exatamente
a “natureza” do tempo, mas como (por meio de quais fenômenos) o sujeito
percebe que o tempo passa e procura medir (marcar) essa passagem.
Consideramos cinco tipos de
fenômenos presentes nas falas dos entrevistados: em primeiro lugar,
as sensações de natureza subjetiva, como a percepção
do “tempo de espera” (longo) ou do tempo de uma atividade prazerosa (curto).
Em segundo, há associações da passagem do tempo com
ações ou atividades do próprio sujeito, como locomover-se,
dormir, praticar esporte, entre outras. Em terceiro lugar, surgem os fenômenos
não-cíclicos e não-uniformes, como o envelhecimento
das pessoas ou o crescimento das plantas. Em quarto, aparecem os fenômenos
cíclicos, que se repetem (periódicos), como a alternância
de dias e noites ou a sucessão das estações. Em quinto
e último lugar, temos os fenômenos que denominaremos de “uniformes”,
numa alusão a um fluxo constante de alguma substância, como
o escoar da areia numa ampulheta ou da água numa clepsidra.
Embora os fenômenos do
segundo tipo (ações do sujeito) possam ser considerados um
caso particular de fenômenos não-cíclicos e não-uniformes,
optamos por essa divisão na tentativa de diferenciar os processos
temporais que envolvem ativamente o sujeito (caso dos dois primeiros tipos
de fenômenos) dos processos nos quais o sujeito participa de modo
passivo, como espectador (os três últimos tipos).
Conforme representado no quadro
pela chave à esquerda, todos os cinco tipos de fenômenos foram
evocados pelos entrevistados para caracterizar o modo pelo qual percebem
a passagem do tempo. Já a chave mais à direita (ainda nesta
Dimensão) reúne os fenômenos vinculados pelos sujeitos
de nossa pesquisa à possibilidade de mensuração do
tempo, ou seja, aqueles que permitem a construção de relógios.
Já a parte direita do
quadro (Dimensão 2) refere-se à “natureza mesma do tempo”,
e não aos processos que ocorrem no tempo. Encontra-se subdividida
em quatro visões, num grau crescente de objetividade (representado
pela seta mais à direita).
A primeira refere-se a uma noção de tempo centrada no
próprio indivíduo, à idéia de que o tempo é
algo próprio do sujeito, havendo um tempo diferente para cada um,
e para cada situação. Dessa forma, o tempo não “está
no mundo”, mas é algo a respeito do qual temos uma percepção
puramente individualizada, dependente de nossos “estados de consciência”.
Essa avaliação individual e subjetiva do tempo corresponde
em grande parte àquilo que comumente costuma ser designado pela
expressão “tempo psicológico” (a idéia, por exemplo,
de que “o dia para mim demora, enquanto para outro passa rápido”).
A concepção sobre
o tempo torna-se mais objetiva quando o indivíduo admite que há
um tempo comum a todos os demais indivíduos, e que, portanto, a
passagem desse tempo independe das sensações de cada um.
Esse tempo (objetivo) “está no mundo”, no sentido de que é
algo que pode ser compartilhado entre diferentes sujeitos, sendo passível
de medição. A partir daí, surgem as outras visões
representadas no quadro.
A segunda visão é
uma associação do tempo objetivo com a possibilidade de percepção
ou medição por um ser humano, ou seja, ele existe objetivamente
no mundo desde que haja alguém presente para percebê-lo ou
medi-lo. Na ausência de seres humanos, o tempo perderia seu significado,
pois não haveria “ninguém” capaz de “provar” que ele continua
passando. Essa perspectiva pode estar associada, num nível mais
profundo, à crença de que o tempo é uma forma pela
qual a consciência lida com o mundo, forma essa igual para todos
os sujeitos (daí a objetividade). Nesse sentido, essa visão
contém, intrinsecamente, uma questão subjetiva de outra ordem
(além de resgatar, é claro, outra espécie de subjetividade
simplesmente por atrelar a existência do tempo à do ser humano).
A terceira visão é
a suposição da existência de um tempo absoluto, que
existiria “por si” independente da matéria e do movimento. Essa
(aparente) objetivação “extrema” cria algo como um “tempo
substancial”, que não pode ser destruído e flui sem cessar.
Nessa perspectiva, os relógios forneceriam apenas uma medição
aproximada desse tempo objetivo.
A quarta e última possibilidade
representa o estabelecimento de um vínculo entre o tempo e a existência
de objetos e de movimentos. O tempo existiria mesmo na ausência da
consciência e dos seres humanos para medi-lo, como algo que “está
no mundo material” e pode ser abstraído a partir dele, em função
da existência dos objetos e dos movimentos relativos entre eles.
Sem a matéria não haveria tempo, dentro dessa concepção.
Um ponto importante a ressaltar
é que, da mesma forma que na Dimensão 1 a manifestação
de cada entrevistado não se limitava a um único tipo de fenômeno,
no que diz respeito à natureza do tempo também não
há essa limitação (como veremos na próxima
seção), embora nesse caso cada sujeito manifeste preferencialmente
apenas uma das quatro visões apresentadas.
A parte direita do quadro (Dimensão 2) corresponde (mas não
apenas) a aspectos ontológicos do tempo, ou seja, relacionados ao
que pensam os entrevistados sobre o que “é” o tempo. Já a
parte esquerda (Dimensão 1) diz respeito (mas também não
apenas) a aspectos de natureza mais gnoseológica, ou seja, relacionados
ao modo pelo qual podemos conhecer a entidade “tempo”.
Esses dois aspectos, que procuramos
separar na estruturação de nosso quadro-resumo, encontram-se,
no entanto, imbricados nas concepções manifestas pelos alunos
e, também, na caracterização que fizemos da hierarquia
de escolas filosóficas bachelardianas para o conceito de tempo,
a qual passaremos agora a confrontar com nossos dados.
Discussão dos resultados a partir do referencial de Bachelard
Retomaremos aqui os resultados apresentados nas seções precedentes para discuti-los à luz da epistemologia de Gaston Bachelard. Veremos inicialmente em que medida os elementos das diferentes “zonas” da hierarquia filosófica bachelardiana para o tempo podem ser relacionados ao material das entrevistas, num diálogo entre nossa caracterização anterior (“instrumento teórico”) e as falas dos alunos. Abordaremos depois a idéia de progresso epistemológico e estabeleceremos paralelos entre nossos dados e as visões históricas para, a seguir, identificarmos neles a presença e a natureza de obstáculos epistemológicos à construção do conceito de tempo.
Um perfil epistemológico para o tempo
Quando comparamos nossa caracterização
teórica com o material das entrevistas, duas coisas merecem ser
destacadas, logo de início: (i) os entrevistados não se colocam
do ponto de vista de uma única escola filosófica (zona do
perfil epistemológico); e (ii) os entrevistados, quando manifestam
visões que contêm elementos característicos de uma
certa região da hierarquia, não o fazem na “profundidade
teórica” que caracteriza essa zona.
O primeiro destaque é
a própria afirmação da existência de um perfil
epistemológico para o tempo, uma vez que os diversos elementos presentes
na fala do sujeito (correspondentes a diversas regiões da hierarquia)
têm para ele uma certa “intensidade de presença”, que depende
essencialmente dos contextos dos quais participa. Ao longo da entrevista,
o pesquisador coloca uma série de questões que representam
para o aluno diferentes contextos, em função dos quais ele
tem a oportunidade de posicionar-se, manifestando elementos de uma ou mais
escolas filosóficas. É claro que é impossível
ao entrevistador esgotar os contextos (na verdade, estamos muito aquém
dessa possibilidade), razão pela qual não podemos efetivamente
traçar o perfil dos alunos.
O segundo destaque refere-se
ao fato da nossa caracterização teórica, para uma
certa zona da hierarquia, conter mais elementos (ser mais “rica”) do que
aqueles presentes nas visões dos alunos associadas a essa mesma
zona. Dito de outra maneira, os entrevistados podem apresentar elementos
do racionalismo (por exemplo) sem, contudo, compartilhar de todos os elementos
que são caros a esta mesma zona.
Feitas as ressalvas, estamos
aptos a aprofundar o diálogo entre nosso referencial teórico
e o nosso estudo empírico. Tomemos então, uma a uma, as escolas
filosóficas bachelardianas.
A primeira delas – o realismo
ingênuo – contempla essencialmente uma noção de tempo
carregada de subjetividade, como vimos. A análise do Bloco 1 permite-nos
vislumbrar a existência de uma série de elementos do realismo
ingênuo nas falas dos alunos. Os resultados mostraram que todos os
sujeitos dizem já haver experimentado a passagem desigual das horas,
relacionando o fluir mais rápido do tempo a atividades prazerosas,
e sua lentidão a atividades “chatas” ou entediantes. Trata-se justamente
de um tempo qualitativo, subjetivo e heterogêneo. A pergunta inicial
da entrevista procurou fornecer aos estudantes um contexto propício
para a manifestação ou não desses elementos associados
a uma visão realista ingênua. Embora claramente a maioria
dos alunos afirmem que isso se deve apenas a uma “impressão” ou
“sensação”, havendo um tempo comum e objetivo, a naturalidade
com que todos defendem o passar não uniforme das horas mostra que
essa idéia faz parte do modo como o tempo é pensado em determinados
momentos da vida dos sujeitos.
Se, por um lado, o “peso” que
uma visão realista tem na vida de um indivíduo em particular
só poderia ser determinado por ele mesmo, em função
dos contextos vivenciados, por outro, as entrevistas permitem apontar uma
presença menos ou mais forte de elementos do pensamento realista
ingênuo, especificamente para o conjunto de questões formuladas.
Assim é que, enquanto alguns alunos limitam-se a manifestar aspectos
de um tempo subjetivo somente nas falas do Bloco 1, outros carregam essa
subjetividade a demais Blocos da entrevista. Como dissemos na análise
“horizontal”, esse caminho em direção à afirmação
da existência de um tempo único e comum não é
percorrido com a mesma facilidade por todos, o que do ponto de vista de
nosso referencial indicaria uma maior força de um pensamento realista.
Além disso, consideramos
também que a associação da percepção
da passagem do tempo com ações e atividades do próprio
sujeito (como dormir, brincar etc.), ainda que seja colocada pelo aluno
de um ponto de vista objetivo, pode ser indicativa de um certo grau de
subjetividade. Quem sabe o processo de superação (que não
é total) de um tempo heterogêneo em direção
a um tempo homogêneo e comum tenha como uma etapa intermediária
e importante justamente associações dessa natureza, em que
o tempo já aparece objetivo, mas vinculado a atividades do sujeito.
Daí o fato de havermos optado por diferenciar, no quadro-resumo,
a percepção do tempo vinculada às ações
do sujeito de outros tipos de associações.
A visão de alguns entrevistados
de que o tempo depende da existência dos seres humanos, responsáveis
pela percepção ou medição de sua passagem (segunda
concepção da Dimensão 2 de nosso quadro-resumo), contém
a nosso ver outros elementos que foram por nós inseridos sob a mesma
denominação de realismo ingênuo. Na verdade, havíamos
associado essa idéia a uma espécie de “animismo”, no sentido
do vínculo entre a realidade ontológica do tempo e um espírito
que o perceba e marque. Como exemplificamos na análise do Bloco
5, há aqueles que, diante da ausência dos relógios,
do Sol e dos seres humanos, afirmam que o tempo não existiria mais.
Não se trata da concepção de um tempo heterogêneo,
mas da dependência do tempo – homogêneo – da presença
do homem. Essa concepção, claramente, não contém
apenas elementos de um pensamento realista, mas traz consigo um tipo de
subjetividade próprio dessa perspectiva.
A segunda das escolas filosóficas
bachelardianas é o empirismo. Elementos da concepção
empirista surgem em diversos momentos das entrevistas. Se a possibilidade
de mensuração do tempo, tal como a delineamos, pressupõe
a existência de um tempo homogêneo e comum, podemos afirmar
que essa primeira característica do pensamento empírico é
manifestada pelos sujeitos de nossa pesquisa, que em maior ou menor grau,
abandonam o pensamento realista (nesse aspecto) ao longo da entrevista.
Na discussão acerca do
quadro-resumo, apontamos para o fato de que os alunos associam a mensuração
do tempo preferencialmente a fenômenos cíclicos (periódicos),
e também a fenômenos uniformes (de fluxo constante). Na análise
“horizontal” isso pode ser visto principalmente nas falas do Bloco 3. Esse
resultado mostra que outras características fundamentais de um pensamento
empírico, como a escolha apropriada de fenômenos para se medir
o tempo, encontram-se presentes nas falas dos alunos. Isso se torna mais
evidente ao olharmos a passagem do Bloco 2 ao Bloco 3, quando os alunos
deixam de escolher fenômenos não-cíclicos e não-uniformes
(como o envelhecimento), que associavam à simples percepção
da passagem do tempo, e passam a relacionar à marcação
do tempo apenas fenômenos cíclicos ou uniformes. A idéia
de repetição de uma “unidade métrica” também
foi identificada nas entrevistas, implicitamente no Bloco 3 e mais explicitamente
nas discussões do Bloco 5.
Os dois últimos parágrafos
parecem sugerir que os nossos sujeitos detêm, em geral, um pensamento
empírico claro com respeito ao tempo, representado quem sabe por
um grande “peso” (ou “intensidade de presença”) dessa região
em seus perfis epistemológicos. Há, no entanto, indícios
que apontam numa direção contrária. Vimos, na discussão
sobre o funcionamento dos três tipos de relógios e a idéia
de precisão (Bloco 4), que a totalidade dos entrevistados (em maior
ou menor grau) não entendem corretamente os mecanismos envolvidos
no funcionamento dos aparelhos, tampouco compreendem claramente o que determina
a precisão. Esse resultado evidencia as fraquezas de um pensamento
empírico ainda mal constituído. As diferenças entre
os indivíduos são pequenas nesse aspecto, mas apontam para
a existência de “pesos” diferentes dessa zona do perfil.
Ainda sobre o empirismo, é
importante retomarmos aquela concepção de alguns sujeitos
de que o tempo depende da existência dos seres humanos. Se é
verdade que essa visão contém elementos de um pensamento
realista, também identificamos nela certa dose de empirismo. Isso
porque esse tempo é um tempo objetivo, que para alguns deixaria
de existir porque não há ninguém para contá-lo.
O aspecto da medida é relevante aqui, parecendo não haver
uma separação entre “tempo” e “medida do tempo”, pois a ausência
dessa leva ao desaparecimento daquele (na verdade, seriam uma só
coisa).
Outra questão que nos
remete ao empirismo é a da importância que o relógio
comum tem na fala de certos entrevistados, que o consideram por vezes como
um “objeto privilegiado” para a medida do tempo. Há certa relutância
e dificuldade na consideração e avaliação de
outras possibilidades de marcação do tempo, como pôde
ser visto nas análises dos Blocos 3 e 5. Isso se deve à presença
marcante do relógio na nossa cultura, em geral, e na vida das pessoas
em particular, o que nos sugere que o pensamento empírico é
fortemente marcado por esse elemento.
Segue-se o racionalismo tradicional,
a terceira das escolas filosóficas que constituem a hierarquia bachelardiana.
O pensamento racionalista, em sua profundidade teórica, certamente
não poderia estar presente nas concepções manifestas
pelos entrevistados, principalmente entre os sujeitos dos Grupos 1 e 2,
que pouco ou nenhum contato tiveram com o ensino formal da física.
Já os sujeitos do Grupo 3 freqüentavam aulas de física,
tendo algum contato com a mecânica. Mas, mesmo para esses, não
podíamos esperar encontrar o pensamento racionalista em toda sua
profundidade.
Elementos do racionalismo, no
entanto, estão fortemente presentes nas falas da maioria dos entrevistados.
Como vimos principalmente na análise do Bloco 5, em que há
uma discussão em torno da natureza do tempo, a maior parte dos alunos
defende que o tempo é algo absoluto, que “existe por si mesmo”,
e não deixaria de existir mesmo na ausência da matéria.
Essa concepção (a terceira, da Dimensão 2 de nosso
quadro-resumo) compartilha com o pensamento racionalista aspectos essenciais:
uma afirmação de natureza ontológica (o tempo como
algo absoluto), além da idéia de separação
entre o tempo e sua medida. Ao longo do debate proposto no Bloco 5, vimos
que os alunos, em geral, defendem que a medida do tempo deixaria de existir
em algum momento (quando os seres humanos desaparecessem), mas não
o próprio tempo, que resistiria a tudo.
É claro que esse tempo
absoluto não faz parte, no caso dos nossos entrevistados, de um
“corpo organizado de conhecimentos”, tal como caracterizamos o racionalismo
tradicional. Mas surge nas falas como uma espécie de “substrato”
necessário à existência de tudo (homens, objetos e
fenômenos), havendo aqui uma relação com a metáfora
do “palco” (a idéia de que o tempo – juntamente com o espaço
– compõe o “palco” para os fenômenos físicos, no mundo
clássico).
Podemos afirmar, então, que há elementos do racionalismo
nas falas dos estudantes, cujos perfis epistemológicos para o tempo
acusam, portanto, a presença dessa zona. O “peso” dessa região
seria acentuado para a maior parte dos sujeitos, como mostrou a análise
“horizontal”. Seria ínfimo (ou até nulo) para aqueles indivíduos
que acreditam na dependência do tempo em relação aos
seres humanos.
A última das escolas
filosóficas bachelardianas é o surracionalismo. Nossos entrevistados
dificilmente manifestam visões que contenham elementos caracterizados
por nós como pertencentes a essa região. A irreversibilidade
do tempo, por exemplo, permanece para eles uma espécie de “constatação
sem explicação”, um “dado” da experiência, embora profundamente
ligada às suas vivências da temporalidade.
Surpreendentemente, no entanto,
há aspectos na fala de alguns alunos que sugerem elementos a serem
explorados como facilitadores da construção de uma concepção
de tempo própria dessa região da hierarquia. Referimo-nos
aqui basicamente às relações entre o tempo e o movimento,
que para alguns poucos parece induzir uma problematização
da idéia de um tempo absoluto. Não nos deteremos nessa questão,
cabendo apenas afirmar que uma única aluna (LUI, do Grupo 3) diferenciou-se
nesse aspecto, defendendo mais claramente a dependência do tempo
em relação à matéria e ao movimento. Ao longo
de toda a entrevista, LUI reluta em assumir a existência de um tempo
absoluto, num posicionamento diferente dos demais entrevistados (um trecho
da entrevista dessa aluna encontra-se no Apêndice B-6).
A construção do conceito de tempo e alguns paralelos com
a história
A conclusão, partindo
de nossa caracterização das escolas filosóficas, é
que há, sem dúvida, um convívio de concepções
sobre o tempo na estrutura cognitiva dos sujeitos analisados. Podemos também
interpretar isso de outra forma, afirmando que os sujeitos têm uma
espécie de “concepção multifacetada”, que contém
elementos das diversas zonas da hierarquia bachelardiana.
A “intensidade de presença”
(ou “peso”) de cada um desses elementos é o que caracteriza o perfil
epistemológico de um indivíduo em particular. Como dissemos,
traçar esse perfil dependeria de uma atividade de natureza metacognitiva,
em que o próprio sujeito atribuiria tais “pesos” em função
dos contextos nos quais faz uso das diferentes visões sobre o tempo
em seu dia-a-dia.
Se, por um lado, nosso roteiro
de questões não é capaz de esgotar esses contextos,
por outro é possível afirmar que a análise da entrevista
de um certo aluno permite vislumbrar o seu perfil epistemológico,
circunscrito aos contextos oferecidos pela entrevista. Como vimos acima,
as questões formuladas propiciam a identificação da
presença de elementos das quatro regiões epistemológicas
consideradas, embora as três primeiras tenham um “peso” maior. Dessa
forma, o pensar realista sobre o tempo convive com o empirista e o racionalista,
compondo uma concepção multifacetada característica
de cada indivíduo, determinada pela “intensidade de presença”
de cada região.
Simplificadamente, podemos dizer
que há entrevistados em que o realismo está mais presente,
refletindo-se numa maior referência a aspectos subjetivos da temporalidade,
carregados com maior vigor ao longo da entrevista. Outros, para quem a
existência do tempo depende de sua contagem por um ser humano, por
exemplo, manifestam mais fortemente um pensamento empírico (além
do realismo, é claro) do que aqueles que separam o tempo de sua
medida, e defendem – à moda racionalista – a existência absoluta
do tempo.
A caracterização
das escolas filosóficas bachelardianas para o conceito de tempo
representa para nós um compromisso com uma visão de progresso
epistemológico, e que tem paralelos com a história da ciência.
Seria fundamental perguntarmos aqui em que medida nossos resultados apontam
ou não para esse progresso, ou seja, até que ponto a conceitualização
do tempo (sua construção psicológica) reflete uma
visão de progresso. Para isso, é necessário levar
em conta o conjunto total dos dados e fazer uma comparação
não apenas entre indivíduos, mas entre grupos diferentes.
Que a conceitualização
do tempo é um movimento em direção à objetivação
já havia sido apontado por Piaget. A passagem de um tempo heterogêneo
e egocêntrico para um tempo comum e objetivo pode ser descrita, nesse
novo contexto oferecido pelo referencial bachelardiano, pela superação
(nunca definitiva) do realismo ingênuo. Da mesma forma, as sucessivas
superações do empirismo e do racionalismo tradicional em
direção ao surracionalismo representam um movimento no sentido
da objetivação e da aquisição de uma maior
coerência racional.
O que nossos dados revelam,
quando olhados em seu conjunto, é que parece mesmo haver uma espécie
de “rota genética” da conceitualização do tempo, um
movimento progressivo de dessubjetivação em direção
à construção de um tempo cada vez mais objetivo. De
um ponto de vista geral, a conquista do tempo objetivo, num primeiro momento,
permite ao aluno lidar com a problemática de sua medida, relacionando-a
a fenômenos cíclicos ou uniformes, ao mesmo tempo em que consegue
associar sua percepção da passagem do tempo a fenômenos
de outra natureza. Esse “tempo marcado” passa a ser algo muito presente
na vida do sujeito, principalmente em função da cultura em
que vivemos. Há uma certa dificuldade em lidar com um conceito tão
presente e fundamental e que representa, ao mesmo tempo, algo imaterial.
Acreditamos que, justamente devido a isso e, quem sabe, a um empirismo
mal constituído em relação ao tempo, a objetivação
caminhe a seguir no sentido de uma sobre-objetivação, que
acaba por promover uma espécie de “substancialização”
do tempo, elevando-o praticamente à categoria de objeto. É
o tempo absoluto, que se descola de sua medida. O passo seguinte deveria
ser a relativização desse absoluto, que objetiva o tempo
sob uma nova perspectiva (alargada), cujos tênues indícios
aparecem nas falas de uns poucos sujeitos.
Esse caminhar no sentido de
uma crescente objetividade, que descreve o processo de construção
(psicológica) do conceito de tempo, subentende uma visão
de progresso no plano epistemológico, na medida em que é
possível interpretar essa conceitualização em termos
das categorias teóricas – e da visão de progresso – que compõem
a proposta bachelardiana. É importante frisar que, ao falarmos desse
caminhar como um movimento de superações gradativas de concepções
anteriores, não perdemos de vista as dificuldades e obstáculos
que envolvem tal processo, e que impedem, em certo sentido, a abertura
de novas zonas do perfil.
Se é mesmo verdade o
que dissemos nos três últimos parágrafos, a comparação
entre grupos deve ser capaz de revelar em parte a dinâmica desse
progresso, permitindo-nos ver a “animação” desse movimento
que é a conceitualização. Nesse sentido, as nossas
evidências, embora não muito fortes, talvez sejam significativas.
A análise “horizontal”
mostrou que, em relação a muitos aspectos abordados nas entrevistas,
não há grandes diferenças entre os grupos. No entanto,
é em torno das variações sutis que as diferenças
vêm à tona, marcadamente entre o Grupo 1 e os demais. Os alunos
mais jovens, em média, são aqueles que ao longo da entrevista
têm maior dificuldade em afirmar a existência de um tempo objetivo
e comum a todos os indivíduos, em contraposição à
“sensação” de que o tempo passa diferentemente para cada
um (Bloco 1). São os alunos desse grupo, na discussão a respeito
da precisão dos relógios, os que menos optam pelo relógio
digital, e os que mais defendem a idéia de que nenhum deles seria
mais adequado. No Bloco 5, são também indivíduos do
Grupo 1 os que manifestam com menos convicção a noção
de um tempo absoluto. Além disso, eles têm em geral um “repertório
mais limitado” do que os alunos dos demais grupos, no que se refere à
associação de diversos tipos de fenômenos à
passagem do tempo (Bloco 2).-
Se cada um desses aspectos representa
uma pequena diferença entre o Grupo 1 e os demais, olhados em conjunto
eles permitem afirmar que, do ponto de vista das escolas filosóficas,
é nos alunos do Grupo 1 que o pensamento realista com relação
ao tempo é mais forte. Em contrapartida, é (na média)
junto aos alunos dos Grupos 2 e 3 que elementos do empirismo e do racionalismo
têm um “peso” mais elevado. É importante salientar que se
trata de uma visão do coletivo dos entrevistados, podendo existir
pequenas variações (o aluno que mais manifestou um pensamento
realista é do Grupo 2). Essas, por sua vez, não negam a existência
de um progresso epistemológico, pois não implicam “queima
de etapas”, mas em seu simples adiamento.
Com relação a
possíveis diferenças entre os alunos dos Grupos 2 e 3, nossos
dados oferecem um resultado mais negativo do que positivo. No máximo,
poderíamos dizer que os alunos do Grupo 3 saem-se melhor na discussão
sobre o funcionamento dos relógios e a questão da precisão
(Bloco 4), mas a diferença é bastante pequena. Apesar disso,
não acreditamos que esse resultado refute a tese de um progresso
epistemológico – grosso modo – com a idade e a escolarização,
no sentido da aquisição de zonas mais avançadas do
perfil (não há indícios de que algum aluno tenha chegado
ao racionalismo sem passar pelo realismo). Outros fatores podem estar envolvidos
aqui, uma vez que o conjunto total de experiências do indivíduo
influencia seu processo de conceitualização.
Conjecturando sobre essa questão,
é interessante notar que a diferença na média de idade
entre os Grupos 2 e 3 é pequena (ver Tabela 2), quando comparada
com a diferença entre os Grupos 1 e 2. Isso talvez explique a maior
semelhança entre as entrevistas do grupo intermediário e
do mais avançado, e sugere que um estudo com sujeitos ainda mais
velhos poderia apontar novas diferenças. Por outro lado, também
é possível (e provável) que esse progresso epistemológico
sofra uma espécie de “desaceleração”, em função
da dificuldade cada vez maior tanto da aquisição de novas
regiões do perfil quanto da conquista de novos elementos de uma
dada zona. Daí que as falas dos indivíduos possam tornar-se
mais parecidas com a idade. Não deixa de ser relevante, no entanto,
que o maior nível de escolaridade e conhecimento formal de física
dos alunos do Grupo 3 não se reflita aparentemente em seus perfis.
Se compusermos os resultados
de nosso estudo com a perspectiva (operatória) piagetiana apresentada
em A Noção de Tempo na Criança, revela-se de modo
ainda mais evidente o caminhar da conceitualização do tempo,
e como esse movimento aponta para uma gradativa superação
de um pensamento realista (tempo heterogêneo e egocêntrico)
em favor de um empirismo e de um racionalismo crescentes (tempo homogêneo
e objetivo). O que nossos dados sugerem é que, se a capacidade operatória
(reversibilidade do pensamento) permite, a partir de certa idade, a construção
de um tempo objetivo e a compreensão de sua medição,
o progresso epistemológico que se segue não elimina definitivamente
as aderências e centrações iniciais, que podem ressurgir
na dependência do contexto, e convivem na estrutura cognitiva do
indivíduo com visões mais avançadas.
Na medida em que há
uma correspondência entre nossa caracterização das
escolas filosóficas e o material oriundo da história da ciência,
e esse referencial teórico foi usado na interpretação
de nossos dados, caberia identificar em nossas entrevistas a presença
ou não de certos paralelos com visões históricas.
Tais paralelos existem, mas não podem ser tomados strictu sensu.
Citemos alguns casos como exemplos.
Para Aristóteles o tempo
não existiria sem a presença de uma “alma que numere”, ou
seja, de um ser humano que efetuasse a sua “contagem”. Na ausência
dos homens continuaria a haver movimento, mas sem aspecto numerável,
uma vez que o tempo é o “número do movimento com relação
ao antes e depois”. Idéias semelhantes foram defendidas por alguns
dos entrevistados, que sob a hipótese do desaparecimento dos relógios,
do Sol e dos seres humanos afirmaram que o tempo deixaria de existir.
Nessa mesma linha podemos lembrar
da concepção de Santo Agostinho, que acreditava na determinação
da medida do tempo pelo espírito humano. “Em ti, ó meu espírito,
meço os tempos!”. Para ele, a medida do tempo teria como base a
atividade da mente. O aluno DAN (como vimos no Apêndice B-3) sugere
que a medição do tempo seja feita por meio de uma “contagem
mental”, quando perguntado se haveria outras formas de medi-lo sem o relógio
comum. A avaliação que faz da passagem do tempo por meio
dessa contagem tem paralelos com a visão de Agostinho, que na ausência
do movimento dos céus afirmava ser capaz de avaliar as sílabas
por nós pronunciadas como “longas” ou “breves”, por meio de seu
espírito.
Como muitos de nossos entrevistados,
Newton e Descartes separavam o tempo de sua medida. Particularmente Newton
defendia a existência de um tempo absoluto, que fluía uniformemente
independente de qualquer coisa externa (inclusive da matéria), e
um tempo relativo, que seria uma medida aproximada do primeiro. Encontramos
nas falas de muitos alunos idéias semelhantes, embora os termos
“absoluto” e “relativo” não apareçam. Como vimos na análise
do Bloco 5, a idéia de um tempo que “não pode parar” é
bastante comum, assim como a de que esse tempo continuaria existindo sem
a sua medida.
As críticas de G. Leibniz
e E. Mach ao tempo absoluto da mecânica[9]
já não encontram paralelos tão diretos nas falas dos
entrevistados. Mas, como apontamos acima, a dependência que alguns
alunos estabelecem entre o tempo e a matéria em movimento faz ecoar
uma lembrança daquelas críticas históricas. É
possível encontrar semelhanças maiores entre a concepção
de uma entrevistada – LUI, que nega o tempo absoluto – e o pensar histórico
sobre o tempo relativo[10]
.
Obstáculos à conceitualização do tempo
O movimento da conceitualização
do tempo, em direção à objetivação e
a um racionalismo crescente, enfrenta dificuldades inerentes ao próprio
ato de conhecer. São os obstáculos epistemológicos,
essa importante noção da epistemologia de Bachelard que foi
discutida no início desse trabalho. Torna-se fundamental, portanto,
interpretarmos também os nossos dados sob essa perspectiva, identificando
possíveis obstáculos.
Uma tendência muito presente
nas falas dos entrevistados, como vimos, é a de praticamente “substancializar”
o tempo, promovendo uma sobre-objetivação que leva à
idéia de um tempo absoluto. Como dissemos, a dificuldade em lidar
com um conceito tão fundamental e presente, porém imaterial,
acaba levando os sujeitos a considerar o tempo como uma espécie
de “coisa”, que existe por si. A nosso ver, parece haver aqui um certo
domínio de um pensamento concreto, uma certa tendência à
concretização, à materialização do tempo.
Se é verdade que o tempo é, para eles, algo imaginário,
como pode o tempo absoluto refletir um pensamento concreto?
É preciso fazer uma imagem
do tempo. A idéia de que ele está sempre passando, sem cessar
(muito presente em nosso meio cultural), estimula metáforas como
a do “rio que corre”. Fluir é algo próprio de uma substância,
o que faz com que a noção de um “fluir do tempo” contenha
em si um pensamento substancial, reflita uma necessidade de concretizar.
Com isso, numa espécie de “curto-circuito” filosófico, atinge-se
uma abstração idealista partindo-se de um pensamento concreto,
ou seja, elabora-se um conceito de tempo totalmente abstrato (desvinculado
de objetos e movimentos) baseando-se na metáfora do fluir.
Poderíamos quem sabe
denominar esse obstáculo como “o obstáculo do concreto”.
Ele certamente guarda muitas semelhanças com o “obstáculo
substancialista”, discutido por Bachelard. A construção de
um tempo relativo depende da superação desse obstáculo
que, curiosamente, parece ser mesmo uma etapa necessária da conceitualização
do tempo.
Uma visão defendida por
alguns alunos é a da vinculação do tempo à
presença dos seres humanos. Por um lado parece existir, por trás
dessa concepção, uma tendência a explicações
finalistas, manifesta na idéia de que “não é preciso
mais tempo se todos morreram”. O tempo existe com uma finalidade e utilidade.
Por outro lado, a necessidade da presença de um ser humano que possa
perceber e marcar a passagem do tempo, sem o que ele não teria existência
objetiva, evidencia propriamente não uma subjetividade (afinal,
qualquer ser humano pode executar a tarefa), mas um tipo de “animismo transformado”.
Como dissemos, na caracterização
das escolas filosóficas de Bachelard no que se refere ao realismo
ingênuo, não se trata de atribuir “vida” ao tempo, mas de
vincular sua realidade ontológica a um espírito que o perceba
e marque. Sob essa ótica, há relação com o
“obstáculo animista”. Como diz Bachelard, “vida” é uma palavra
mágica e imediatamente valorizada, que carrega um valor muito intenso.
Não é, portanto, de espantar que o tempo também esteja
vinculado à vida, que seja encarado como um “substrato” necessário
às nossas atividades, mas delas dependente. Esse “animismo transformado”
é um obstáculo que dificulta a objetivação
ao priorizar o sujeito e não o mundo como o palco da temporalidade.
Na medida em que a visão
do tempo vinculado à vida incorpore um finalismo, estaremos diante
de outro tipo de obstáculo: o conhecimento “pragmático”,
que busca relacionar o verdadeiro ao útil. No entanto esse obstáculo,
abordado por Bachelard na Formação..., é mais explícito
em nossos dados na discussão da idéia de precisão
dos relógios. A análise mostrou como os entrevistados compreendem
a precisão em função da utilidade, de modo que a máxima
do pensamento pragmático (“encontrar uma utilidade é encontrar
uma razão”) aplica-se aqui: o mais preciso é o mais útil.
Na falta de uma idéia clara de precisão, o pragmatismo dominaria,
convenientemente auxiliado e intensificado pelo duplo sentido da palavra
“preciso”.
É exatamente em torno do debate sobre a medida do tempo,
o funcionamento dos relógios e a noção de precisão
(Blocos 3 e 4), que notamos a presença de mais dificuldades enfrentadas
pelos alunos na conceitualização do tempo. Há nesse
caso uma identificação mais direta e imediata com os “obstáculos
ao conhecimento quantitativo” trabalhados por Bachelard, que salienta a
importância do método de medir, mais do que do objeto da mensuração.
A conquista do empirismo depende da clareza dos métodos, em função
da qual o próprio objeto define-se. No caso do tempo, há
que se ter clareza daquilo que envolve a construção de relógios,
desde os fenômenos físicos que podem ser usados para isso
até o próprio funcionamento do aparelho, passando pela questão
da métrica temporal.
Os nossos resultados evidenciam
que os alunos possuem elementos importantes associados à quantificação
do tempo, como a percepção da necessidade de fenômenos
cíclicos ou uniformes e a idéia de repetição
de uma unidade métrica. Por outro lado, misturam conceitualmente
unidades, escalas de registro e aparelhos de medida, como vimos, e desconhecem,
em parte ou totalmente, o mecanismo de funcionamento dos relógios.
Acreditamos que uma discussão mais aprofundada do “como” se mede,
que envolvesse fenômenos e mecanismos, ajudaria a esclarecer melhor
“o que” se mede na mensuração do tempo. A formação
de um empirismo mais sólido sem dúvida contribuiria tanto
para uma melhor caracterização desse tempo homogêneo,
objetivo e comum, quanto para – quem sabe – um possível questionamento
do tempo absoluto.
Ainda no âmbito dos obstáculos
ao conhecimento quantitativo, consideramos que o relógio comum pode
adquirir as propriedades de um obstáculo à medida do tempo.
Estando absolutamente presente na vida de todos, é elevado à
categoria de “objeto privilegiado” para a mensuração dessa
grandeza. Notamos esse aspecto na fala de certos alunos, que têm
algumas dificuldades em considerar o movimento aparente do Sol como um
possível relógio ou encontrar substitutos ao relógio
comum, para marcar o tempo. Dessa forma, ao mesmo tempo em que seu funcionar
é incompreendido (pensamos aqui no relógio digital), ele
é a imagem mais forte e presente do tempo para muitos. “Tempo é
relógio, mas eu não sei como ele funciona”.
Não podemos deixar de
citar também os obstáculos à própria constituição
de um tempo objetivo e comum, em contraposição ao tempo heterogêneo.
Vimos que nossos entrevistados manifestam um pensamento realista em alguns
momentos (marcadamente no Bloco 1). No entanto, é principalmente
naqueles que carregam a subjetividade em relação ao tempo
ao longo da entrevista que identificamos a presença desse tipo de
obstáculo. A transferência para o mundo objetivo de sensações
e impressões da passagem do tempo característicos dos estados
de consciência do sujeito é a própria expressão
desse obstáculo, que aponta para uma dificuldade em desapegar-se
da subjetividade e de aspectos mais imediatos da percepção.
Num primeiro momento é preciso livrar-se das centrações
do tipo “maior esforço = mais tempo”, ou “maior distância
= mais tempo”, que obstaculizam a objetivação. Em seguida
é necessário desvincular o tempo das ações
do sujeito, não porque elas não sejam objetivas, mas porque
é preciso separar o tempo da experiência psicológica
do tempo.
Conclusões
A pertinência do referencial teórico
Uma primeira conclusão
de nosso estudo foi a constatação da pertinência da
epistemologia bachelardiana para a pesquisa em ensino de ciências,
de um modo geral, e para uma compreensão do processo de conceitualização
do tempo físico, em particular. Especificamente as noções
de obstáculo epistemológico e de perfil epistemológico
mostraram-se úteis para a interpretação de nossos
dados. A nosso ver, essas noções foram extremamente significativas
na análise do conjunto dos dados, permitindo ir além da simples
constatação da existência de concepções
(que diferem da visão científica) dos estudantes a respeito
do tempo. Ultrapassando um mero elencar de concepções (característico
da tradição do movimento de concepções alternativas),
foi justamente a adoção do referencial teórico bachelardiano
que nos permitiu estabelecer para elas uma estrutura. Acreditamos que esse
é um dos principais méritos desse referencial.
Assim, enquanto a noção
de obstáculo epistemológico é relevante para a compreensão
da própria gênese das concepções dos estudantes
– como a análise mostrou – a idéia de perfil epistemológico
propicia um entendimento acerca do convívio de diferentes concepções,
além de fornecer uma base teórica para pensarmos a conceitualização
em termos de um progresso epistemológico que tem paralelos com visões
históricas. Dessa forma, foi possível delinear o “caminhar”
da conceitualização do tempo, um processo ao longo do qual
os obstáculos desempenham um papel essencial, e o perfil vai surgindo
como um resultado.
Limitações...
Duas “limitações”
de nosso referencial precisam, no entanto, ser apontadas: em primeiro lugar,
há a impossibilidade de traçarmos efetivamente o perfil dos
alunos, o que sugere uma limitação. Não nos referimos
a uma ausência de “quantificação”, ou seja, a uma pretensa
idéia de que poderíamos tornar o perfil mais satisfatório,
enquanto elemento de análise, se procurássemos “quantificar”
a “intensidade de presença” de cada região. Ao contrário,
não acreditamos que o aspecto qualitativo do perfil (embora haja
também um aspecto quantitativo subjacente, que somente pode ser
atribuído por cada sujeito) represente qualquer prejuízo
à sua utilização na interpretação de
resultados de pesquisa.
Entretanto, a impossibilidade
de fornecermos todos os contextos nos quais o indivíduo faz uso
de um determinado conceito faz com que – strictu sensu – sejam limitadas
as conclusões que podemos tirar. Daí que, no nosso caso,
tenhamos procurado deixar claro que a caracterização dos
perfis deu-se em função apenas dos contextos oferecidos pela
entrevista. Uma boa maneira de superar parcialmente essa limitação
é (como tentamos fazer), paralelamente a uma caracterização
adequada das escolas filosóficas, estruturar um instrumento de coleta
de dados que ofereça de fato oportunidades para que o estudante
manifeste (se for o caso) elementos das diversas regiões da hierarquia.
Ainda assim, somente uma atividade de natureza metacognitiva poderia efetivamente
promover um “traçado” dos perfis.
Um segundo ponto diz respeito
à existência de uma certa dose de arbitrariedade na caracterização
das escolas filosóficas (progresso epistemológico) para um
dado conceito. Como dissemos, o estudo de visões históricas
e filosóficas, além da consulta ao próprio material
existente acerca de concepções alternativas, permite a construção
de uma visão do progresso epistemológico do conceito, que
não pode ser tomada como única e definitiva. Desse modo,
tal elaboração pode ser útil (e o foi, no nosso caso)
para informar e referenciar a análise, mas não pode pretender
ser – em termos filosóficos – “a” caracterização do
progresso epistemológico do conceito em jogo, até porque
a própria idéia de progresso não é necessariamente
unânime.
Ainda a esse respeito, vale
ressaltar que as diferenças ontológicas e epistemológicas
entre as diversas regiões da hierarquia podem ser motivo de controvérsia
e mereceriam ser aprofundadas, embora isso fuja aos esforços dessa
publicação. Em particular, a caracterização
da região surracionalista e sua diferenciação epistemológica
em relação ao racionalismo tradicional pediriam especial
atenção. Em que medida o surracionalismo de Bachelard pressupõe,
de fato, uma nova “racionalidade”?
A conceitualização do tempo
No que se refere ao processo
de conceitualização do tempo, nossos resultados com os estudantes
do ensino fundamental e médio corroboram e ampliam resultados presentes
na literatura. Por um lado, o processo de conceitualização,
que caminha no sentido de uma objetivação e de um racionalismo
crescentes, encontra-se plenamente sintonizado com os trabalhos de Piaget
sobre o tempo[11]
, assim como com os principais resultados do estudo de Proverbio &
Lai (1989). Por outro, nossa tentativa de acompanhar esse processo de construção,
em faixas etárias maiores do que aquelas analisadas nesses outros
trabalhos, permitiu compreender aspectos importantes da continuidade desse
processo de objetivação.
Nesse sentido, foi fundamental
o referencial bachelardiano: verificamos que é possível atribuirmos
aos alunos um perfil epistemológico para o conceito de tempo, na
medida em que eles manifestam elementos de diversas zonas da hierarquia
bachelardiana. Também sugerimos – principalmente por meio da comparação
entre grupos – que o movimento da conceitualização seja interpretado
em termos de um progresso epistemológico que tem paralelos com o
desenvolvimento histórico-filosófico das concepções
acerca do tempo.
Desse modo, o tempo, que principia
heterogêneo e egocêntrico, aplicado a cada movimento e ocasião,
torna-se cada vez mais homogêneo e comum. Se a reversibilidade do
pensamento – como mostrou Piaget – cria condições para essa
objetivação, não afasta de todo as centrações
e obstáculos próprios do pensamento realista (nesse aspecto,
em particular, nosso estudo evidenciou algumas dessas dificuldades). O
tempo objetivo permite dar o passo seguinte em direção ao
empirismo, do que depende essencialmente uma compreensão dos tipos
possíveis de fenômenos nos quais podemos basear a mensuração
do tempo, além da questão do estabelecimento da métrica.
Como vimos, a conceitualização parece caminhar para uma sobre-objetivação,
em que o tempo separa-se de sua medida e ganha o status de uma entidade
existente independentemente dos fenômenos. A relativização
desse absoluto – para a qual nosso estudo empírico apenas apontou
indícios – deve ser o passo posterior desse processo.
Embora tenhamos verificado a
existência de importantes diferenças entre indivíduos
e entre grupos (mais acentuadas entre o Grupo 1 e os demais), quanto a
essa conceitualização, tais diferenças foram bem menores
do que esperávamos. Até certo ponto isso foi uma surpresa,
que traz em seu bojo uma questão relevante a ser explorada: em que
medida o ensino formal da ciência, em geral, e da física,
em particular, tem influência significativa na construção
do conceito de tempo por alunos do ensino fundamental e médio? Embora
nossos resultados não nos autorizam a responder de modo categórico,
parecem indicar uma influência pequena do ensino formal nesse processo[12]
.
Esperamos haver contribuído
ao entendimento de aspectos da construção do conceito de
tempo. Como defendido por Mariani & Ogborn (1991), o tempo não
é apenas um conceito, mas uma “categoria ontológica fundamental”.
Disso decorre, certamente, parte das dificuldades que enfrentamos para
abordar esse conceito muito particular e ao mesmo tempo basilar.
Subsídios para a sala de aula
Embora nosso trabalho possua
um caráter de investigação, no âmbito específico
da pesquisa em ensino de ciências, podemos dele depreender certas
mensagens a serem dirigidas para a sala de aula, no que se refere especificamente
à construção do conceito de tempo.
Sabemos que pouca ou nenhuma
atenção é dada à problematização
dessa noção nas aulas de ciências do ensino fundamental
ou de física do ensino médio, sem esquecermos também
dos livros didáticos. Normalmente, o tempo é considerado
como algo “conhecido a priori” pelo aluno e que, portanto, não necessita
ser explorado ou discutido. Adentra sem discussão o universo da
mecânica e lá permanece, como um parâmetro matemático
abstrato, referenciado pelo relógio supostamente familiar a todos.
No entanto, acreditamos não
apenas que o debate em torno do tempo possa ser mais rico do que isso,
mas que a própria compreensão desse conceito e de sua inserção
nas teorias físicas depende de um trabalho mais cuidadoso.
Como fazê-lo? Certamente não há uma “receita”.
Entretanto, ao longo do desenrolar de nosso estudo empírico, pudemos
constatar que certas atividades ou questões apresentam um grande
potencial problematizador das representações dos estudantes
acerca do tempo. A discussão sobre o funcionamento dos relógios
(ampulheta, corda e digital) e a idéia de precisão, por exemplo,
pode vir a ser uma atividade de sala de aula que ajude a compreender aspectos
ligados à mensuração do tempo. Como dissemos, o entendimento
do “como” se mede contribui para o entendimento do “o quê” se mede,
para a construção do próprio conceito.
O debate em torno da existência
ou não do tempo, em função do desaparecimento sucessivo
dos relógios, do Sol, do ser humano e da matéria do universo,
é outra questão que pode ser transformada em uma atividade
significativa de sala de aula. Esse debate sobre a natureza do tempo mostrou-se
fundamental para que os alunos explicitassem suas visões, e permitiu
o surgimento de momentos de aprendizado e reflexão ao longo da própria
entrevista, nos quais o aluno – problematizado – elaborava e reelaborava
seus posicionamentos.
Outras atividades, que fizeram
parte do nosso estudo exploratório – já tendo, portanto,
sido aplicadas em sala de aula – também podem ser aproveitadas pelo
professor. Todo esse conjunto de questões e atividades, desenvolvidas
e utilizadas em nossa metodologia de coleta de dados, são subsídios
para o trabalho de professores de física e de ciências que
desejem discutir a noção de tempo com seus alunos. Além
disso, o material oriundo de nossa pesquisa histórico-filosófica
sobre o conceito de tempo, contendo diversas visões sobre a temporalidade,
não deixa de ser uma fonte a mais a contribuir na elaboração
de atividades sobre esse tema (Martins, 2004).
Isso tudo sem falar, é
claro, do próprio referencial epistemológico de Bachelard
que, uma vez inserido no contexto mais amplo da discussão epistemológica
que deve permear a formação de professores, ajuda a preparar
a intervenção dos mesmos e interpretar as concepções
dos alunos. A ação do professor volta-se, então, à
promoção não de uma “mudança conceitual” estrita,
mas de uma alteração dos perfis conceituais de seus estudantes.
Nesse processo, a consciência da existência de obstáculos
epistemológicos, bem como a sua identificação, desempenham
um papel importante. Dessa maneira, acreditamos que o nosso estudo forneça,
especificamente com relação à construção
do conceito de tempo, subsídios para que o professor interprete
também a sala de aula em termos dos compromissos epistemológicos
dos seus alunos, identifique a presença de obstáculos de
natureza epistemológica, e tenha mais elementos para enfrentá-los,
explorando as visões dos estudantes para auxiliá-los na construção
de outras.
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Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1. ed., 1996
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APÊNDICE A: roteiro das entrevistas do estudo principal
Roteiro: questões centrais
1) Existe um tempo que passa independentemente de cada um? A passagem do tempo depende (varia) de pessoa para pessoa?
Observação: além desse conjunto de questões, o roteiro era também constituído por um conjunto de três “atividades experimentais” inspiradas nos estudos de Piaget. Não abordaremos nesse trabalho os dados oriundos de tais atividades.
APÊNDICE B: trechos das entevistas
B-1:
5. Entr.: E vamos pegar isso que você falou: às vezes
a pessoa fala assim que o tempo tá passando rápido, né?
Você tem essa sensação, que às vezes passa o
tempo rápido?
6. BIA (Grupo 1): É, passa rápido.
7. Entr.: Em que situação você sente isso?
8. BIA: Ah, quando eu tô numa aula que eu não gosto!
9. Entr.: Ah, é? Aí passa rápido?
10. BIA: É, pra mim passa, porque eu fico mais agitada, assim,
falando com as pessoas... pro tempo passar mais rápido. Aí
passa rápido.
11. Entr.: E quando que passa devagar?
12. BIA: Quando eu tô quieta. Quando eu tô sem fazer nada.
13. Entr.: (...) Mas e como é que é isso? O tempo passa
mesmo diferente?
14. BIA: Ah, passa. Pra mim passa.
15. Entr.: É?
16. BIA: Não! É... ele tá sempre no mesmo... é...
– como posso dizer – pra gente parece que ele tá passando rápido,
só que na verdade ele tá sempre no mesmo ritmo.
17. Entr.: (...) Mas então porque que a gente tem essa sensação,
de que às vezes passa rápido, às vezes passa devagar?
18. BIA: Ah... [pausa] Deixa eu pensar. [pausa] Ah, não sei.
19. Entr.: Porque às vezes tem, né, às vezes você
fala: “pô, hoje o dia voou!”, né? Então às vez...
20. BIA: [interrompendo] É, porque a pessoa tá bem agitada,
ela nem se preocupou com o tempo. Aí quando o dia passa bem devagarzinho,
porque ela tava se preocupando muito com o tempo, ela não tava agitada.
21. Entr.: Mas você acha que isso é uma sensação
da gente, ou ele realmente passa diferente, dependendo da pessoa?
22. BIA: Não, acho que é uma sensação da
gente.
23. Entr.: É? Você acha que então tem um... um
tempo que é igual?
24. BIA: Humhum.
25. Entr.: Como que é isso, assim, então? É um
tempo que é igual pra todo mundo? Não muda?
26. BIA: É. É... tempo é igual, só que
pra gente muda.
1. Entrevistador: (...) Você tem uma idéia, que normalmente
as pessoas têm, de que o tempo passa diferente pra cada um? Sei lá,
você...
2. REN (Grupo 3): Ah, de vez em quando parece que passa mais rápido,
de vez em quando mais devagar. Parece que quando é mais chato passa
mais devagar, e quando é mais... tá tão legal a coisa
que você tá fazendo, passa bem mais rápido, parece.
3. Entr.: (...) Mas você acha que isso é porque o tempo
passa realmente diferente?
4. REN: Não, acho que não, o tempo passa igual.
5. Entr.: Como é que você explica isso, assim, essa sensação?
6. REN: Ah, não sei, porque você fica entretido na coisa
que você tá fazendo quando você gosta. Quando você
não gosta você tá lá parado e... sem fazer nada...
e quando você tá entretido numa coisa, tá pensando,
tá raciocinando, você... o tempo parece que passa mais rápido,
mas é igual.
7. Entr.: Tá, tá. E... como é que daria pra saber
que é igual?
8. REN: Pelo relógio. Cronometrando alguma coisa assim, as horas,
né.
Vemos aqui como BIA afirma de início que o tempo passa mesmo diferente (passagem 14) para depois negá-lo, e não consegue explicar facilmente de onde vem essa sensação (passagem 18). E diz ainda ao final que o tempo “é igual, só que pra gente muda” (passagem 26). Já REN afirma categoricamente que não passa realmente diferente (passagem 4), e explica que podemos saber isso através do relógio (passagem 8). Há certamente uma diferença entre ambas, embora sutil.
B-2:
11. Entr.: Como é que a gente percebe que o tempo passa?
12. THA (Grupo 2): Depende. Posso olhar o dia, e ver… Perceber que
ele tá passando… Olhar o Sol, a noite. Perceber.
13. Entr.: (…) Tem algum outro jeito, vamos ver, sem ser pelo Sol?
14. THA: Ah, as horas. (…) Acho que só.
15. Entr.: Você já falou dois, né: você pode
olhar o relógio, as horas, ou pode olhar o Sol. Vamos supor um dia
nublado. Você não tá com o relógio.
16. THA: Por exemplo, dá pra saber que o tempo passa também
você vendo… sei lá, duas imagens da mesma pessoa em tempos
diferentes. Pra você ver como a pessoa envelhece, cresce.
11. Entr.: (...) Como é que a gente percebe que o tempo passa?
(...) Você sente que o tempo tá passando?
12. FER (Grupo 3): Eu sinto, porque eu acho que assim... que quando
eu tô num ambiente assim... se eu vejo pessoas se movimentando acho
que é porque o tempo tá passando, se elas tivessem... por
exemplo, tipo congeladas, aí que eu ia achar que alguma coisa tava
estranha, o tempo não tá passando.
13. Entr.: Tá. Então por exemplo o pessoal se movimentando.
E no seu dia-a-dia, tem outra maneira, assim, que você percebe que
o tempo tá passando? É só com o movimento das pessoas?
14. FER: No dia-a-dia que eu percebo também com o clima, né,
que eu vejo... o clima vai mudando, e também com... [pausa] É,
mais com o clima mesmo, que eu percebo.
B-3:
13. Entr.: (...) E como é que a gente marca o tempo, esse tempo
aí que tá passando?
14. REN (Grupo 3): Marcar? É... pelo relógio. Como? Hoje,
o dia de hoje? É... pelo relógio dá... pelo Sol, também,
pelo céu, como tá ficando, tá escurecendo, tá
nublado... Acho que é assim.
15. Entr.: (...) O Sol é... seria um tipo de relógio...
ou não?
16. REN: Seria, né. Se ele tá... dependendo da localização,
se tá mais escuro ou... depende da localização é
a hora, né. Eu não sei direito explicar, mas eu sei que é.
9. Entr.: (.....) E como é que a gente marca esse tempo que passa?
10. AND: Ah, pelo relógio, né.
11. Entr.: (...) E antes de ter relógio? Porque tinha uma época
que não tinha relógio...
12. AND: Bom, daí eles inventavam, né. Aí tinha
o Sol, tinha o relógio solar, tinha aquele de aguinha lá
– acho que é asteca, egípcio, não sei – daí
aquele que pingava água... aquele do Sol, mesmo... Olhava a posição
do Sol. Era assim que eles viam, né.
13. Entr.: E isso era relógio ou não?
14. AND: É um tipo de relógio. Porque... por exemplo,
o Sol não dá pra ver aproximadamente igual a gente vê
hoje, né, igual aquele relógio ali, que tá os ponteirinhos,
tal. Mas eles viam por horas, né. E pela sombra, então...
daí quando a sombra tava aqui era seis horas, quando a sombra tava
em cima, assim, era meio dia. Era assim. O da água, assim, pela
quantidade de água que caía, quanta... o da água era
até mais preciso, um pouco, eu acho, porque cada pingo era um segundo,
então você podia, sabe... contar minuto assim era difícil
pra caramba, mas... Ampulheta. Tem ampulheta de cinco minutos, dez minutos.
Mas isso é mais recente por causa do relógio. Mas era um
tipo de relógio, né. Não deixava de ser um tipo de
relógio.
15. Entr.: Você falou, por exemplo, esse da água que cada
pingo era um segundo, mas como é que eles sabiam que cada pingo
era um segundo?
16. AND: Pela hora, né. Essas coisas assim que eu acho “animal”:
como é que uma pessoa descobriu que uma hora tem sessenta minutos?
Sei lá, às vezes você pensa assim: o cara deve ter
dado um “chute”, falado ó: cada sessenta pingos aí o Sol
muda de... de espaço, né, de lugar. E vai mudando. Daí
“ah, vamos testar”, e ia testando assim. Eu acho... eu penso assim, mas...
certo eu não sei se tá.
13. Entr.: Você vai percebendo por exemplo olhando o Sol, essas
coisas. Tá. E como é que a gente faz pra… pra marcar o tempo?
14. DAN: É… é usado o relógio também pra
isso, né. E também se não acontece --- (…) Que nem
você fez agora --- os quadradinhos, você marcou o tempo…
15. Entr.: Pelo relógio… É um jeito de marcar o tempo.
16. DAN: É, é um jeito.
17. Entr.: Será que tem um jeito de marcar o tempo sem os relógios?
18. DAN: Tem a cabeça. Tipo assim, você fala: “eu quero
que você faça isso em 5 segundos”. Você conta. É,
você conta mas nunca vai dar exato, eu acho. Você conta 1,
2, 3, 4, 5 [tenta contar de fato, mentalmente, os segundos]. Daí
você tem a base, assim, que é 5 segundos.
B-4:
35. Entr.: (.....) Então vamos fazer o seguinte: eu trouxe aqui
– vou mostrar pra você – alguns relógios. [mostra
os três relógios]
36. RAF (Grupo 1): Ai, ampulheta...!
37. Entr.: Você acha legal a ampulheta?
38. RAF: Ãhã...
39. Entr.: (...) Imagina que você tem que explicar pra alguém
como que esses relógios funcionam. (...) Explica pra mim aí,
como que funcionam esses relógios?
40. RAF: A ampulheta – eu posso te falar a verdade? – eu não
faço a mínima idéia como funciona a ampulheta.
41. Entr.: Não, mas você tá vendo ela aqui. Fala
alguma coisa, o que que você acha. Como é que ela funciona.
Ela tá funcionado ali, ó...
42. RAF: Que eu saiba, é... esse tanto de areia pra cair demora
uma hora, né? Ou meia? – eu não lembro direito. A ampulheta...
hum... marca o tempo por... conforme a areia cai. Né? E o relógio...
pelos ponteiros! – eu não sei, pelos ponteiros, assim. Pelo que
eu aprendi: o ponteiro menor marca a hora, e o maior marca os minutos,
e tem mais um fininho assim – que aqui não tem – que é os
segundos.
43. Entr.: E esse aí no caso, ele... como é que os ponteiros
giram?
44. RAF: Ó, os ponteiros giram... tipo fazendo uma circunferência.
45. Entr.: Mas eu digo assim: que que faz eles girarem? Qual o mecanismo?
46. RAF: (...) É... Bateria...?
47. Entr.: Vê aí...
48. RAF: [após manipular] --- Dá corda num relógio
é um... você vai dar corda no relógio você vai...
girar, tipo, as peças que têm dentro pra elas irem girando
pra os ponteiros se mexerem, né. E o digital funciona por bateria,
né, que --- sozinho.
49. Entr.: (...) E como é que a bateria faz ele funcionar? Tem
alguma idéia?
50. RAF: Não, não tenho.
45. Entr.: Tem algum deles que é melhor pra marcar o tempo?
46. ROD (Grupo 2): Ah, eu acho que esse aqui, de bateria.
47. Entr.: Por quê?
48. ROD: Porque você não precisa ficar to… é… virando…
é… a ampulheta, ou senão ficar dando corda todo dia, você
só troca em determinado tempo a bateria.
49. Entr.: Tá, então você acha que ele é
melhor porque ele, assim, dura mais… e não precisa ficar virando…
(…) Mas tem algum deles que é… é mais preciso que os outros?
Mais exato?
50. ROD: Ah, o de corda é mais preciso, mesmo. Pra despertar…
51. Entr.: Por que que ele é mais preciso?
52. ROD: Pra despertar… pra… ah… --- toda casa tem um desse. Porque
é mais fácil.
53. Entr.: Mas eu tô falando mais preciso assim no sentido de
ser mais exato, de marcar o tempo mais… com mais exatidão… É
ele mesmo?
54. ROD: É.
55. Entr.: (…..) Esse aqui digital não é bom pra isso
também?
56. ROD: Eu acho que não. (…) Porque ele não desperta
bem que nem o outro, é… os número fica… é pequeno
na hora de acordar, aí não dá pra saber muito bem.
57. Entr.: Mas em relação à marcação
do tempo, né, não no sentido assim de despertar. Em relação…
vamos supor o seguinte: esses dois estão aqui pra marcar o tempo,
e aí… eles estão marcando igual o tempo? (…..) Em relação
a essa medida do tempo, tem algum melhor, os dois são iguais…?
58. ROD: Ah, eu acho que os dois são iguais pra medir o tempo.
59. Entr.: Não tem nenhum que mede “melhor” o tempo?
60. ROD: Não.
B-5:
37. Entr.: (…) Vamos começar a viajar um pouco aqui nas idéias,
ó. (…) Todos os relógios que existem no mundo quebraram.
Tem um tempo ainda passando?
38. THA (Grupo 2): Tem, continua passando. Acho que o relógio
só serve pra você saber exatamente o tempo, mas o tempo não
pára, não vai parar.
39. Entr.: (…) Como é que eu saberia que o tempo tá passando
se quebrou os relógios?
40. THA: Pelo dia, por exemplo, você vê que não
fica parado, e que tá sempre… escurece, amanhece de novo.
41. Entr.: Teria um jeito de medir essa passagem do tempo? Sem os relógios,
nesse sentido? (…) O que que eu faço pra medir esse tempo?
42. THA: Humm… [demora a responder] Ah, aí você pode observar
o dia, não sei. Porque quanto mais tempo passa, muda. Tipo: o Sol,
aí ele vai subindo, você sabe que é meio-dia, ele tá…
Dá pra perceber, se --- você ficar olhando um dia, você
percebe, que o tempo tá passando, assim…
43. Entr.: Mas daria pra marcar? Medir?
44. THA: Medir? Exatamente, assim?
45. Entr.: Não, medir de algum jeito. (…) Como é que
eu faço? Dá pra medir?
46. THA: Acho que não.
47. Entr.: Não daria. Não dá pra fazer um “relógio”?
48. THA: Dá, você pode criar, igual era… Tem relógio
de Sol, que eles marcavam pela sombra. E quando não tinha Sol eles
marcavam com a água, né, caindo, no mesmo tempo…
49. Entr.: Dá pra criar um outro relógio, no fundo é
isso…
50. THA: Dá. É.
51. Entr.: E se eu fizer o seguinte – então vamos continuar
aqui, viajando – aí o Sol… por algum motivo o Sol apagou, tá,
então quebrou os relógios e o Sol apagou. E agora? Tem tempo
passando? (…)
52. THA: Tem.
53. Entr.: Como é que você sabe?
54. THA: Mesmo se não for pelo tempo. Se você ficar observando
uma pessoa, assim, muito tempo, você vai ver que ela muda, assim,
na aparência… porque o tempo tá passando.
55. Entr.: Daria pra marcar, agora? Sem o Sol?
56. THA: Tem outros tipos de relógio. Tem o relógio que
eles marcavam com água.
57. Entr.: (…) Quebrou o relógio d’água também,
assim…
58. THA: [interrompendo] Acho que não dá…
59. Entr.: Você vê que a pessoa tá envelhecendo.
Vamos pegar essa coisa da pessoa envelhecendo. Dá pra marcar o tempo?
Com a pessoa envelhecendo?
60. THA: Eu acho difícil marcar com a pessoa envelhecendo, porque
eu acho que… não é tudo igual. Se você pegar, tipo,
cinco pessoas, ficar olhando, não vai ser exatamente igual, as cinco.
Acho que não dá, com um pessoa envelhecendo. Mas aí
você sabe que o tempo passa.
61. Entr.: Mas e se fosse igual? Vamos supor que fosse igual, tudo
---
62. THA: Aí daria.
63. Entr.: Como?
64. THA: Ah… Daria mas não ia ser preciso, assim. Você
ia poder marcar… deixa eu ver. Se você tivesse noção
de tempo por esse relógio, daria pra marcar mais ou menos, quanto
é. Acho que uma pessoa teria a noção, se já
tivesse visto.
65. Entr.: É? Você acha que daria pra… mas daí
imaginar pelo que ela já conhecia do outro relógio. (…..)
Vamos imaginar uma outra coisa, ainda, ó. (…) Não tem pessoas.
Tem tempo passando?
66. THA: Tem.
67. Entr.: Como sabe?
68. THA: Você pode olhar as plantas, por exemplo. Se você
olhar, você vai ver que elas crescem, que elas morrem. Você
pode olhar a natureza. Se você estiver olhando o mar, por exemplo.
Tem uma rocha. O mar toda vez que quebrar vai bate… vai bater vai quebrar
um pouco. Então aquela rocha vai… sumindo. Dá pra marcar
pela natureza.
69. Entr.: Daria pra marcar?
70. THA: Exatamente, não. Você saberia que o tempo tava
passando, mas… não dá.
71. Entr.: (…) Uma planta --- esse exemplo da planta. Não dá
pra marcar o tempo?
72. THA: Eu acho que não.
73. Entr.: Não dá pra fazer um relógio com isso?
74. THA: Acho que não.
75. Entr.: (…) Dá pra separar “tempo” de “medida de tempo”,
é isso?
76. THA: Dá. Porque se não tivesse relógio nenhum
você não vai saber que o tempo passa, tem várias formas
de saber. Mas não exatamente, assim, você não… eu posso
ficar olhando o dia e não… se eu não conhecesse um relógio
não ia saber quanto tempo passou. Eu acho que dá pra separar.
77. Entr.: Tá. E… no caso, vamos também imaginar assim,
então. Acabou as plantas também, acabou tudo o que é…
vamos pensar assim: não tem planetas, não tem estrelas, não
tem Sol, não tem relógio, não tem homem, não
tem ser vivo. Ainda assim teria tempo ou… ou aí não tem tempo,
aí acabou?
78. THA: Tem. Tem… tem. Mas aí eu acho que aí fica complicado
de saber como é que passa. Mas tem.
79. Entr.: Mas então fala um pouco mais disso. Como é
que seria esse tempo aí? Se acabou tudo, como é que seria
esse tempo? Tem um tempo passando?
80. THA: Tem. Do mesmo jeito. Não tem como parar o tempo. (…)
Porque aí sem nada não teria como provar que o tempo passa,
sem alguma coisa. Então… o tempo continua passando, mas não
tem como provar assim, porque… não tem nada, não tem planta,
não tem… não tem nada.
87. Entr.: (...) Vamos imaginar que os relógios quebraram. Os
relógios do mundo todo quebraram. (...) Você acha que ainda
tem tempo? Passando?
88. JEF (Grupo 1): Se todos os relógios quebrarem? Se ainda...?
89. Entr.: Ainda existe tempo?
90. JEF: Vai existir.
91. Entr.: Por quê?
92. JEF: Até quando o Sol desaparecer, quando não existir
mais céu, vai... vai ter o tempo.
93. Entr.: (...) Não depende dos relógios...
94. JEF: Não vai depender, porque a... o horário que
eles marca é a partir do tempo, eles não vão arriscar
a qualquer horário.
95. Entr.: Tá. Então, por exemplo, você falou do
Sol. Vamos supor que daí quebrou os relógios e o Sol também
sumiu. Ainda tem tempo passando?
96. JEF: O tempo passa quando... ainda você sabe falar. Você
canta um, dois, três, aí sessenta, um minuto. Um, dois, três,
aí sessenta, dois minutos.
97. Entr.: Tá. Então quer dizer – vamos supor – o Sol
apagou, quebrou os relógios, mas eu ainda posso...
98. JEF: Você ainda pode contar. O tempo ainda continua.
99. Entr.: O tempo ainda continua. E se eu desaparecer? Se todo mundo
desaparecer? Todo mundo assim, a... ser humano. Todos os seres humanos
desaparecem. Ainda existe tempo?
100. JEF: Se tudo desaparecer?
101. Entr.: É, tudo assim: vamos tirar os relógios, o
Sol, e os seres humanos.
102. JEF: [pausa] Aí eu acho que num...! [risos] Aí não
vai ter mais tempo.
103. Entr.: (...) Mas então o tempo depende da gente, é
isso?
104. JEF: E a gente depende do tempo.
105. Entr.: Então se os seres humanos desaparecerem não
tem mais tempo no universo.
106. JEF: Desaparecerem? Aí não vai ter.
107. Entr.: Não tem mais tempo. Tá. Mesmo que tenha ainda...
sei lá, outros seres vivos...
108. JEF: --- É. Não vai ter ainda. Que a única
forma... que é os relógios, o céu, e você contando.
Se todo esses... três, essas coisas desaparecerem não ia ter
mais tempo no mundo.
Para JEF, “tempo” parece sinônimo de “marcação do tempo”, de modo que na ausência de um aparelho de medida (ainda que seja uma “contagem mental”) o próprio tempo deixaria de existir (passagens 102, 106 e 108). Não parece ser o caso de atribuirmos ao aluno a idéia de que o tempo é uma criação da consciência, mas de observarmos como ele não faz uma abstração da idéia de tempo na mesma direção de THA que, ao separar o tempo de sua medida, imagina que ele continuaria existindo na ausência dos relógios, do Sol, dos seres humanos e até da matéria (passagens 78 e 80). O interessante é que JEF parece defender um “tempo absoluto” na passagem 92, mas, ao longo do debate, elabora seu posicionamento em outra direção.
B-6:
73. Entr.: (...) Aí as pessoas morreram. Sobrou a...
74. LUI: [interrompendo] Aí não existe mais nada no mundo...?
75. Entr.: Existe... o sistema solar, a Terra... Mas as pessoas morreram
na Terra. Tem ainda um tempo passando? Ou aí não tem mais?
76. LUI: Tem. A Terra ainda tá girando ao redor do sol ou ao
redor de si mesma. Aí leva um certo tempo até ela... fazer
o giro completo em torno de si mesma. (...) O tempo só acaba se
não tiver... se não existir o nada absoluto.
77. Entr.: Se eu tirar a Terra? (...) Mas ainda tem os outro planetas,
por exemplo, as estrelas...
78. LUI: A mesma coisa: eles ainda girariam em torno de si mesmos.
(...) Agora se tudo fosse parado. Congelado. Aí eu acho que o tempo
não existiria mais, não seria mais necessário, não
teria mais cálculo. Mas a partir do momento que você tem um
movimento que seja, uma ação, eu acho que o tempo existe.
Ação... ou seja, ação eu acho que é
igual a tempo.
Vemos que LUI afasta-se da visão majoritária entre os
entrevistados, a saber: a idéia de um tempo absoluto, totalmente
abstrato e que flui independente de qualquer coisa. O tempo para ela é
relativo à presença de objetos e movimentos, deixando de
existir juntamente com o desaparecimento da matéria do universo
(ou, nas palavras de LUI, “se não existir o nada absoluto” – passagem
76). Desde que haja movimento (sem que as coisas estejam “congeladas”),
ação, há tempo. A passagem 78 é absolutamente
fundamental para o esclarecimento dessa concepção de LUI.
A grande diferença aqui (em relação à maioria
dos sujeitos) reside na presença de elementos que, se ainda não
compõem um conceito surracionalista de tempo, poderiam sem dúvida
ser explorados nessa direção. São “indícios”
de uma visão incompatível com um tempo absoluto, e que facilitariam
a construção de um tempo surracionalista.
[*] Este trabalho contou com o apoio financeiro
da FAPESP (Bolsa de Doutoramento; processo nº: 00/03798-3). (volta
para o texto)
[1] Nessa direção, compartilhamos
a visão de outros autores como Santos (1991); Good (1993) e Mortimer
(1995, 1996 e 2000). (volta para o texto)
[2] A palavra ‘realismo’, em termos filosóficos,
apresenta várias acepções e – mais do que outras da
hierarquia bachelardiana – pode gerar confusões. É importante
esclarecer, portanto, o uso que Bachelard faz da noção de
‘realismo’. Para nosso autor, o realismo seria a “única filosofia
inata” (Bachelard, 1996, p. 163), com raízes no inconsciente. Opõe-se
a ‘idealismo’, relacionando-se às impressões primeiras e
imediatas sobre o real. Característico da pré-ciência,
o pensamento realista seria marcado por valorizações inconscientes
e subjetivas. Nessa acepção, é importante a adjetivação
“ingênuo”, para diferenciá-lo, por exemplo, do ‘realismo ontológico’,
concepção segundo a qual a existência de uma realidade
exterior independe do conhecimento que se possa ter sobre ela. Bachelard,
nesse caso, preocupa-se com o aspecto epistemológico, e não
ontológico, fazendo uso de ‘realismo’ num sentido que se afasta
dessa última concepção, em certa medida. (volta
para o texto)
[3] Para mais detalhes ver: Martins (2004). (voltar
para o texto)
[4] Outras três questões (consideradas
“extras” e desvinculadas da “espinha dorsal” de questões orientadas
pelas categorias prévias de análise) compuseram o instrumento.
Como tais questões não trouxeram contribuições
significativas para a análise, optamos por não discuti-las
no âmbito desse trabalho (essas questões – de números
8, 9 e 10 – foram omitidas no roteiro presente no Apêndice A). (volta
para o texto)
[5] Em uma única escola não
conseguimos um número par de alunos, porque (devido a problemas
de outra ordem) o início das entrevistas foi postergado, e o último
aluno não permaneceu para a entrevista. (volta para
o texto)
[6] Essa divisão reproduz quase integralmente
as questões do roteiro de entrevistas. (volta para
o texto)
[7] O sexto bloco refere-se às questões
8, 9 e 10 do roteiro que – conforme a nota 5 (supra) – não contribuíram
significativamente para a análise e serão desconsideradas
aqui. (volta para o texto)
[8] Com relação a isso, seria
interessante relatarmos aqui a proposta de três entrevistados, que
citam – além do relógio – outras “formas” para se marcar
o tempo: dois deles referem-se a uma “contagem mental”, e um último
usaria a “programação da TV”. Vemos que as opções
feitas por esses alunos, ao oferecerem uma alternativa à marcação
do tempo sem o uso do relógio, evidenciam que uma idéia de
periodicidade ou repetição ainda está presente (afinal,
a “contagem mental” busca uma repetição periódica
dos números, e a novela da TV também é apresentada
periodicamente...), mas talvez um pouco “enfraquecida”. (volta
para o texto)
[9] Para Leibniz, não existe tempo
sem os fenômenos. É a “ordem sucessiva das coisas” que nos
dá a noção de tempo, sendo ele, pois, relativo. Ele
é uma ordem que relaciona os corpos em suas posições
sucessivas, possuindo um valor lógico, mas não ontológico.
Se não houvesse fenômenos nem criaturas, não haveria
tempo. Já Mach defende que a própria idéia de tempo
é uma abstração, a que chegamos pela variação
das coisas. Seria equivocado, por exemplo, pensarmos que o movimento de
um pêndulo ocorre no tempo. O que fazemos é comparar as sucessivas
posições do pêndulo com outros pontos (na superfície
da Terra, por exemplo). Mesmo sem esses pontos, poderíamos fazer
a comparação com nossos pensamentos e sensações,
que seriam diferentes. Para ele, o tempo absoluto newtoniano não
passa de um ocioso conceito “metafísico”. (volta
para o texto)
[10] Vale lembrar que não pretendemos
aqui “igualar” certas idéias de nossos alunos com visões
históricas, as quais são em geral mais “densas” e inserem-se
em outros contextos. Para citar um exemplo, o tempo absoluto de Newton
envolvia não apenas implicações de natureza religiosa,
mas constituía-se numa necessidade de sua mecânica na medida
em que havia movimentos absolutos, referenciados num espaço absoluto,
em contraposição a movimentos relativos. O tempo absoluto
manifesto pelos entrevistados está longe dessa profundidade teórica,
embora compartilhe com ela um aspecto ontológico fundamental. (volta
para o texto)
[11] Para uma melhor compreensão
desse aspecto do trabalho, ver: Martins (2004), seção 1.4.(volta
para o texto)
[12] A partir das conclusões desse trabalho,
surge de um modo quase natural a idéia de ampliar o conjunto de
dados, seja pelo aumento da quantidade de sujeitos entrevistados, seja
pela seleção de indivíduos de outras faixas etárias.
Especificamente, esse último aspecto seria relevante para a caracterização
da continuidade do processo de conceitualização e para a
verificação da influência do ensino formal, e poderia
incluir alunos de graduação e pós-graduação
em física. (volta para o texto)
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