DIFICULDADES DA GENERALIZAÇÃO DAS ESTRATÉGIAS DE MODELAÇÃO EM CIÊNCIAS: O CASO DA FÍSICA E DA QUÍMICA[1]
(Difficulties in generalizing modelling strategies in science: the case of physics and chemistry)

Ileana M. Greca
In-Praxis
Burgos, España
ilegreca@hotmail.com

Flávia M. T. dos Santos
Faculdade de Educação
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
90046-900 Porto Alegre -RS
flaviamts@hotmail.com
 

Resumo

        Uma revisão dos trabalhos publicados na área de ensino de Ciências, nacional e internacionalmente, revela que o ensino centrado na modelação é considerado como uma das estratégias didáticas mais efetivas para a melhoria da compreensão dos conceitos científicos. No entanto, uma analise mais detalhada revela que o que se entende por modelo ou por processo de modelação é muito amplo e desconsidera as diferenças entre as especificidades das ciências. Neste trabalho nos propomos trazer à discussão as diferenças e similaridades que têm a modelação em Física e em Química, tomando como referência as diferentes tradições explicativas que nelas surgiram principalmente nos séculos XVIII e XIX. A partir desse estudo, discutimos quais as implicações didáticas de se levar ou não em consideração estas diferenças.
Palavras –chave: modelação química, modelação física, dinamicismo, mecanicismo.



Abstract

        A review of the papers published in science education shows that the teaching centred in modelling is seemed as one of the most effective strategies for the improvement of the understanding of scientific concepts. However, a more carefully analyse also shows that what is being called as model or modelling process is very wide, and does not consider the differences in the specificities of the sciences. In this paper we try to discuss the differences and similitude in physics and chemistry modelling, having as reference the different explicative traditions in both sciences in the XVIII and XIX centuries. Finally, we discuss the didactic consequences of having in mind, or not, these differences.
Key words: chemistry modelling, physics modelling, dynamicism, mecanicism
 
 

Introdução

        O ensino centrado na modelação tem se convertido, nos últimos anos, em um dos focos das discussões para a melhoria da aprendizagem dos conceitos científicos no ensino universitário (p. ex. Nersessian, 1995; Devi et al., 1996; Sutton, 1996; Greca e Moreira, 2002; Justi e Gilbert, 2002), sendo a determinação de estratégias didáticas mais adequadas para facilitar este processo, um tema central das investigações. Com origem na pesquisa em ensino de Física, paulatinamente esta abordagem ampliou-se para ser hoje proposta como aquela que parece ser o objetivo central no ensino de ciências nos diferentes níveis educativos.

        Porém na abundante literatura encontrada sobre o tema, se utiliza uma definição muito ampla do que seja a tarefa de modelar em ciências sem distinguir-se, nos diferentes artigos publicados, as peculiaridades de cada ciência. Além disso, o que se entende por modelo e, em alguns casos, suas relações com analogias e representações aparecem nos trabalhos de forma pouco clara. Pode-se apontar, entre outras, pelo menos duas fontes que aparentemente geram confusão: por uma parte, em alguns casos existe uma identificação quase total de modelos com analogias; por outra, a utilização de referenciais teóricos oriundos da psicologia cognitiva e, com eles, a terminologia de representações e modelos mentais dá origem a outro foco de polissemia quando relacionados com os modelos e representações da Ciência. Ilustraremos algumas dessas questões nos exemplos a seguir.

        Harrison e Treagust (2000) utilizam a idéia de modelo analógico como uma forma de representar tanto entidades familiares como não observáveis. A terminologia de modelos analógicos é usada porque o modelo também poderia ser considerado como uma forma de fazer alguma coisa. Para o caso da Química, entendem que os modelos analógicos podem ser modelos de escala, modelos moleculares, modelos icônicos simbólicos (uma fórmula química), modelos matemáticos, modelos teóricos (mecanismos de reação), modelos conceitos-processos (modelos de ácidos, bases e redox).

        Mas como compreender como uma analogia um mecanismo de reação quando este não tem o objetivo de representar um fenômeno, mas sim o de descrever um mecanismo de funcionamento ou processo? A partir dele podemos estabelecer analogias, mas ele em si não pode ser uma analogia, porque a observação do fenômeno quase nunca oferece indícios dos mecanismos internos das reações, sendo este fato inclusive uma das dificuldades para que os alunos compreendam a reversibilidade das reações, relações cinéticas e de equilíbrio químico. As analogias que servem para casos particulares podem ser construídas a partir dos resultados que fornece o modelo de funcionamento, analogias estas que muitas vezes costumam prejudicar a compreensão geral do mecanismo de reação. A idéia de modelo analógico também resulta difícil de aplicar na Física. Poderíamos chamar de modelo analógico o modelo de buraco negro, que serve para descrever algumas das soluções das equações da relatividade geral para massas com distribuição esférica? Que analogias poderíamos usar para descrever o comportamento das partículas fundamentais? Todas elas esbarram nas nossas representações pictóricas desenvolvidas a partir de nossas vivencias "macroscópicas", entrando em conflito com os princípios que regem o mundo microscópico. Estas questões se encontram presentes em Arthur Miller (apud Yamalidou, 2001), nas suas pesquisas sobre o papel do imageamento mental na formulação de teorias científicas nos séculos XIX e XX, onde argumenta que "as analogias não podem ser construídas em situações além do limite de nossa representação pictórica" sugerindo uma forma diferenciada de significação para as discussões sobre o pensamento analógico.

        Harrison e Treagust (2000) também sinalizam que os modelos matemáticos são os mais apreciados pelos cientistas, pois tendem a cumprir um rol prioritário nas explicações por serem mais plausíveis, parcimoniosos, generalizáveis e frutíferos e são dos tipos: causais e preditivos. Embora isso seja atualmente certo na Física, não era necessariamente assim no século XVIII e tampouco é o caso da Química que, segundo Fontenelle (apud Bensaude-Vincent e Stengers, 1992, p. 346) "é a ciência dos fenômenos, ciência onde as conseqüências das leis inteligíveis da Física perdem sua limpidez, onde começa a cozinha obscura das aproximações e das negociações com os dados empíricos". Em uma linha semelhante à de Harrison e Treagust, Galagovsky e Adúriz-Bravo (2001) consideram que "os modelos resultam representações sumamente abstratas e pouco figurativas", ou que "os modelos contêm articulações de um grande número de hipóteses de um altíssimo nível de abstração e com um alto grau de formalização" o que, como antes indicado, não é sempre válido na Química e em alguns exemplos da história da Física.

        Já van Driel e Verloop (1999, p. 1142) colocam que um modelo mantém certas analogias com o objetivo, podendo ser pensado como "uma ferramenta de pesquisa que é usada para obter informação acerca de um objetivo que não pode ser observado ou medido diretamente". Esta concepção[2] apresenta uma definição de modelo que dificilmente poderá aplicar-se amplamente aos modelos físicos e químicos. Em relação ao modelo de corpo rígido, utilizado na Física Clássica para estudar o comportamento de objetos macroscópicos, não se pode dizer que os objetos modelados não possam ser observados ou medidas as variáveis relevantes diretamente. Podemos dizer que eles simplificam o fenômeno, mas não se pode limitar o conceito de modelo somente àquilo que não pode ser observado ou medido diretamente. Isso também acontece na historia da Química cuja grande tradição foi centrar-se no que pode ser medido. Por exemplo, o estudo do átomo no século XVIII na Química se inscreve num programa experimental de caracterização aritmética de cada substancia (Dumas, 1837 apud Bensaude-Vincent e Stengers, 1992).

        Segundo Gilbert et al. (1998) todos os modelos são formados por um processo de construção de analogias. Esta idéia é bastante utilizada no ensino de Ciências, embora os exemplos históricos não corroborem necessariamente esta afirmação, como discutiremos posteriormente. Por uma parte, os autores expressam uma idéia mais aceitável do que aquela que simplesmente identifica analogias com modelos. Neste sentido, usar as analogias como mecanismo para a elaboração de teorias ou modelos é diferente de igualar as analogias com o resultado do processo de modelação. Como indica Nersessian, (1992, p. 62) "a produtividade de uma analogia deriva do fato de ser possível mudar repetidamente o modelo abstrato para ir se adequando às restrições do novo domínio, mais que simplesmente mapear as estruturas relacionais entre dois domínios". Assim, por exemplo, destaca (idem, p. 425) que "a dimensão cognitiva das analogias, metáforas e experimentos é central, no sentido de que estas táticas sugerem um raciocínio inferencial que atua gerando novas representações a partir das existentes", sendo poderosas como ferramentas que auxiliam, pelo menos no caso da Física, o processo da formalização. Tomemos o caso de Maxwell. A analogia que ele utiliza para encontrar as leis fundamentais do eletromagnetismo é uma analogia de fluidos, fundamentada na Mecânica Clássica, porém o resultado de sua formalização excede a analogia inicial, porque traz conseqüências que entram em conflito com os fundamentos da analogia utilizada. Assim, o modelo matemático desenvolvido por Maxwell não pode ser identificado simplesmente com a analogia utilizada para lhe dar origem.

        Outros trabalhos (p. ex., Gilbert et al., 1998; Galagowsky e Adúriz-Bravo, 2001) se apóiam na visão epistemológica de Ronald Gière. Gière (1992) propõe os modelos como unidade de sua análise da ciência, discutindo que as teorias científicas são estruturadas sobre a base de certas famílias de modelos, sendo cada um destes modelos um mapa cognitivo individualizado representando um tipo de situação possível. Estas famílias teriam uma certa estrutura hierárquica, organizadas em vários níveis de abstração, existindo alguns modelos que seriam mais básicos e outros mais periféricos. Gière tenta assim analisar o papel cognitivo desempenhado pelos modelos, tanto na aprendizagem dos iniciantes quanto no trabalho científico propriamente dito[3]. Sua posição epistemológica se embasa em elementos da Psicologia Cognitiva, embora o uso que ele faz da mesma possa ser bastante questionado (Zamora Bonilla, 2000). De alguma forma sua postura estabelece as bases para uma certa confusão entre modelos cognitivos ou mentais (representações internas, individuas, idiossincráticas e incompletas) e modelos científicos (representações externas, consensuais em uma comunidade e completas). Além desta questão, a análise de Gière sugere que as teorias surgem de famílias de modelos. Isto, no entanto, não se pode aplicar a todas as teorias. Assim, por exemplo, embora se possa observar o aparecimento de sucessivos modelos até chegar aos primeiros princípios no desenvolvimento da Termodinâmica ou do Eletromagnetismo, o mesmo não se pode dizer com a origem da Mecânica Quântica. Por outra parte, também algumas teorias surgem de outras, sintetizando aspectos fenomenológicos, mas não como resultado de um processo de construção de sucessivos modelos. O caso da teoria eletrodinâmica quântica pode servir para exemplificar este caso.

        Outro elemento que aparece pouco diferenciado nos trabalhos é a distinção entre modelo e representação. Embora os modelos possam ser pensados, tanto na Física quanto na Química, como representações simplificadas de fenômenos ou processos, nem toda representação corresponde com um modelo. Esta distinção, ainda que quase obvia, é importante. Assim, quando se solicita aos estudantes para representar microscopicamente o conteúdo de uma garrafa de coca-cola (aberta e fechada), uma mistura de aparência homogênea de líquido e gás, os alunos poderão representar com base em um modelo do comportamento microscópico do sistema. Não podemos, no entanto, considerar que suas representações pictóricas sejam literalmente o modelo utilizado para construção da representação. Justi e Gilbert (2002), entre outros, ao fazer uma revisão sobre os modelos parecem relacionar de forma direta modelos com representações de entidades.

        Os exemplos que apontamos, enfatizando que não correspondem a uma pesquisa exaustiva sobre o tema, parece-nos que servem para colocar alguns dos problemas que aparecem na literatura na área em ensino de ciências em relação ao que se está entendendo por modelo e modelação e mostram também a necessidade de pensar quais são as diferenças para as disciplinas científicas. Neste trabalho nos propomos a discutir algumas das diferenças na modelação em Física e em Química e suas possíveis implicações didáticas.
 

Modelação em Física e em Química

        Uma teoria física pode ser pensada hoje como um sistema de representações no qual convivem dois conjuntos de signos: os signos matemáticos e os signos lingüísticos. Os signos lingüísticos estão organizados em enunciados que dizem respeito aos fenômenos que a teoria pretende descrever e adquirem significado no contexto da teoria em questão. O conteúdo semântico da teoria científica, contudo, não se refere apenas a sistemas, objetos ou fenômenos percebidos por observação direta, senão que a relação entre teoria e realidade está usualmente mediada por algum modelo físico. O modelo físico é, em geral, a descrição resultante quando os enunciados da teoria se referem a um sistema ou fenômeno simplificado e idealizado. Assim, no modelo físico de um gás pode-se supor que este é composto por um conjunto de esferas que interagem através de colisões elásticas. O gás deixa de ser real para ser "ideal" e assim podem ser aplicados ao mesmo os enunciados da teoria mecânica clássica. Os modelos físicos desenvolvem a potencialidade da teoria, originando-se de imagens e metáforas que delimitam os fenômenos: se a teoria científica constitui uma particular "concepção de mundo" determinando o tipo de perguntas e de explicações que podem ser formuladas, os modelos físicos determinam a forma pela qual são "percebidas" as classes de fenômenos vinculadas a eles. Os modelos são, para os físicos, instrumentos de trabalho que permitem representar um problema de forma simplificada. Tais modelos estabelecem, por exemplo, as simplificações, os vínculos e as restrições necessárias ou as estruturas internas, mesmo que não sejam diretamente observadas (por exemplo, as estruturas que servem de alicerce aos distintos modelos de átomo). Pense-se, por exemplo, nas aplicações (restrições) do modelo de partícula pontual da mecânica clássica a qualquer sistema sobre o qual atua uma força central, independentemente das dimensões do sistema. Constituem-se em poderosas representações heurísticas que resumem os aspetos essenciais da teoria de modo que é possível "visualizar" com maior facilidade os princípios explicativos da teoria (Jammer, 1974, p. 11).

        No entanto, a relação estabelecida entre realidade e modelo físico é complexa, de maneira que quando se fala em "visualizações" estas devem ser entendidas de maneira ampla e não como uma relação pictórica, onde cada elemento do modelo corresponde a um elemento da realidade. Como indica Dirac (apud Jammer, 1974, p. 13), ainda que o objetivo principal da ciência não seja o fornecimento de imagens, e o fato de elas existirem ou não ser uma questão de importância secundária, sempre se pode entender o significado da palavra imagem de maneira a incluir qualquer forma de enxergar as leis fundamentais que torne evidente sua auto-consistência. De fato, as teorias físicas do último século fizeram um uso cada vez menor de visualizações, em parte, como dito antes, devido às limitações das representações que podemos gerar a partir de nossa vivência macroscópica e, em parte, porque dentro da física tem sido paulatinamente abandonada a visão mecanicista (Hendry, 1986). Assim, a criação da Mecânica Quântica se assenta na negação da possibilidade de visualização. Pauli argumentava que nossas concepções visuais eram patentemente inadequadas para compreender conceitos como dualidade onda-partícula, ou campo-partícula. Por essa mesma razão o papel das analogias, no sentido colocado por Miller, de visualizações - embora não como metodologia, como discutiremos posteriormente - tem tido cada vez menor relevância nas teorias físicas. Isto não quer dizer que as visualizações tenham desaparecido do espectro de possibilidades para a compreensão dos fenômenos físicos - pense-se, por exemplo, em Feynman e suas visualizações das interações entre partículas. No entanto, como destaca Hendry (1989), pelo menos a visualização em Física não pode mais ser confundida com a realidade da forma que era antes da aceitação da Mecânica Quântica.

        Por outra parte, os signos matemáticos configuram o formalismo da teoria, são o conjunto de enunciados da teoria privado de seu conteúdo semântico. A tal estrutura sintática é que se costuma denominar de modelo matemático da teoria. Como os modelos matemáticos são decorrentes de alguma teoria matemática, às vezes se estende a denominação de modelo matemático à teoria matemática da qual ele deriva (Lombardi, 1997). O modelo matemático constitui um sistema axiomático articulado dedutivamente, que permite expressar os enunciados da teoria na forma de relações e equações. Os valores de muitas das variáveis obtidos da utilização destas equações se identificam com as magnitudes das propriedades do sistema em estudo somente depois de sua interpretação semântica, via modelo físico. O modelo matemático pode até conter expressões descritivas como "partícula" ou "função de estado", mas ainda que estas pareçam ter algum significado físico, este não é outro senão aquele determinado pelo lugar que ocupam dentro da estrutura formal. Em resumo, embora o modelo físico carregue implícito um modelo matemático, este último não constitui em geral por si só uma descrição dos fenômenos. Isto é conseqüência de que esse sistema axiomático carece de referencial, sendo semanticamente cego (Lombardi, ibid.).

        A modelação de um fenômeno em Física supõe hoje a inter-relação entre estes dois sistemas de signos. Assim, basicamente neste processo se parte de um problema ou fenômeno real, para o qual se busca uma solução matemática ou conceitual, sendo, a seguir, identificados os elementos (objetos, variáveis de interação, etc) que servirão para descrevê-lo - escolha esta condicionada pela teoria física a partir da qual a situação será descrita. O seguinte estágio deste processo é a formalização de tais propriedades, ou seja, a determinação das equações que as entrelaçam e a exploração das mesmas. Por último, se tem a validação do modelo, em que se investiga se os resultados obtidos a partir dele são coerentes com a informação que se tem sobre o sistema (Andaloro et al., 1991)[4].

        Na Química o processo de modelação tal como é apresentado aos estudantes é bastante diferenciado. Na Física, desde o inicio da carreira universitária, modelar uma situação envolve, como vimos, expressar matematicamente as relações físicas entre os objetos idealizados para modelá-la, a partir dos supostos de um dado modelo. Na Química, no entanto, este tipo de modelação é deixado para níveis mais avançados. Em geral, ao nível universitário introdutório, se pretende que os estudantes sejam capazes de modelar uma situação a partir da utilização de uma representação pictórica, que lhes permita raciocinar e que possa ser expressa na sua contrapartida simbólica. Isto acontece porque na Química, além dos signos matemáticos e lingüísticos, a modelação, a interpretação microscópica de fenômenos observáveis, está muito ligada à representação pictórica, representação esta sem contrapartida na Física. Estas representações pictóricas, convertidas no sistema de signos fundamental para a modelação, se constituem em modelos analógicos usados para explicar conceitos abstratos.

        A complexidade dos fenômenos químicos modeláveis leva a que devam ser considerados vários conceitos ao mesmo tempo para a compreensão de um fenômeno: uma ampla variedade de classes de substâncias e comportamentos físicos e químicos é examinada nas suas transformações externas e internas, o que exige aos modelos químicos múltiplas representações estruturais para poder dar conta destas dinâmicas. Somente a utilizaçao destas representações, que possibilita o estabelecimento de relações causais entre os fenômenos observáveis e os mecanismos internos de funcionamento dos sistemas, torna esses sistemas inteligíveis (Yamalidou, 2001). Ou seja, a manipulação mental desses modelos é o que torna a realidade química inteligível. Algumas das propriedades destes modelos são similares aos aspectos reais que procuram representar, outros aspectos, no entanto, não se refletem no modelo. Por outra parte, diferentes representações pictóricas focam sobre diferentes propriedades das partículas, criando múltiplas formas de representar o mesmo sistema. Possivelmente o aspecto mais saliente deste uso de representações pictóricas seja que elas levam a uma "reificação" dos modelos, onde os tipos de representações pictóricas utilizadas parecem solapar-se, para os estudantes, com "imagens" do fenômeno.

        Grande parte destas diferenças parece decorrer da forma como são abordados os fenômenos. Na Física existe uma tendência a reduzir os fenômenos a entes ideais e trabalhar com essa realidade simplificada e idealizada; enquanto na Química, a representação do fenômeno (real ou ideal) torna-se ente com realidade própria, quase material. Como criticamente discute Bachelard (1991, p. 51), na Química pareceria bastante cômodo "entregar-se a um realismo totalitário e unitário e considerar que tudo é real - o elétron, o núcleo, o átomo...- " e utilizar modelos que tornam essa realidade manipulável para a compreensão e predição dos fenômenos. Esta reificação dos modelos se dá ainda em áreas que para Bachelard caracterizariam o racionalismo químico, como a síntese química. Nessa área, segundo Hoffman (apud Bensaude-Vicent e Stengers, 1992), a fabricação de uma molécula é um trabalho que exige uma verdadeira estratégia de controle da ação da molécula, dirigindo-a ao local específico da estrutura molecular, conduzindo reações em função dos reagentes disponíveis e das condições do sistema. Mesmo hoje, que grande parte destas estratégias se passa por simulação em computador, o químico continua a manipular esses sistemas como se eles fossem reais. Certamente, o "realismo químico" é um realismo cultivado; a representação em Química requer experiência cultivada, tendo desta forma o fenômeno químico um substituto racional complexo como expressa Bachelard (1991, p.55): o real não é mais do que realização. Porém, a tendência a adotar posições realistas ingênuas em relação à representação química é grande, sendo reforçada pelas formas de modelização que se pretende os estudantes aprendam nos primeiros anos da formação universitária.

        Por outra parte, muitos modelos químicos não necessariamente envolvem muita formalização nem grandes abstrações matemáticas. Assim, embora muitas teorias químicas estejam fundamentadas em teorias físicas, não apenas elas dão sustentação à compreensão dos fenômenos químicos, senão que pela complexidade da sua problemática se continua trabalhando com modelos fenomenológicos propostos no século XIX. Como dizia Bachelard, cujas palavras são muito atuais, ainda hoje, em diferentes áreas da Química, e principalmente na química escolar, muitos dos modelos utilizados, da linguagem empregada e até mesmo das técnicas de análise remontam a épocas onde a sistemática de pesquisa estava vinculada à sistemática da experiência (Bachelard, 1991, p. 53). Por exemplo, a hipótese cinética é uma hipótese realista do século XIX (Bensaude-Vicent e Stengers, 1992, p. 314.) que hoje é ainda utilizada para a explicação do comportamento de muitos sistemas químicos. A hipótese cinética remete a noção de "força química" e implica reconhecer as moléculas como entidades discretas, susceptíveis de movimento, de colisões, ou seja, de comportamento individual. Este modelo é completamente diferente dos símbolos cômodos em uso pelos químicos de síntese da época e também diferente da interpretação termodinâmica, que tem como conceito central a entropia, grandeza mais abstrata que a Física do século XIX utilizada na hipótese cinética. O amplo uso deste modelo no campo da cinética é devido a cada substância (ou grupo de substâncias) ter uma cinética própria relativa às diferenças de comportamentos relacionadas com a composição-estrutura, temperatura, pressão, concentração – ou seja, uma situação complexa à qual os modelos devem responder. Estes modelos de situações complexas e dinâmicas, que envolvem sucessão de mudanças e mecanismos intermediários, permitem alcançar logros parciais na generalização matemática para algumas classes de substâncias. De maneira que a descrição normativa, metodológica, claramente crítica e legítima de um racionalismo químico que avançou e se estabeleceu em várias áreas, não conseguiu, contudo, construir um corpo teórico consistente e amplo o suficiente para unificar o pluralismo molecular (discursivo, funcional e representacional), embora estes mesmos modelos tenham progredido, conceitual e representacionalmente, a partir da "matematização" dos mesmos, como no caso dos estados de transição na cinética das reações.

        Além disso, a partir do momento em que o modelo passa a ser manipulado deixam de ser relevantes para a compreensão os modelos matemáticos que o sustentam –Eletromagnetismo e Eletroquímica na Química. Daí decorre o abandono dos modelos formais e a utilização de representações e algoritmos, quando o modelo vira um algoritmo. Muitas vezes quando um químico procura a realização uma nova reação ele prevê a formação de compostos lançando mão do algoritmo e não do modelo químico (termoquímico, eletroquímico, cinético, da reação) que o sustenta. Como um físico matemático, para integrar uma nova equação, deve ter na cabeça o quadro de todas as equações integradas, o químico para encontrar um caminho elegante na produção de uma reação química inédita, deve conhecer todos os processos já dominados e todos os reagentes disponíveis. Nesse processo lança mão de seqüências reacionais transformadas em espécies de algoritmos químicos.

        Na Química verifica-se também a coexistência de diferentes modelos para abordar um mesmo fenômeno, sem que necessariamente cada modelo seja mais explicativo e mais preditivo que o outro. Isto se deve, como já comentamos, a que os modelos químicos devem responder pela complexidade da situação química, seja de forma qualitativa e/ou em conexão com o formalismo matemático, em diferentes graus de complexidade. A diversidade dos modelos corresponde a diferentes contextos situacionais, sendo funcionais e dependendo do interesse da explicação do contexto da substância e sua mudança[5]. Yamalidou (2001) discute esse pluralismo na conceitualização da molecularidade material como uma característica persistente no discurso molecular. Outro exemplo pode ser extraído da elaboração da "Teoria Química Quântica dos Elementos", que não foi deduzida da Mecânica Quântica, mas proveniente desta e de outros dados empíricos teorizados pela Química. Assim, até os anos 50, a teoria de Heitler e London, fundada em superposição de orbitais atômicos foi considerada por muitos químicos como mais rigorosa que a representação de Lennard-Jones, construída sobre a hipótese de orbitais moleculares, representação esta mais acurada desde a visão proveniente da Mecânica Quântica. A controvérsia foi superada quando os especialistas conseguiram reconhecer que a construção de uma representação dos orbitais moleculares requeria intuição e habilidade. Apesar disso ainda hoje no ensino de química a idéia de superposição de orbitais atômicos é utilizada no ensino de ligação química. Pode dizer-se pois que as leis da química dos elementos, oficialmente reduzidas à Mecânica Quântica, mantêm contudo um ar do passado. Estes modelos não são aproximações de fatos ideais e sim "negociações" numa relação de co-aprendizagem com os fatos (Bensaude-Vicent e Stengers, 1992, p. 344).

        Qual a origem destas diferenças na forma de modelar em Física e em Química? Na seguinte seção vamos a elaborar uma tentativa de explicação relacionando-as com a evolução das visões mecanicista e dinamicista nas ciências.
 

As tradições mecanicista e dinamicista na elaboração de explicações científicas

        Os fundamentos da Física e da Química do século XIX podem ser explicados nos termos das tradições mecanicistas e dinamicistas. A origem destas duas posições opostas pode rastrear-se aos gregos, com Platão entendendo o mundo a partir de um processo que começava na mente e progredia dali ao mundo exterior e com Aristóteles, que em sentido contrário, partia do mundo exterior à mente. Como descreve Hendry (1989, p. 8)[6] o conflito entre as atitudes dinamicista e mecanicista apareceram de formas diferenciadas em diferentes contextos: "Em geral a filosofia dinamicista foi suspicaz a qualquer hipótese acerca da estrutura do mundo natural, porém dentro da ciência a bem conhecida filosofia mecanicista, embasada em suas hipóteses de átomos e configurações geométricas, também teve uma contrapartida dinamicista na qual os sistemas da natureza eram construídos de forma semelhante aos sistemas mecânicos mas embasados nas hipóteses dinamicistas de forças ativas".

        A revolução científica é usualmente apresentada como uma "mecanização da imagem do mundo", o que em parte é certo por exemplo a partir da re-introdução do atomismo grego por Gassendi e outros. O mundo cartesiano era constituído por duros átomos impenetráveis interagindo somente por contato e toda a diversidade dos fenômenos naturais resultavam da combinação e das diferenças entre formas, tamanhos e movimentos destes átomos fundamentais. Porém, nesse mesmo século, Kepler era basicamente um platonista e dinamicista, investindo em um universo de forças vívidas. Hendry sinala que Galileo, por exemplo, embora sendo considerado um mecanicista não o era no sentido de Descartes, dado que considerava, a diferença deste, a hipótese atomista desde uma postura positivista-útil, porém não necessariamente como a descrição final do mundo. Uma coisa semelhante acontece no século seguinte. Newton e Locke estabelecem a filosofia dominante durante o século XVIII. Ao definir de forma matematicamente precisa o conceito de força, Newton mudou os termos nos quais se estabeleceu o debate mecanicismo versus dinamicismo: ou as forças eram tratadas como inerentes à matéria ativa, visão dinamicista, ou como alguma coisa superposta a uma matéria inerte, visão mecanicista. Porém, se se adotava esta última idéia ainda existia uma eleição a mais. Estas forças podiam ser tratadas como elementares ou sujeitas a explicação em termos de algum meio etéreo. Este meio, por sua vez, era visto como uma matriz de forças pelos dinamicistas e como um fluido material ou mecânico pelos mecanicistas. Newton nunca tomou uma postura que pudesse ser identificada claramente como pertencendo a uma ou outra tradição (Hendry, ibid., p. 10).

        Porém as teses mecanicistas que marcaram o modo de explicação científica durante aquele século são basicamente devidas a Locke: todas as explicações causais deviam ser expressas em termo de relações geométricas entre os corpos, e as ações eram resultantes de impulsos por contato entre os mesmos, as forças sendo assim superpostas a uma matéria passiva. A composição química ou o calor eram conseqüências mecânicas das relações entre os corpos. Este tipo de explicação mecanicista foi introduzida com êxito na Química por Lavoisier e Dalton, onde a tradição dinamicista nunca conseguiu afiançar-se. Laplace, a partir do trabalho de Lavoisier, teve um grande sucesso ao reduzir toda a física a uma análise de variedades de forças mecanicistas e corpúsculos e a tradição mecanicista se instala com força no século XIX, sobretudo na Inglaterra e na França.

        Leibniz é o principal filósofo do dinamicismo nesse século. Para ele a natureza devia ser entendida como um plenum dinâmico, um contínuo de forças em que as ditas forças dão origem às qualidades mecânicas e não ao contrário. O átomo é visto como um centro de forças não material, como vai defender Faraday. Para Kant, que tenta reconciliar as idéias de Leibniz e Newton, as propriedades de solidez, extensão ou impenetrabilidade são conseqüências de "forças em movimento" observadas de atração e repulsão - a matéria sendo como um substrato visualmente indefinível e cujas propriedades derivam de suas forças ativas - e as leis da mecânica, como as da conservação da matéria, derivam daquelas da dinâmica.

        Enquanto na Química dominava o mecanicismo, na Física as idéias atomistas eram defendidas por físicos que, em outros aspetos, tinham atitudes dinamicistas. Possivelmente a diferença mais saliente a este respeito entre as duas tradições seja que enquanto os mecanicistas construíam as suas teorias sob hipóteses atomistas específicas e "verificáveis", os dinamicistas só mantinham que a matéria era formada por átomos, porém de uma forma vaga, rejeitando as detalhadas hipóteses mecanicistas.

        O debate entre os sistemas de ciência mecanicistas e dinamicistas não tinham influenciado a Física Matemática até o século XVIII, fundamentalmente por que a extensão do referencial teórico gravitacional newtoniano à Eletricidade, ao Magnetismo e à Química era essencialmente qualitativa e não matemática, sendo os problemas abordados matematicamente de natureza macroscópica, e não precisavam de hipóteses acerca da constituição última da matéria. Porém Lagrange, no século XIX estabelece um método que logo vai tornar-se característico na Física: o método analítico, divorciado de qualquer representação visual-geométrica ou mecânica. Em lugar de colocar modelos específicos e equações de movimento para cada sistema tratado – o que era característico da abordagem mecanicista – Lagrange propõe um conjunto completo de equações gerais, aplicáveis a qualquer sistema. Ou seja, estabelece um método no qual as explicações deviam provir de um conjunto de axiomas fundamentais, dedutíveis a priori da razão pura. Contemporâneo de Lagrange, Laplace rejeitava esta abordagem considerando que ela não poderia ser chamada de Física. Para ele, as teorias deviam ser deduzidas das observações empíricas do mundo e representáveis por moléculas e forças intermoleculares.

        Um exemplo da diferença entre estas duas abordagens pode ser visto na teoria do calor. Na tradição mecanicista, a transferência de calor era explicada em termos de átomos de calor supostamente irradiados de fontes dentro de cada molécula individual. Considerava-se a interação a distância entre duas moléculas irradiantes e então se integrava sob todas as moléculas interatuantes a serem consideradas no corpo. Fourier, pelo contrário, estabelece um modelo de transferência de calor partindo do nível macroscópico e da observação empírica, no qual a taxa de transferência de calor de um corpo quente ao meio mais frio era proporcional à diferença de temperaturas e não às temperaturas propriamente ditas. Assim parte do pressuposto de que as camadas adjacentes em contacto no sólido são as únicas que comunicam calor diretamente. Embora as leis de fluxo de Fourier possam ser expressas em termos dos modelos mecânicos, como transferência entre moléculas, a teoria em si não é mecanicista: não depende de modelos microscópicos, rechaça a ação a distância e é válida no limite em que a matéria e o calor são tratados como contínuos. O embate entre estas duas posições apareceu também nas teorias da luz, dos sólidos elásticos e da eletricidade e magnetismo. Hamilton, por exemplo, desenvolve uma dinâmica generalizada, embasada em funções características e leis de variação da ação, aplicáveis à Mecânica e à Ótica, e posteriormente utilizada na Mecânica Quântica. A idéia de campo também é introduzida pelos dinamicistas do século XIX especialmente na área da teoria eletromagnética, e posteriormente estendida à explicação de um leque de fenômenos até então somente tratados em termos de hipóteses moleculares e de ações a distância.

        Resumindo as características fundamentais das duas tradições, tal como se apresentam no século XIX, poderíamos dizer que para os mecanicistas as hipóteses deviam ser verificáveis pelos sentidos, supondo-se que o mundo natural estava estruturado de forma que era compatível com nossos sentidos visuais. Para os mecanicistas uma concepção era clara quando era possível representá-la por uma imagem. O concebível era reduzido às fronteiras do que podia ser desenhado (Coleridge, 1956, apud Hendry, ibid., p. 25). Os dinamicistas não aceitavam que tudo na natureza pudesse ser representado por construções mecânicas. Enquanto as construções mecânicas eram apresentadas como representações objetivamente válidas e verdadeiras da natureza, esta visão era rejeitada pelos dinamicistas. Isto não quer dizer que os dinamicistas negassem o valor heurístico dos modelos mecanicistas, senão que passam a serem usados como hipóteses valiosas, como guias e ilustrações, e não como uma descrição necessariamente verdadeira da natureza. Dentro da tradição dinamicista um modelo era valioso ainda que falhasse em reproduzir os fenômenos observados. Os mecanicistas, no entanto, deviam conformar-se estritamente aos possíveis comportamentos mecânicos de seus modelos.

        Outro ponto de fundamental diferença entre as duas abordagens está relacionado ao conceito de unificação, e que pode ser importante para explicar, pelo menos em parte, a proliferação de modelos "paralelos" na Química. A idéia de unificação dos fenômenos para os mecanicistas tomava a forma da hipótese de que o efeito de todo fenômeno devia ser reduzido aos mesmos elementos básicos. Para os dinamicistas, pelo contrário, a unificação era conseqüência de uma necessidade epistemológica. Eles partiam do pressuposto de que todas as leis científicas deviam derivar-se das propriedades comuns da mente humana, e esta unidade de origem devia refletir-se na unidade de forma. A unificação se refletia através das formas do espaço-tempo, das leis de causa-efeito, e das estruturas da dinâmica racional. A partir destes elementos a analogia passa a ser considerada um método fundamental na Física - embora não único , dado que haveria, pelos supostos anteriores, uma analogia entre as ciências e entre a natureza e a mente. Isto nos leva ao papel das analogias. Para os mecanicistas as analogias representavam a realidade; para os dinamicistas a analogia era uma guia para a teoria e não uma garantia de sua veracidade[7]. Este uso das analogias abriu o caminho para o uso de modelos mecânicos na tradição dinamicista.

        Os conceitos de unificação e analogia eram precisos e explícitos na Física Matemática do século XIX; as leis da dinâmica passaram a ser cada vez mais criações humanas, abstraídas de estruturas matemáticas e, portanto aplicáveis a todos os aspectos do mundo físico: para Lagrange, o principio era o das propriedades energéticas, e não dependia das estruturas internas dos sistemas; para Hamilton, os fenômenos podiam ser explicados em termos do principio da mínima ação e independente do tipo de fenômeno a ser tratado. O tratamento dinamicista partia de tentativas de construção de estruturas matemáticas independentes do contexto para logo serem consideradas suas interpretações físicas. Em contraposição, os modelos mecanicistas eram particulares, partiam de observações empíricas e sujeitos a cada fenômeno específico.

        A tradição dinamicista tem talvez como seu máximo expoente no século XIX a Maxwell, e se instala soberana na Física a partir do aparecimento da Mecânica Quântica[8]. Ao pressuposto mecanicista de que a natureza é visualizável se opõe a visão dinamicista de que nossas analogias visuais da natureza são limitadas e parciais, embora possam ser necessárias para a compreensão e para a comunicação dessa compreensão. A partir da rejeição da visualização espaço-temporal da Mecânica Quântica a energia se converte no bloco construtor central da Física, sendo centrais desde então os métodos de conservação da energia, de hamiltonianos e da análise vetorial.

        Na Química, por outra parte, na segunda metade do século XIX começa a se traçar uma visão dinamicista das substâncias, que avança com o progresso da síntese química dos isômeros, termo genérico logo dividido em sub-espécies nomeadas por Berzelius como "polímeros" e "metâmeros" (Bensaude-Vicent e Stengers, 1992, p. 209). Os conceitos dinâmicos também começam a serem utilizados nas idéias de trajetórias dinâmicas nos processos de síntese e nas reações químicas como sucessão de intercâmbios energéticos no tempo. Assim, na visão dinamicista da substância esta começa ser considerada como pluralista, e sua evolução corresponde com atividades determinadas em uma variedade de operações. No entanto, a complexidade das situações às quais devem responder os modelos químicos parece determinar, como discutiamos anteriormente, uma sobrevivência de modos "mecanicistas" de compreender a realidade química, que leva, nas palavras de Bachelard (1991, p.55) "que este racionalismo ... comande todo um exercito de realistas" químicos. Assim, ainda que hoje possa se dizer que a tradiçao mecanicista na Química, nos termos do século XIX, seja uma concepção superada e não coerente com o dinamismo da substância, o discurso quimico, tal como ele é ensinado no ensino médio e nos primeiros anos do ensino superior, mantém resquícios de uma visão mecanicista.

        Em resumo, enquanto a Física foi se encaminhando cada vez mais aos padrões dos dinamicistas, rejeitando a visualização, e apoiando-se cada vez mais em estruturas matemáticas abstratas e generalizáveis, a Química manteve, em várias áreas, uma tradição mecanicista, com seus modelos particulares, visualizáveis, representáveis e objetivamente válidos e verdadeiros da natureza. É importante assinalar que estes elementos aparecem refletidos tanto nos livros didáticos usados nas duas disciplinas, quanto nos programas de estudo.

        Estas questões se relacionam com aquilo que apontamos em relação às diferenças na modelação discutidas na seção anterior. Como indicamos, enquanto na Química as representações pictóricas jogam um papel principal, na Física este papel é fundamentalmente constituído pelas representações idealizadas das estruturas matemáticas. De alguma forma, então, estas diferentes tradições têm levado a que a modelação na Física envolva construções mais racionalistas, no sentido de Bachelard, enquanto que a modelagem em Química tenderia a ser mais realista.
 
 

Os modelos e o Ensino da Física e da Química

        Como vimos tentando argumentar os modelos e o processo de modelar nas duas áreas têm naturezas diferenciadas. Na Física modelar uma situação envolve, como vimos, expressar matematicamente as relações físicas entre os objetos idealizados para modelá-la, a partir dos supostos de um dado modelo; isso envolve uma completa idealização dos fenômenos e manipulação de entidades matemáticas abstratas que logo são traduzidas em entidades físicas relacionadas com os fenômenos.

        Na Química, por outro lado, e em parte como conseqüência de sua complexidade, o processo de modelar pode assumir diferentes nuances, algum deles idealizados e muito próximos àqueles usados na Física. Entretanto, muitas vezes a modelação é realizada estreitamente com o fenômeno, como discutimos no exemplo da cinética. Neste modelo as entidades (moléculas, átomos) são tomadas como entidades reais, ou mesmo "realizáveis", sendo seu comportamento considerado muito similar ao comportamento dos objetos materiais macroscópicos.

        Essa característica é mais acentuada em alguns campos conceituais da Química, principalmente naqueles que resistiram mais bravamente às transformações teóricas impostas pela Teoria Quântica (oxi-redução, leis ponderais da Química, reações químicas, análise química, etc.). É interessante observar que o conteúdo trabalhado nas séries iniciais do ensino médio e primeiros anos do ensino universitário foca quase exclusivamente tais conceitos. Nesses conteúdos, embasados em modelos fortemente realistas, se faz necessário e se impõe a representação como elemento fundamental para a compreensão, representação essa que recorre pouco às representações matemáticas e foca fundamentalmente sobre representações pictóricas.

        Um conteúdo interessante de observar essas diferenças entre as formas de modelar em Química e em Física e as dificuldades que essas diferentes formas trazem para a compreensão dos estudantes é o que se refere aos modelos atômicos. O que acontece quando os alunos aprendem modelos atômicos que são ensinados sob um ponto de vista químico e mais tardem devem reinterpretar esses mesmos modelos sob o ponto de vista físico? Sob o ponto de vista químico eles aprendem o átomo como um sistema material, concreto, realista, cujos elétrons percorrem clássicas trajetórias bem definidas. Este modelo não se reduz somente a uma analogia "didática", senão que ele serve de base para a compreensão dos processos de interação entre espécies atômicas e moleculares diferentes. Esse modelo realista permite que o aluno compreenda mecanismos de reações químicas, ligações entre átomos, etc. Tanto é assim que muitos alunos ao representar na fórmula de Lewis uma ligação química entre íons[9], representam elétrons como partículas que trocam de átomos, alguns alunos inclusive representam com símbolos e cores diferentes os elétrons de cada espécie em ligação. Por outra parte, quando o estudante deve estudar o mesmo assunto na Física deve compreender que não pode associar-se o elétron a uma partícula clássica, que pelo princípio da incerteza, o elétron não possui nem dimensão nem posição definidas, que são indistinguíveis os elétrons de diferentes átomos, e que a melhor forma de descrever o comportamento é dado pelo quadrado da amplitude de onda de uma equação matemática, que é a equação de Schrödinger. Os alunos também devem apreender que é impossível ter uma representação analógica apropriada para essa abstração matemática. No entanto, o peso da representação realista perdura e é praticamente impossível conseguir que os alunos abandonem essa imagem que se converte no empecilho fundamental para apreender os fundamentos quânticos, como mostram os resultados de diversas pesquisas a esse respeito (para uma revisão, ver Greca e Moreira, 2001).

        Pareceria então ser fundamental poder explicar aos estudantes que a forma de modelar em Química e Física são, sobretudo para alguns modelos químicos, diferentes: o mundo é visto sob diferentes paradigmas e estão interessados em explicar e predizer os fenômenos sobre diferentes pontos de vista. Na pesquisa em Ciências de alguma forma as idéias de modelo apresentadas parecem estar explicitando mais uma relação com a idéia de modelo físico. Ou seja, se parte de idéias epistemológicas embasadas na Física. Isso por exemplo se pode ver em Justi e Gilbert (2002) ao descrever quais são consideradas definições apropriadas de modelos.

        Por outra parte, os trabalhos em educação química (p. ex., Wu et al., 2001) tratam do processo de representar de forma dissociada do de modelar, parecendo necessário portanto um aprofundamento sobre o processo da modelação em Química. Para aprender a modelar em Química é vital, segundo o que temos discutido, aprender as diferentes representações que podem ser usadas, aprender a aplicá-las a diferentes situações e saber que para um mesmo conceito existe mais de uma representação possível (Wu et al., 2001). Por isso a aprendizagem de um modelo na Química implica aprender, além dos conceitos, as diferentes representações do mesmo, as regras dessas representações e como essas regras representam as relações entre os conceitos. Este, de fato, como na Física, não é um processo simples. Em pesquisa realizada com estudantes universitários na disciplina de Química Geral (Santos e Greca, 2005) foi possível observar que apesar de não conseguirem modelar adequadamente os fenômenos propostos, os alunos utilizam algumas representações sem incluir nestas as leis intervenientes no comportamento dos sistemas. No entanto, um aumento no seu repertório representacional, como conseqüência de uma estratégia didática específica, contribuiu para que modelos, mesmo que ainda inapropriados, fossem esboçados utilizando parte das leis intervenientes no sistema. Ou seja, dadas as características da modelação em Química parece relevante insistir no ensino de representações diferentes e a discussão das mesmas com os conceitos envolvidos, assim como ressaltar as concepções subjacentes a cada modelo e sistema representacional e o progresso evolutivo do conhecimento e da racionalidade cientifica na Química.

        Na Física, pelo menos no ensino universitário, a compreensão deve estar relacionada com a capacidade dos estudantes para perceber os fenômenos físicos segundo uma determinada teoria e a formalização desta compreensão. Ou seja, para compreender um fenômeno ou processo em Física, é primeiramente necessário entender os enunciados que conformam a estrutura semântica da teoria, seus modelos físicos, modificando ao mesmo tempo, a maneira em que os fenômenos são percebidos. Isto envolve que os alunos, por uma parte, consigam dar significado às equações matemáticas, percebendo nessas relações matemáticas os conceitos envolvidos e, ao mesmo tempo, que sejam capazes de perceber os fenômenos segundo essas equações. Quando este duplo processo é atingido a respeito de um determinado fenômeno, de forma que seus "resultados" (predições e explicações) coincidem com os cientificamente aceitos, pode-se dizer que o indivíduo construiu um modelo mental apropriado, do modelo físico da teoria. Depois deste processo "semântico" é necessária a utilização do modelo matemático para fazer a tradução dos fenômenos à linguagem matemática, etapa fundamental para a completa descrição dos sistemas (ou fenômenos) segundo os cânones aceitos na Física. Em uma pesquisa realizada com estudantes universitários de Física Geral para a introdução de conceitos da Mecânica Quântica utilizamos uma abordagem didática que denominamos de fenomenológica conceitual, destinada justamente a propiciar a primeira parte deste processo, ou seja, a criação de uma "percepção" apropriada para os fenômenos do mundo microscópico e a compreensão dos andaimes matemáticos da Mecânica Quântica. Esta abordagem propositadamente não fez uso de analogias, nem modelos clássicos ou semiclássicos, com o objetivo de impedir que os alunos estabelecessem imagens "realistas" (clássicas) para os conceitos abordados. Essa abordagem focada sobre tais elementos permitiu que um número importante dos estudantes (65%) conseguisse dar os significados cientificamente aceitos aos termos da teoria e compreendesse o significado físico das relações matemáticas envolvidas para este nível de instrução (Greca, Moreira e Herscovitz, 2001; Greca e Herscovitz, 2002).

        Consideramos que as peculiaridades apontadas, possivelmente, devam levar ao desenvolvimento de estratégias instrucionais diferenciadas e mais apropriadas aos contextos de ensino. Os exemplos didáticos anteriormente citados foram elaborados nesse sentido. A pesquisa em ensino de ciências vem tradicionalmente tratando processos de modelação de maneira indiferenciada; entretanto como temos tentado argumentar neste trabalho, esse parece ser um equívoco que desconsidera muitas das peculiaridades históricas e epistemológicas das diferentes disciplinas científicas. Possivelmente nós pesquisadores devêssemos adotar uma postura mais feyerabendiana no sentido de compreender que as ciências progrediram e se especializaram a partir de um pluralismo epistemológico e esse pluralismo deveria fundamentar nossas ações e estratégias para o ensino da Química e da Física.
 
 

Referências

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[1] Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada II Encontro Internacional: Linguagem, Cultura e Cognição – reflexões para o ensino. Belo Horizonte, 2003. (volta para o texto)
[2] Em algumas pesquisas realizadas recentemente encontramos concepções semelhantes a estas utilizadas por estudantes universitários (Santos e Greca, 2005) (volta para o texto)
[3] Para Gière o que distinguiria iniciantes de especialistas é que enquanto os primeiros raciocinariam em termos de modelos no nível básico - ou seja, aplicando juízos de similaridade para analisar diferentes problemas embasados em características visuais -, os especialistas teriam capacidade de trabalhar em níveis cada vez mais abstratos, nos quais as representações simbólicas passam a ter um papel essencial (Abrantes, 1998). (volta para o texto)
[4] Isto não quer dizer que não existam outras formas de representar na Física. Obviamente, se faz uso de esquemas, diagramas, tabelas, etc. Porém, o pensar em si da Física se faz a partir das formulações matemáticas. (volta para o texto)
[5]  Isso se nota no ensino de química que se caracteriza por apresentar aos alunos uma série de modelos, muitas vezes restritos a determinados campos, ao invés de apresentar teorias gerais capazes de explicar fenômenos nos diferentes campos. Pareceria necessário que no ensino de química os professores se preocupassem por mostrar as concepções subjacentes a cada modelo e o progresso evolutivo do conhecimento e da racionalidade cientifica em química, questões poucas vezes abordadas. (volta para o texto)
[6]  Esta seção está embasada fundamentalmente no Capítulo I, do livro “James Clerk Maxwell and the Theory of the Electromagnetic Field”, deste autor. (volta para o texto)
[7] Como podemos ver alguns dos trabalhos discutidos na introdução deste artigo mantém essa idéia mecanicista em relação às analogias. (volta para o texto)
[8] Antes do aparecimento da Mecânica Quântica, a tradição mecanicista, com suas visualizações, era forte na Física. Pense-se, por exemplo, nos diferentes modelos de éter.(volta para o texto)
[9] Os textos de Química indicam como fórmula de Lewis as utilizadas para tratar a ligação iônica. Porém, a teoria de Lewis foi desenvolvida só para enlaces covalentes. Kossel foi quem discutiu a ligação iônica. (volta para o texto)
 


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