O CURRÍCULO DE FÍSICA:
INOVAÇÕES E TENDÊNCIAS NOS ANOS NOVENTA

(Physics curriculum: innovations and trends in the nineties)

Anna Maria Pessoa de Carvalho
Andréa Vannucchi

Faculdade de Educação / Instituto de Física
Universidade de São Paulo, Cidade Universitária
05508-900 São Paulo, Brasil

Resumo

O objetivo desta revisão consiste em traçar as tendências do currículo de física e sua relação com a pesquisa neste âmbito, tentando verificar a importância dessa pesquisa para a realidade de sala de aula. Para isto, buscaremos analisar as propostas e trabalhos apresentados em nove encontros científicos sobre ensino de física realizados nos quatro primeiros anos desta década.
Palavras-chaves:
revisão bibliográfica, física, inovações curriculares.

Abstract

Through the analysis of the proposals and works presented in nine scientific meetings on Physics Teaching of the first four years of the nineties, we intend to study the tendencies of the physics curriculum and its relation with the research in this matter, trying to verify the importance of this research to classroom reality. Key-words: bibliographical review, physics, curricular innovations.

Introdução

Este trabalho pretende estudar as forças inovadoras que influenciam o currículo de física nos anos noventa mostrando as tendências por que passa a pesquisa nesse âmbito e procurando verificar o desenvolvimento de sua influência na realidade efetiva da sala de aula.

Na verdade estudar o currículo nunca é estudar a realidade escolar pois como mostra Coll (1986), podemos definir currículo como sendo um "documento" que se situa entre a declaração de princípios gerais e sua tradução operacional, entre a teoria educativa e a prática pedagógica, entre o planejamento e a ação e entre o que se prescreve e o que sucede realmente na sala de aula. Portanto, procurando estudar as inovações curriculares para o ensino de física, vamos buscar referências nestes dois níveis : o nível das idéias, dos princípios gerais, da teoria educativa e o nível da tradução operacional, da prática pedagógica, da ação em sala de aula.

Ao caracterizar o currículo de Física nos anos noventa, vamos fazê-lo dentro dos parâmetros definidos por Krasilchik (1987), que descreve a evolução do ensino das Ciências no Brasil durante o período de 1950 a 1990. A autora analisa essa evolução em diversos aspectos que vão desde o contexto das transformações sociais internacionais, passando pela situação política brasileira, pelas influências que sofreu o ensino de uma maneira geral e as repercussões no ensino das Ciências, mostrando também as instituições que foram as responsáveis pelas propostas de mudanças. O quadro abaixo resume toda essa evolução.

O Currículo de Física nos anos 90

Podemos situar o ensino de física nos anos noventa nesta mesma direção, mas agora em um contexto que sofreu algumas transformações. A situação mundial continua tendo a competição tecnológica como pedra fundamental, sendo a competição mais especificamente no campo da comunicação - o domínio pela informação. A situação brasileira já deixou de ser uma transição política para assumir uma democracia com competição de mercado, o que implica também um ensino competitivo. Há necessidade de mão-de-obra qualificada e já se observa o aparecimento da expressão "qualidade total" como um objetivo da escola de primeiro e segundo graus, em complementação à formação do cidadão - trabalhador. Um ensino de qualidade é uma pretensa meta de nossos governantes, explicitada inclusive em seus discursos de posse (Cardoso, 1995; Covas, 1995; Neubauer, 1995).

De outro lado, as tendências educacionais que influenciam o ensino continuam sendo preponderantemente construtivistas, mas um construtivismo que concede uma importância considerável ao aprendizado de determinados conteúdos específicos e destaca a influência educativa do professor como um dos fatores determinantes para que a atividade construtiva do aluno se oriente em uma ou outra direção (Coll, 1992).

Essas condições de contorno sociais, políticas e educacionais: um regime democrático, uma pretensa preocupação com o ensino de qualidade, as tendências construtivistas nesta área, todas estas têm grande influência na renovação do ensino de ciências e estão, como não poderiam deixar de estar, pois todos vivemos em uma mesma sociedade, muito próximas das metas preconizadas por aqueles que trabalham no campo do ensino de física. (Hewson e Hewson, 1988, Carvalho e Gil-Perez, 1993 ).

As instituições que influem nas proposições de mudanças curriculares continuam sendo nesta década, as organizações profissionais, científicas e de professores universitários, quer em nível internacional, quer nacionalmente. No Brasil, esta influência é detectada tendo-se em vista a constante parceria entre as Secretarias de Educação e as Universidades para a elaboração de novos currículos e para cursos de aperfeiçoamento de professores em serviço.

Podemos portanto acrescentar uma nova coluna na tabela de Krasilchik, correspondente à essa primeira metade dos anos noventa, sendo que os três quadros corrrespondentes especificamente ao ensino de ciências irão ficar em branco pois estes na verdade, sintetizam os objetivos deste trabalho ao focalizar com atenção o ensino de física.

Portanto, ao procurarmos estudar as inovações e tendências curriculares no ensino de física nestes anos noventa, nos dois níveis: o das idéias e o da prática pedagógica, nada mais importante do que estudar o que a sociedade científica propõe. Para alcançar este objetivo vamos pesquisar nas Atas e "Proceedings" dos simpósios nacionais e internacionais, verificando o que se propõe e o que realmente se faz. Deste modo teremos dados para caracterizar os objetivos de renovação do ensino de ciências, a visão da ciência na currículo de primeiro e segundo graus e a metodologia recomendada para esse ensino.

Linhas de Investigação e Propostas Curriculares

Dentro das linhas de pesquisa desenvolvidas nas universidades, o estudo das concepções espontâneas ou mais amplamente o estudo de como os alunos pensam e compreendem os conceitos físicos, constituiu-se num campo fértil e diretamente relacionado com o ensino. O número de trabalhos publicados sobre concepções espontâneas em quase todos os campos científico é enorme, apresentando um crescimento autenticamente exponencial com mais de 3 000 trabalhos publicados nesta década, como mostra a comunicação apresentada por Duit (1993) no III Seminário Internacional de Cornell. Mesmo no Brasil o número de dissertações e teses sobre o assunto é relevante.

Colocamos em relação ao desenvolvimento destes trabalhos duas questões. Quais os benefícios que estas pesquisas trouxeram para o ensino de física? Como influenciaram o desenvolvimento curricular?

Gil-Perez (1994), fazendo uma análise das pesquisas em conceitos espontâneos, mostra que "em primeiro lugar estas investigações têm questionado fortemente a eficácia do ensino por transmissão de conhecimentos elaborados .... e tem contribuído, mais que qualquer outro estudo, para problematizar o ensino/aprendizagem das ciências e romper com a inércia de uma tradição assumida acriticamente". Estes dois pontos enfocados: a eficácia do ensino e da aprendizagem por transmissão do conhecimento e a conscientização de que ensinar não é facil, não bastando o conhecimento do conteúdo específico e de um bom senso didático, trouxeram grandes beneficios para o desenvolvimento do ensino em sala de aula.

Ao nosso ver, esses questionamentos são, sem dúvida alguma, um dos fatores que influenciaram e que impulsionaram a busca de inovações no ensino de física. Essa procura de novas formas de ensinar, tanto em nível metodológico como em nível curricular, não se deu somente no primeiro e segundo graus, mas principalmente na formação de professores. Em todas as universidades e instituições de nível superior a reformulação das licenciaturas sempre se inicia pelas de ciências, mais especificamente pela de física.

Outra característica muito importante das investigações em conceitos espontâneos é a sua capacidade de integração com outros campos de estudos, como por exemplo a linguagem, a epistemologia genética, a aprendizagem significativa, etc. (Gil-Perez, 1994). Esta integração tem favorecido em particular as colocações construtivistas, antes de caráter puramente teórico e tem unido a área de Ensino de Ciências com as tendências educacionais provenientes de outras áreas do conhecimento (Coll, 1990; Carvalho, 1994). Outro importante fator decorrente do desenvolvimento destas pesquisas foi chamar a atenção para a História e Filosofia das Ciências quando da proposição de novos modelos de ensino/aprendizagem. As várias propostas de mudanças conceituais, todas tentando a superação dos conceitos espontâneos ( Posner et al. 1982, Driver e Oldham 1986, Gil-Perez et al, 1991; Gil-Perez,1993), levam muito em considerações as contribuições da História e Filosofia das Ciências.

Podemos denominar de "contribuições cognitivistas" para o ensino de física todas as propostas curriculares e as práticas em sala de aula que têm origem neste grupo de pesquisa, pois todas elas têm em comum a preocupação com o processo de aprendizagem do aluno.

A presença da História e Filosofia das Ciências não se restringe às propostas de mudança conceitual, pois esta área do conhecimento sempre gerou estudos que vêm influenciando há décadas os currículos de física, quer em nível de primeiro e segundo graus, quer mesmo em nível universitário, com a introdução de disciplinas específicas para este estudo nos cursos de formação de professores. Nestes últimos anos, dois currículos internacionais, o novo currículo nacional britânico de Ciências e o projeto americano - AAAS 2061, mostram claramente a influência da História e Filosofia das Ciências em seus programas (Matthews, 1994). Também podemos medir essa influência pelo aparecimento de revistas científicas especializadas nesta área, como a revista nacional Perspecilium e a internacional Science & Education, e por simpósios temáticos, nacionais e internacionais, que se dedicam exclusivamente a estudar a História e Filosofia das Ciências no ensino das ciências.

As indicações para o ensino discutidas nestes simpósios, também características da direção das propostas dos currículos britânico e americano, não pretendem que as conclusões sobre a ciência sejam substituídas pelas conclusões sobre história e filosofia das ciências. Ninguém espera que os estudantes resolvam os grandes debates científicos que aconteceram na humanidade, o que se espera realmente é que captem algo dos aspectos intelectuais que estão em jogo nestes assuntos, que vejam que há perguntas a fazer e que comecem a pensar não só nas respostas, mas sobre o que se poderia considerar como resposta e que tipos de evidências podem respaldar nossas respostas (Matthews, 1994).

Como exemplo das indicações discutidas em simpósios, no V RELAEF- Reunião Latino-Americana sobre Educação em Física - o grupo de trabalho sobre História e Filosofia das Ciências mostrou a importância destes estudos para a formação de professores, tendo em vista proporcionar: 1- uma maior compreensão da natureza do conhecimento científico; 2- um melhor entendimento dos conceitos e teorias da Física; 3- uma compreensão dos obstáculos e possíveis dificuldades dos alunos e 4- uma concepção das ciências como empresa coletiva e histórica e o entendimento das relações com a tecnologia, a cultura e a sociedade.

Outro fator que deveria muito fortemente influenciar o ensino de física é o grande desenvolvimento desta ciência nestas últimas décadas. Vivemos hoje num mundo altamente tecnológico - fibra ótica, códigos de barra, micro-computadores etc, etc, etc..- e o nosso ensino ainda está em Galileu, Newton, Ohm, não chegou ainda no século vinte. Estamos no último quinquênio do século XX, mas em termos de ensino estamos muito longe do seu início. Em 1905 Einstein propunha o Princípio de Relatividade Geral, em 1995 não temos nenhuma condição de ensinar a relatividade para os alunos do curso médio.

Muitos esforços têm sido feitos, quer em nível internacional, com o planejamento pela International Commission on Physics Education de uma série de conferências internacionais com esta finalidade, quer em nível nacional, com a elaboração de teses e aparecimento de grupos de pesquisa que têm como objetivo trazer a física contemporânea e também as explicações de uma tecnologia mais atual para o ensino de segundo grau.

Outras duas linhas de investigações têm influenciado o ensino de física: os trabalhos que procuram uma interdisciplinaridade e aqueles que têm o cotidiano como foco principal. Ambas têm o seu referencial teórico nos trabalhos de Paulo Freire, apesar de na prática apresentarem diferenças fundamentais.

As propostas curriculares provenientes da primeira área, a da interdisciplinaridade, estão mais concentrados no curso de primeiro grau e têm por objetivo uma integração entre o ensino de ciências e as outras disciplinas, buscando tornar menos rígidas as fronteiras entre as diversas áreas do conhecimento. Partem do levantamento da realidade vivenciada pela "comunidade" onde está localizada a escola, o que possibilita a definição de questões significativas para essa mesma comunidade e, portanto, para os professores e alunos. Os temas geradores assim estabelecidos indicam os conteúdos acadêmicos pertinentes, propiciando um olhar multifacetado da realidade. Estes enfoques integrados proporcionam uma melhor compreensão dos fenômenos ou situações (Delizoicov e Zanetic, 1993).

As propostas em ensino de física que tomam o cotidiano como ponto de partida procuram na vivência dos alunos com o mundo físico e tecnológico os seus temas geradores, objetivando o desenvolvimento das abstrações tão necessárias para a construção e o entendimento das leis físicas (Hosoume, Kawamura e Menezes, 1994). É através de objetos específicos, variados, "reais", que esses projetos curriculares pretendem garantir a etapa de elaboração das abstrações necessárias para o desenvolvimento do ensino de física.

É claro que todas estas linhas temáticas se interelacionam e em uma proposta de ensino feita em uma palestra ou em uma experiência em sala de aula apresentada numa comunicação oral, vemos a influência de mais de uma delas.

Como Analisar as Tendências Curriculares nos Anos 90?

Fomos buscar nossos dados nas atas de simpósios nacionais, latino-americanos e europeus sobre Ensino de Física realizados nesta década. Assim, analisamos as Atas dos dois SNEFs realizados em 1991 e 1993, do EPEF de 1990, do RELAEF de 1992, as Memórias das REFs argentinas de 1991 e 1993 e do congresso organizado pela revista Enseñanza de las Ciencias de 1993 e os Proceedings dos Congressos organizados pelo Groupe International de Recherche sur l'Enseignement de la Physique, GIREP, de 1991 e 1993, que tiveram o apoio da International Commission on Physics Education (IUPAP).

Tomando como referência as ênfases curriculares já discutidas: Cotidiano, Interdisciplinaridade, Física Moderna e/ou Contemporânea, História e Filosofia da Ciência e Ensino Cognitivista, definimos as categorias a partir das quais procuramos classsificar as exposições e os trabalhos apresentados nos diversos encontros científicos.

Primeiramente fizemos uma leitura para verificar quais trabalhos se encaixavam nas categorias definidas. Gostaríamos de ter incluído neste grupo os cursos, pois sabemos que muitas propostas curriculares são desenvolvidas nesta atividade; entretanto, o que aparece nas atas sobre cursos é tão sucinto que poderia nos induzir a erros de interpretação. Após esta seleção separamos os trabalhos em dois grupos: aqueles que propunham as inovações curriculares ou metodológicas e aqueles que de fato adotavam as inovações, fossem na prática de sala de aula em cursos regulares ou de extensão, fossem descrições de novos currículos desenvolvidos e adotados em instituições de ensino.

Classificamos tanto as propostas de inovação do ensino de Física, como o relato das ações em sala de aula segundo dois eixos: quanto às ênfases curriculares predominantes nos textos apresentados e quanto ao nível de escolaridade para qual era feita a sugestão ou era executado o trabalho em sala de aula.

Quanto às ênfases curriculares predominantes, faremos algumas considerações a cerca das delimitações das categorias:

Na categoria Cotidiano estão inseridos os trabalhos que utilizam o cotidiano para daí extrair-se temas geradores, estes podendo constituir-se ou não no objeto de estudo, sendo que no segundo caso, têm a função de despertar o interesse pelo assunto a ser abordado, servindo de ponto de partida para as abstrações características da ciência moderna. Esta categoria engloba também os trabalhos com Astronomia, sendo tratados nesta temática tópicos como fases da lua, marés, precessão, rotação e translação da Terra;

A categoria Física Moderna e/ou Contemporânea refere-se à abordagem de temas da Física Moderna e Contemporânea em nível de 1o e 2o graus e da Física Contemporânea no 3o grau. Estão incluídas aplicações tecnológicas recentes, que podem em alguns casos já estar inseridas no cotidiano, sendo este por exemplo o caso dos raios-X ou da fibra ótica;

A categoria História e Filosofia da Ciência engloba a epistemologia da ciência, sua natureza, seu caráter de construção permanente, ou na sua dimensão cultural, conhecimento socialmente constituído;

Quanto à categoria Ensino Cognitivista, nos trabalhos com formação de professores esta temática pode ser o próprio conteúdo do curso em questão, enquanto que para os demais casos constitui-se nos pressupostos metodológicos adotados.

Ainda sob o ponto de vista das ênfases curriculares, tanto as propostas como o seu ensino são atividades complexas, sendo que quase nunca podem ser classificadas em uma só categoria. Por exemplo, uma proposta na linha construtivista pode também incluir a História da Ciência e ter como conteúdo tópicos de Física Moderna.

Quanto aos níveis de escolaridade, os trabalhos em sala de aula apresentados nos encontros científicos foram classificados nas subcategorias abaixo ou em combinações delas:

Ensino de primeiro grau;

Ensino de segundo grau, subdividido em curso de magistério e curso secundário, incluindo o segundo grau técnico.

Ensino de terceiro grau, subdividido em curso de licenciatura, bacharelado ou indiferente, quando não discriminado ou relativo à carreiras onde não há esta divisão;

Cursos de extensão, fossem para professores de primeiro ou segundo grau, em formação ou em serviço, fossem para estudantes dos cursos regulares.

Já as propostas de conteúdos curriculares eram muitas vezes feitas de uma maneira mais geral em relação ao nível de escolaridade para o qual se dirigiam. No seguinte sentido: há uma implicação direta entre formação de professores para dado nível e o ensino nesse nível, pois a introdução dos conteúdos nos currículos pressupõe professores capacitados para tal e por outro lado, a inclusão dos conteúdos nos cursos de formação de professores implica - pelo menos em tese - sua introdução nos currículos dos cursos primário e secundário. Assim sendo, as propostas apresentadas nos encontros científicos foram classificadas em:

Ensino de primeiro grau, incluindo o curso primário, o curso magistério e cursos de extensão para ambos os níveis e para professores em serviço;

Ensino de segundo grau, incluindo o curso secundário, o curso de licenciatura e cursos de extensão para ambos os níveis e para professores em serviço;

Ensino de terceiro grau: bacharelado ou indiferente, quando não especificado ou quando relativo a carreiras onde não há subdivisão em bacharelado e licenciatura.

A partir dos dados assim coletados construímos tabelas que descrevessem cada um dos eventos. Foram construídas duas tabelas para cada encontro científico: uma relativa aos conteúdos sugeridos e outra relativa aos conteúdos efetivamente adotados no ensino de física de primeiro, segundo e terceiro graus ou em cursos de extensão. As tabelas relativas ao SNEF de 1993 serão apresentadas abaixo a título de exemplo, sendo os dados relativos às demais incluidos de forma percentual ao longo da descrição de cada evento. As porcentagens referem-se à frequência de aparecimento de cada categoria temática no conjunto de trabalhos ou sugestões classificadas para cada encontro científico, ou seja, a porcentagem de aparecimento de determinada categoria é calculada em relação à soma do número de vezes em que cada uma das cinco categorias aparece enfatizada nos trabalhos.selecionados.

Os Simpósios Nacionais de Ensino de Física - SNEFs de 1991 e 1993

As Tabelas 1 e 2 abaixo, são relativas ao SNEF de 1993. A Tabela 1 fornece um panorama das ênfases curriculares propostas nas mesas-redondas, conferências, grupos de trabalho e encontros, enquanto a Tabela 2, construída a partir das experiências descritas nas comunicações orais e painéis retrata as ênfases curriculares adotadas na prática.

Os dois SNEFs são bastante parecidos tanto em termos de idéias propostas como em trabalhos apresentados.

Analisando as sugestões, vemos que estas estão distribuídas em todas as áreas, com predominância na categoria História e Filosofia da Ciência, que corresponde a aproximadamente 33% e 41% das ênfases curriculares apontadas nos SNEFs de 91 e 93, respectivamente. As sugestões são preponderantemente dirigidas para a formação de professores de segundo grau - licenciatura e extensão - e para o ensino onde esses professores vão atuar. Quase não encontramos propostas dirigidas para o bacharelado ou exclusivamente para o primeiro grau.

Diferentemente das sugestões, os trabalhos em sala de aula concentram-se na categoria Cotidiano, correspondendo, para cada um dos encontros, a aproximadamente 39% e 55% das ênfases de conteúdo presentes nos trabalhos selecionados. Este é um dado interessante, pois mostra uma grande discrepância entre o que se propõe e o que se faz em termos de ensino de Física no Brasil, já que História e Filosofia da Ciência corresponde em torno de 12% e 8% entre as ênfases curriculares presentes nos trabalhos classificados para os SNEFs de 91 e 93, respectivamente.

A maior parte dos trabalhos são executados nas salas de aula do segundo grau e em cursos de extensão para professores secundários. Temos poucos trabalhos apresentados referentes ao ensino na licenciatura e praticamente nenhum referente ao bacharelado. A diferença entre os SNEFs de 91 e 93 é o aparecimento neste último, de trabalhos realizados nas classes de primeiro grau com a temática do cotidiano, mais especificamente na área de astronomia.

Encontro de Pesquisadores em Ensino de Física - EPEF 1990

A estrutura deste Encontro estava centrada em Grupos de Trabalho e na análise dos relatos apresentados na Ata não foi possível distinguir com precisão o que era sugestão do que era prática em sala de aula. Apesar deste fato e como também pudemos estudar os trabalhos apresentados nos painéis, optamos por classificar todas as falas dos Grupos de Trabalho como sendo "propostas". Mais uma vez encontramos um peso maior nas sugestões curriculares na área de História e Filosofia da Ciência e agora também no Ensino Cognitivista, em torno de 36% dos conteúdos propostos concentrando-se em cada uma dessas áreas.

Quanto aos trabalhos apresentados, estes estão distribuídos em todas as áreas e nos diversos níveis de ensino, com exceção à área de Física Moderna e/ou Contemporânea e do bacharelado, onde não houve apresentação de trabalhos, indicando que até então, estas não eram áreas de preocupação de nossos pesquisadores em Ensino de Física.

Reunião Latino-Americana sobre Educação em Física - RELAEF 1992

Como o tema específico do RELAEF/92 foi a formação do professor de Física na América Latina, encontramos tanto as sugestões como os trabalhos em sala de aula dirigidos quase que exclusivamente para este objetivo: formação de professores para o segundo grau. As propostas de inovação enfatizaram as áreas de História e Filosofia das Ciências e Ensino Cognitivista, estas correspondendo a aproximadamente 29% e 26% dos conteúdos sugeridos. Apesar disso, as propostas permearam também todas as demais áreas.

Nesta reunião houve um paralelismo entre as sugestões e os trabalhos desenvolvidos em sala de aula. A maioria destes concentram-se nas áreas de História e Filosofia da Ciência e Ensino Cognitivista - em torno de 27% e 36% entre as ênfases curriculares presentes nos trabalhos classificados segundo as categorias descritas, não deixando entretanto de aparecer trabalhos nas demais.

Reunión Nacional de Educación en la Física - REFs de 1991 e 1993

As sugestões apresentadas nas REFs concentram-se nas áreas de História e Filosofia da Ciência e Ensino Cognitivista, nas porcentagens de aproximadamente 33% e 50% na REF/91 e 22% e 78% do conteúdo sugerido na REF/93, respectivamente. Os trabalhos práticos, de acordo com as recomendações, são experiências de ensino predominantemente na área cognitivista, que aparece nas frequências de aproximadamente 50% e 61% entre as ênfases curriculares predominantes nos trabalhos classificados para cada um dos encontros. Este fato mostra mais uma vez a dificuldade de se traduzir as proposta na área de História e Filosofia da Ciência para a realidade da sala de aula.

É interessante notar que diferentemente dos trabalhos apresentados nos simpósios brasileiros, encontramos nas duas REFs argentinas somente um trabalho em extensão. Além disso, a maioria dos trabalhos concentram-se no ensino de terceiro grau.

Enseñanza de las Ciencias 1993

A tendência observada nas REFs se acentua neste Congresso organizado pela Revista Enseñanza de las Ciencias. As sugestões e os trabalhos em sala de aula concentram-se primeiramente na área de Ensino Cognitivista e depois na de História e Filosofia da Ciência. Entre os conteúdos enfatizados nas sugestões classificadas, aproximadamente 68% correspondem ao ensino cognitivista e 29% à História e Filosofia da Ciência. Quanto à temática dos trabalhos, em torno de 77% dos conteúdos concentra-se no ensino cognitivista e 17% na História e Filosofia da Ciência. Já as outras categorias são praticamente ignoradas: a área de Física Moderna e/ou Contemporânea não é pesquisada (1 sugestão e nenhum trabalho), não há qualquer sugestão ou trabalho com interdisciplinaridade e nenhuma sugestão e um trabalho na temática do cotidiano.

Tanto as sugestões como os trabalhos práticos previlegiam o ensino secundário e a formação de professores, tanto na licenciatura como em cursos de extensão. Estes dados indicam que, como no Brasil, não se está enfocando os problemas do ensino de Física quando este se dirige à formação do físico.

Os GIREPs 1991 e 1993

A ênfase das propostas curriculares para o ensino de Física observadas nos congressos organizados pelo GIREP está em duas áreas: no Ensino Cognitivista (em torno de 40% no GIREP 91 e 33% no GIREP 93) e na Física Moderna e/ou Contemporânea (em torno de 50% e 47% para cada um dos encontros). Esta última área está presente por força do próprio objetivo destes congressos: a introdução de uma Física mais atual no ensino de nível médio. Também por este motivo as sugestões ficaram direcionadas para a formação de professores.

As experiências práticas foram mais amplas, os trabalhos distribuiram-se em todas as categorias exceto Interdisciplinaridade. No GIREP de 1991, sendo o tema do congresso Teaching about reference frames: from Copernicus to Einstein, cerca de 34% da temática presente nos trabalhos pôde ser classificada na categoria Cotidiano, relativamente sobretudo à área de astronomia. As demais categorias foram abordadas aproximadamente com as seguinte frequências: Ensino Cognitivista, 28%; História e Filosofia da Ciência, 24% e Física Moderna e/ou Contemporânea, 14%. No GIREP de 1993, sendo o tema do encontro Light and Information, em torno de 37% da temática dos trabalhos classificados apareceu na área de Física Moderna e/ou Contemporânea. O ensino cognitivista foi abordado com a mesma frequência e a categoria Cotidiano apareceu também em porcentagem significativa, 21%.

Panorama das Inovações Curriculares nos Anos 90

A partir dos dados obtidos pela análise de cada um dos eventos em separado, iremos agora procurar uma visão geral das inovações curriculares propostas nesse início dos anos 90 e para tanto construiremos tabelas-síntese comparando todos os encontros científicos.

Para a construção destas tabelas iremos procurar as ênfases curriculares, isto é, as categorias mais abordadas nas sugestões e trabalhos analisados em cada encontro científico (Tabelas 3 e 4). Foram também construídas tabelas-síntese relativas ao nível de escolaridade predominantemente abordado nas sugestões e trabalhos (Tabelas 5 e 6). Para tal, foram selecionados das tabelas individuais de cada encontro científico os conteúdos e níveis de escolaridade mais abordados, sendo também considerados aqueles que apareceram em frequência igual ou superior a 65% da frequência dos mais abordados.

Quanto aos conteúdos curriculares propostos, em todos os eventos internacionais um aspecto é enfatizado: a adoção de um ensino cognitivista. Esta tendência não aparece com a mesma ênfase nos encontros nacionais - em apenas um deles, o EPEF de 1990, tal metodologia de ensino foi amplamente salientada (Tabela 3). É possível que nossos dados tenham sofrido um envezamento, pois não pudemos analisar o conteúdos dos cursos oferecidos e sabemos que através dos cursos - atividades de no mínimo oito horas em cada simpósio - as propostas curriculares mais sedimentadas são apresentadas.

Outra prioridade apontada nos eventos nacionais e internacionais é a inclusão da História e Filosofia da Ciência nos currículos escolares. Esta é a categoria cuja inclusão curricular apresenta maior consenso (Tabela 3). Entretanto, não se pode dizer que esta seja uma tendência que se reflete na sala de aula, já que sua presença nos trabalhos apresentados não corresponde à ênfase observada nas proposições (Tabela 4).

Nota-se a ênfase atribuída aos conteúdos da Física Moderna e/ou Contemporânea nos GIREPs de 1991 e 93 (Tabela 4). Tal fato pode ser interpretado como decorrência natural das temáticas específicas das duas conferências: Teaching about References Frames: from Copernicus to Einstein e Light and Information respectivamente. Estas temáticas introduzem temas como Teoria da Relatividade no primeiro caso e fibras óticas e fractais no segundo.

Quando passamos a analisar os congressos não brasileiros - as REFs argentinas, os GIREPs predominantemente europeus e o congresso realizado pela revista Enseñanza de las Ciencias - temos de salientar um aspecto: desaparecem as sugestões nas áreas do cotidiano e da interdisciplinaridade (Tabela 3), sendo os trabalhos apresentados nestas áreas em número pouco significativo. Os trabalhos em interdisciplinaridade só encontramos nas REFs.

Observa-se no âmbito nacional uma discrepância quanto à temática curricular predominante nas propostas e sua presença efetiva nos trabalhos apresentados. Os trabalhos em sala de aula concentram-se na temática do cotidiano (Tabela 4), embora esta área não tenha sido considerada principal em nenhum dos encontros (Tabela 3), o que talvez possa ser explicado pela impossibilidade de inclusão dos cursos na análise das propostas curriculares.

De modo geral, a tendência internacional parece ser a prática de ensino cognitivista, como nota-se pela ênfase de propostas a esse respeito e também pela predominância de trabalhos em sala de aula que adotam tal metodologia de ensino e aprendizagem (Tabelas 3 e 4).

Os trabalhos que descrevem experiências onde os conteúdos curriculares que selecionamos foram efetivamente adotados correspondem, para todos os encontros científicos, de 20% a 30% do total de trabalhos apresentados.

Em todos os congressos e simpósios as sugestões de inovação curricular concentram-se predominantemente no segundo grau, seja no ensino secundário, seja formando professores para esse nível de ensino em cursos de licenciatura ou extensão (Tabela 5). Em alguns eventos, como no GIREP 91 e no SNEF 93, o ensino de primeiro grau e o curso de bacharelado não são sequer mencionados nas proposições curriculares.

Quanto aos trabalhos em sala de aula, conforme as sugestões, o 2o grau é também enfatizado (Tabela 6). Os trabalhos com ensino de primeiro grau são predominantemente restritos a cursos de Astronomia.

Ensino de ciências: visão de ciência, objetivos e metodologia recomendada nos anos 90

Temos agora condições de caracterizar os três tópicos que deixamos em branco e que focalizam o ensino de física nos anos 90. Um dos resultados da nossa revisão bibliográfica foi notar a grande importância atribuída à História e Filosofia da Ciência no ensino de Física como também as tentativas de inclusão da Física Moderna e/ou Contemporânea nos currículos, o que indica como objetivos da renovação do ensino de ciências a aproximação entre a ciência e o cidadão comum, tão prejudicada em nosso tempo pelo desenvolvimento exponencial da ciência e tecnologia, que por sua vez acentua o senso comum sobre a ciência como atividade desprovida de uma metodologia rigorosa e específica, realizada por indivíduos com talentos especiais, distantes de seu contexto social e histórico. O ensino de ciências deve então enfatizar também o aspecto ensino, combinando o conteúdo específico e os progressos da ciência e tecnologia com os propósitos gerais da educação, colocando para os estudantes a produção científica ao alcance de sua interpretação e crítica. Este objetivo nos leva a uma visão de ciência como construção permanente, como um conhecimento socialmente elaborado e portanto vinculado a um contexto que impõe necessidades, que cria demandas, que faz pressões, que julga e que opta. Ao encararmos a ciência dessa forma, passamos a acreditar que os especialistas e o conhecimento que produzem estão igualmente sujeitos a diferentes visões e valores e devemos então nos sentir mais envolvidos e responsáveis pelas decisões que são tomadas (Trivelato,1993). A metodologia recomendada é uma metodologia baseada em pressupostos cognitivistas, sendo a resolução de problemas a atividade preferencial.

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Recebido em 10/04/95

Aceito em 10/08/95

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