Sítio do IF

Se houver alguma informação equivocada (data, título de evento ou nome de pessoas), ou em falta, por favor entre em contato.  

 

Index

Programação

Crônicas & depoimentos

Iconografia

Documentos históricos

IF 45 anos

Mapa do portal

Créditos

Os 14 de 1960


Nossa turma de ingressantes no curso de Física em 1960 foi a maior até então, 14 alunos, sem contar os alunos de Matemática com quem partilhávamos disciplinas. Fomos a última turma do currículo de três anos, em seguida o curso passou para quatro, o que explica o intervalo nas contratações e os resmungos que ouvi dos alunos da primeira turma de transição, com os quais, por sinal, participei da parada dos bixos
pela Rua dos Andradas, poucos anos antes que essa festa iconoclasta fosse extinta pelo governo repressivo e mal-humorado.

Dessa turma sucessora à nossa faziam parte Ruth, Maria Helena, Hans-Peter, Scherer e Laier. Formados 9, parte da nossa turma foi imediatamente contratada pelo IF em 1963 por 4 salários mínimos. Ildon e Edmundo foram para o IPD do CTA ganhando 6 mínimos. Ficamos Beto, Ialo, Flávio, Bernardo e eu; de Cecília e Fred nada mais soube. Já tinha sido vinculado ao IF, por Gerhard e Darcy, em várias etapas, um grupo anterior mais maduro de físicos e engenheiros, alguns duplamente diplomados: Victoria, Alice, Fernando, Pedro, Delmar, Renato, Irineu, Raupp, Mundt, Jost, Haroldo, Roberto, Cecy, Beatriz, Edemundo, Anildo, Schneider, Heinz e um eletrônico-físico ou vice-versa, Celso. Além disso, contava o IF também com os eletrônicos “puros” Petry, Danilo, Pedroso e com os químicos Todesco e Fraga.

Victoria nos deu as primeiras tintas de mecânica quântica numa sala próxima às do “poleiro” de Darcy, Gerhard e Maris, únicos escritórios com ar condicionado naqueles tempos. Suávamos ela e nós, não só de calor: foi duro abandonar as certezas clássicas.

 

Do curso de graduação lembro principalmente a carência total de livros-texto nas bibliotecas, ônus doloroso que nos obrigava a copiar as aulas ou manusear “sebentas” dos professores, a maioria deles entusiasmados, dedicados, competentes e mal pagos, mereceriam vinhetas à parte. Cada livro, quando havia, era partilhado por hora entre os estudantes. Incompreensível que a Universidade não investisse ao menos em livros já que nada investia em pesquisa nos anos 50. Como de praxe ocorre com carências que podem ser supridas mais adiante, mesmo que isso não resolva mais muito, algumas das minhas compras atuais na Amazon são livros de graduação de física e de outras disciplinas, que leio com algum proveito ainda, babando de prazer pelo manuseio dessas modernas obras primas de exposição didática. Hoje é preciso fazer força para permanecer ignorante, não para se cultivar. Isso sim mudou em 50 anos, e para muito melhor. Os tempos dourados nunca ficaram para trás; estão, isso sim, sempre à nossa frente, por realizar e por realizarmos.

Alice apresenta neste Portal dos 50 anos do IF uma história sintética de parte do período, que serve de guia para este relato. Ela relata ter eu construído o primeiro laser de He-Ne do IF lá por 1966-67, com o qual Nicola me afirmou anos depois ter desenvolvido sua tese de mestrado. Acrescento que essa foi uma das maiores alegrias que tive, como se tivesse realizado um grande feito embora se tratasse apenas de reproduzir algo relativamente simples em condições precárias.

Alguém - creio que foi Maris - que já havia trazido do exterior um laser completo similar que durou poucas horas, comprou por um punhado de dólares na Edmund Scientific um balão de vidro com 1 litro de mistura de He-Ne, e um par de espelhos multi-camadas. A receita de fabricação está na Scientific American de setembro de 1964, na seção do cientista amador. O “pulo do gato” para fazer um laser a gás durar dezenas de horas é neutralizar as impurezas que vão sendo geradas no seu interior. Para isso pode-se usar uma “lixeira” de hidreto de urânio, pó altamente reativo, fabricado in situ num apêndice ao tubo do laser a partir do metal e do gás.

Consegui no IQ uma bolacha de ½ kg de urânio empobrecido da qual serrei uma lasca; a serragem pirofórica incendiava no ar, mas quem estava aí para cautelas? Com muita ajuda de Joel, Bocchese, Lourenço, Bruno e Irai construí (construímos!) o laser com tubo de pyrex, hidreto e gás conforme o projeto, devidamente conectado à linha de vácuo e de manipulação de gases, mas alinhar os espelhos se mostrou bem mais difícil do que sugerido na revista. Numa alta madrugada, já meio desesperado de manusear por horas sem sucesso os parafusos micrométricos de alinhamento dos espelhos, decidi forçar com a mão o suporte de um deles um pouquinho para lá e para cá, e pimba! na parede apareceu um ponto vermelho brilhante. Maravilha pura! Relaxando a tensão manual com os parafusos, o feixe de luz ficou permanente. Fui para casa dormir umas horas, mas não consegui. É esse o tesão da ciência e da tecnologia: um sucesso incontestável acompanhado de uma euforia incontida.

Antes do laser a gás eu tinha passado um verão na USP no laboratório do prof. Oscar Sala, para fabricar um par de detectores de silício para raios gama, para o laboratório de correlações angulares. Fui para lá pela BR-2, que ainda era nova, com meu fusca 1962, comprado do Darcy em 1965 por mil dólares emprestados do Nicola para pagamento em 12 vezes. Vendido anos depois ao Eliermes, foi destruído numa capotagem. Como o salário era meio curto, deixei o carro 12 meses na garagem, não dava para sustentar esse luxo rodando por aí.

O físico da USP que me ensinou a fazer os diodos foi o Jerry Nickles, um jovem americano fazendo seu mestrado, imensamente simpático e prestativo como todos os cientistas americanos que tive o prazer de conhecer. Lá conheci outras personalidades com as quais cruzei caminho novamente quando migrei para SP, a mais conhecida das quais José Goldemberg, gaúcho de Santo Ângelo, que se interessou por energias alternativas nos anos 1980 devido à atividade frenética que ocorria na jovem concorrente da USP no interior, a Unicamp. Goldemberg me mostrou seu laboratório e insinuou que estava aceitando alunos de pós-graduação. Aí no sul falamos do tal cavalo encilhado passando. Eu deveria ter montado nesse, mas na época a atividade desse professor ainda era na área de reações nucleares, que não me atraía. Ademais, como interiorano xucro, sempre tive dificuldade de mudar de moradia, e cada mudança foi e continua sendo uma erradicação dolorosa.

Mas eu não gostava do tipo de pesquisa que estava tentando fazer no IF, essencialmente concentrado em correlações angulares, com umas pequenas “dissidências” não muito bem patrocinadas. Em todo caso, fabriquei e trouxe de volta os dois detectores, um dos quais desgraçadamente caiu, na volta de carro, de seu sustento dentro do criostato. Foi meu primeiro contato com alguma física do estado sólido, ademais aplicada, e o aceno de uma pós-graduação formal.

Até 1970 não havia curso de pós-graduação no IF. A Faculdade de Filosofia oferecia doutoramento em Ciências, ali ocorrendo os primeiros em Física Experimental e Teórica da Universidade. Algumas das disciplinas oferecidas eram desenvolvidas na forma de seminários apresentados pelos próprios alunos, e a elaboração (com posterior defesa) de tese versava sobre trabalho de pesquisa original. Somente no início da década de 70 recebeu o IF o encargo oficial de ministrar os cursos de Física (graduação e pós-graduação), passando a estimular seus jovens docentes e recém graduados a realizar programas de pós-graduação (mestrado e doutorado).

Para muitos de nós, portanto, a carreira científica ficou no início um tanto travada pela falta de instrução avançada contínua, intensa e mandatória. Não sei se isso foi crítico ou não para a evolução do IF, mas creio que foi, especialmente para a produtividade científica individual, mas também para a coletiva. A espaçada conquista de titulação avançada pelos primeiros contratados, a carência de experiência pós-doutoral externa ao IF, a consequente menos expedita ascensão acadêmica, produtividade original e projeção profissional, geraram uma carência de quadros mais adiante para, além de suprir as necessidades internas, preencher mais postos elevados em órgãos de fomento, especialmente os federais, com prejuízo para a influência nacional do IF na alocação de recursos para pesquisa.

Na falta de uma PG regular em Física, ou instrução avançada intensa e metódica dentro do IF para todos - mesmo sem obtenção de créditos acadêmicos -, ou mesmo um programa de “remessa” de bacharéis a cursos de doutoramento nacionais ou estrangeiros, estagiávamos brevemente no exterior conforme surgissem oportunidades, mas as viagens eram caras e raras. Minha passagem aérea para Uppsala custou US$ 1,200.00, mais de US $ 8,400.00 em termos atuais, corrigidos pela inflação ao consumidor americano.

Como funcionário federal, o afastamento ao exterior tinha de ser aprovado pelo Presidente da República(!), levava um tempão obter a liberação. Seguindo os passos de Alice e Pedro, fui o último a passar 9 meses na Suécia com o Prof. Torsten Lindqvist, especialista em correlações angulares. O ambiente era moderno e rico, e, assim como na USP mais tarde, eu deveria ter tentado iniciar uma pós por lá; novamente minha timidez me impediu. Ademais, o propósito era multiplicar o efeito do treinamento retornando para o IF com momentum criativo, mas a tal correlação angular não batia comigo.

Teria sido melhor para o IF se o Beto tivesse ido para a Suécia em meu lugar. Ele era muito mais capaz, focalizado e melhor aluno que eu, mas Gerhard e Maris “me deviam” um substancial favor por ter feito para eles em 1961 uma integração numérica tediosa com uma calculadora mecânica Marchand durante meses a fio, calculadora esta que quebrava frequentemente e me obrigava a desmontá-la e remontá-la parcialmente, com prejuízo (voluntário!) de minhas aulas e demais estudos. Darcy me deu uma grande colher de chá nessa história, pois eu andava mal na disciplina de eletricidade e magnetismo - ele era um ótimo professor, eu não deveria ter relaxado e isso me custou caro mais adiante - mas ele me aprovou a despeito do meu retardamento. Como disse, devo muito a muitos.

Dado que a Física Nuclear me era francamente enjoativa (já está claro, não?), e considerando que a gente só faz bem aquilo de que gosta, e assim mesmo se tiver competência para tanto, acossado pela minha preferência em fazer coisas concretas, visíveis, palpáveis, que funcionam, que são úteis, comecei a atazanar o Renato a nos ensinar, a mim e a outros interessados, Física do Estado Sólido, que diziam ser o principal interesse dele e do que teria muito conhecimento. Parece que Renato tinha um bloqueio para dar aulas; não conseguimos nada dele, mas lhe devo ter sido meu grande fornecedor de pocket-books de ficção científica, que ajudaram notavelmente a expandir meu domínio do inglês.

Pedro já havia começado a usar técnicas nucleares em Estado Sólido, mas ainda não havia essa disciplina no currículo de graduação. Não tenho certeza do porquê dessa omissão flagrante, se havia objeção ativa a esse ramo da física. O foco experimental do IF era nuclear, com pequena abertura para lasers e resistividade, mas ainda não lasers como instrumentos de pesquisa sobre a matéria condensada. Não havia qualquer ênfase institucional nas atividades não nucleares, tateava-se sozinho. Delmar e Flávio tinham seus pequenos nichos alternativos de pesquisa, mas não pareciam prestigiados pelo IF. Vieram visitantes especialistas em laser, um americano (sempre simpáticos, esses gringos!), e o britânico Harvey Rutt (Google nele, ainda é ativo!). Não sei se havia receio em abrir muitas frentes experimentais ou outro motivo, quiçá financeiro ou de hegemonia, mas estado sólido e ciência dos materiais não era tópico científico corrente, ou considerado com potencial para produzir-se ciência de vanguarda no IF nessa época, ou assim me parecia. Quanto mais desenvolver pesquisa aplicada!

Lembro que desesperei, comprei a 3ª edição do Kittel e ofereci um curso de ES na graduação, autorizado pelo Darcy. Todos sabíamos, isso foi declarado de início, que eu estava apenas um capítulo à frente dos alunos no entendimento da matéria, mas tocamos o barco com entusiasmo. Em 1967 formalizou-se a seita do ES que já existia incipiente no IF, mas ainda não tinha acólitos vocais e influentes, nem templos monumentais. O único Kittel circulava pelos alunos em prestações horárias: nessa disciplina ainda vigorou, creio que pela derradeira vez, a indigência bibliográfica da década anterior.

  1. Aviso aos navegantes
  2. Os 14 de 1960
  3. A hora do recreio
  4. Luiz Severo Motta
  5. Epílogo

PS: Nomes completos e fotografias das pessoas mencionadas estão aqui.


mec capes cnpq finep fapergs

© 2008 Instituto de Física - UFRGS
C.P. 15051, Campus do Vale
91501-970 Porto Alegre RS, BRASIL